Notícia imprecisa sobre proibição de Bíblias nos EUA gera confusão sobre perseguição religiosa

* Matéria atualizada às 20:30 para correção de redação

De acordo com matéria distribuída por agências internacionais de notícias, e publicada, inicialmente, no Brasil, pelos jornais Estado de Minas e O Estado de São Paulo, no último 2 de junho, o Estado de Utah, nos Estados Unidos, teria retirado a Bíblia de bibliotecas e escolas. A ação teria sido uma resposta a decisões de políticos conservadores de retirar livros que abordassem questões LGBTQIA+ “de prateleiras educacionais”.

O assunto repercutiu fortemente no Brasil, e a decisão foi noticiada por sites religiosos e portais da grande mídia nos dias seguintes. Com algumas divergências, nem todos os conteúdos foram fiéis aos fatos.

Imagem: reprodução do site Pleno.News

Decisão de remover a Bíblia não foi do estado de Utah

Para ouvir uma fonte local, Bereia entrevistou o pastor da Igreja Metodista Unida dos EUA Rev. Jorge Luiz Domingues sobre o caso. Ele explicou que o banimento da Bíblia das bibliotecas de escolas elementares não partiu do Estado de Utah, mas de apenas um distrito escolar. “O estado aprovou a lei, e o distrito escolar está implementando a partir da solicitação [de um pai ou mãe de estudante]”, afirma.

Segundo o jornal The Salt Lake Tribune, de Utah, a decisão de banir a Bíblia em escolas de ensino fundamental foi tomada pelo Distrito Escolar de Davis, e não pelo estado, como dão a entender as matérias que reproduziram o conteúdo internacional. A entidade é responsável pela educação pública na região de mesmo nome, que pertence ao estado de Utah.

A apuração do jornal local estadunidense aponta que a medida não foi tomada por decisão judicial, nem mesmo legislativa, mas se trata de um consenso do comitê de revisão do Distrito Escolar que vem analisando o pedido de um pai desde dezembro de 2022. O site gospel Pleno News afirmou se tratar de uma “ação judicial” movida pelos responsáveis do aluno, mas não há evidências de que o pedido tenha tramitado no sistema de justiça.

A decisão de recolher as Bíblias das bibliotecas escolares ocorreu em 1 de junho, e foi considerada para escolas de ensino fundamental do condado de Davis. A Bíblia não foi banida de todas as escolas de Utah e nem de todas as bibliotecas. O porta-voz do Distrito Escolar de Davis afirmou ao The Salt Lake Tribune que sete ou oito escolas que contavam com exemplares seriam alvo da remoção.

O parâmetro utilizado pelo comitê para o banimento também não foi o de considerar o livro sagrado para o Cristianismo como pornográfico ou indecente, mas por se compreender ser um conteúdo sensível, por abordar temas vulgares e violentos para crianças e adolescentes. Escolas de Ensino Médio continuarão com seus exemplares, outra informação que também foi distorcida nas versões brasileiras sobre o caso. 

Polêmica em torno da Lei que permitiu remoção da Bíblia

Em 2022, o Estado de Utah aprovou uma lei sobre materiais sensíveis nas escolas que permite que pais de alunos opinem sobre o acesso dos filhos a livros nas instituições e que peçam a remoção de determinados conteúdos das prateleiras das bibliotecas.

Imagem: reprodução do site do jornal Salt Lake City Tribune

Incentivada por grupos conservadores, a lei tinha como principal alvo textos sobre a comunidade LGBTQIA+. Assim, o dispositivo legal, aprovado em março de 2022, permitiu a remoção de livros que apresentassem conteúdo “pornográfico ou indecente”. Entre os livros que já foram alvos de remoção está, por exemplo, o romance “O Olho Mais Azul”, da escritora vencedora do prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison. O livro aborda questões de raça, padrões de beleza e aceitação social.

Ao final de 2022, porém, a mesma lei ensejou um pedido, apresentado pelo responsável de um aluno, para remoção da Bíblia das escolas, sob o argumento de que o livro sagrado seria um dos que têm mais conteúdo sexual.

O autor do pedido apresentou um documento de oito páginas em que listava passagens da Bíblia consideradas ofensivas e que mereciam uma apreciação. O código 76-10-1227 de Utah apresenta definições do que seriam “exibições públicas indecentes”, entre as quais se encontram, por exemplo, “descrições de sexo ilícito e imoralidade sexual”, e foi utilizado para sustentar a reclamação.

Segundo matéria da BBC News Brasil, o idealizador da lei sobre materiais sensíveis nas escolas Ken Ivory, chegou a se posicionar contrariamente à remoção da Bíblia das prateleiras escolares, mas teria mudado de ideia, sob a justificativa de que “tradicionalmente, na América, a Bíblia é melhor ensinada e compreendida em casa e em família”.

Casos semelhantes em outras regiões dos EUA

O Rev.Jorge Domingues ressaltou ao Bereia a existência de casos semelhantes nos Estados Unidos. “Um outro artigo diz que também há uma solicitação para banir o Livro dos Mórmons, o que é uma ironia pois o Estado de Utah é 68% Mórmom”, destaca. Domingues relembra, ainda, o banimento da Bíblia em escolas no Texas, em 2022, e destaca que “há várias iniciativas para banir a Bíblia em estados que aprovaram o banimento de outros livros considerados inapropriados”.

O portal norte-americano Education Week, que se dedica a publicar informações e notícias sobre o ensino primário nos Estados Unidos, já havia veiculadoartigo sobre a questão dos banimentos da Bíblia das bibliotecas escolares. Publicado antes do recente caso em Utah, o texto cita casos ocorridos na Flórida, no Texas e no Missouri.

Conforme apontado por Jorge Domingues, há notícias de que o Livro dos Mórmons passa pelo mesmo desafio enfrentado pela Bíblia, sendo também alvo de pedido de remoção no distrito escolar de Davis, Utah. O jornal The Salt Lake Tribune aponta o efeito em cascata dessa disputa.

Disputa de censuras

Sobre o fenômeno, o Rev. Jorge Domingues explica: “Várias leis estaduais têm sido aprovadas para banir livros considerados inapropriados por legisladores ou políticos conservadores e livros sobre, ou relacionados a, pessoas ou comunidade LGBT. Em resposta, indivíduos ou organizações têm usado estas leis para banir outros textos que contêm material inapropriado de acordo com a legislação. A Bíblia tem sido um desses livros”.

O diretor do programa Liberdade de Expressão e Educação Jonathan Friedman da PEN America – uma organização em prol da liberdade de expressão que monitora desafios relacionados aos livros – em entrevista ao Education Week,  diz que as recentes objeções à Bíblia “ocorreram como uma reação aos esforços para proibir tantos livros”.

A diretora do Escritório da Associação Americana de Bibliotecas para a Liberdade Intelectual Deborah Caldwell-Stone declarou ao portal que apesar dos desafios esporádicos, as reclamações que dizem respeito à Bíblia são, geralmente, uma tática para ressaltar os potenciais danos da censura.

“Quando você escolhe a censura como sua ferramenta para controlar o acesso à informação e controlar a capacidade dos indivíduos de aprender mais sobre várias ideias, inevitavelmente, isso vai varrer ideias e materiais com os quais você realmente concorda”, afirmou Caldwell-Stone.

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Bereia considera o conteúdo checado impreciso. A notícia veiculada pelos jornais Estado de Minas e O Estado de São Paulo, e repercutida por vários outros veículos, oferece conteúdo verdadeiro, mas carece da amplitude necessária para o completo entendimento dos acontecimentos.

Especialmente, a afirmação de que a remoção de Bíblias de bibliotecas escolares se deu pelo fato de o livro sagrado cristão  conter “sexo e violência”, como aparece na manchete, é imprecisa à luz do contexto mais amplo. Este permite afirmar que o banimento se deu em reação a outras censuras anteriormente implementadas, ainda que a decisão tenha se apoiado na previsão legal para retirada de conteúdos “pornográficos ou indecentes”.

Tais informações estão presentes no interior do texto veiculado pelos jornais Estado de Minas e Estadão. Há que se notar, no entanto, que a manchete, tal como foi apresentada, contribui para uma falsa ideia de perseguição contra cristãos, tanto mais em um contexto de rápido compartilhamento de informações pelas redes digitais, em que muitos leitores propagam manchetes como informações completas.

Não sendo o primeiro nem o último acontecimento relacionado a censura no país em questão, é fundamental o resgate do contexto para o real entendimento dos fatos. Em temas frequentemente utilizados para desinformar e criar pânico moral, como é o caso da falsa ideia de perseguição a cristãos, há de se adotar critérios ainda mais rígidos na elaboração de conteúdo informativo.

Referências de checagem:

Distrito Escolar de Davis, Utah. https://www.davis.k12.ut.us/ Acesso em: 6 jun 2023

H.B. 374. https://openstates.org/ut/bills/2022/HB374/ Acesso em: 6 jun 2023

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6p34rd5x7po Acesso em: 6 jun 2023

The Guardian. https://amp.theguardian.com/books/2023/jun/03/utah-school-district-book-of-morman-ban Acesso em: 6 jun 2023

npr. https://www.npr.org/2022/08/18/1117708153/bible-anne-frank-books-banned-texas-school-district Acesso em: 6 jun 2023

Vice. https://www.vice.com/en/article/epzv9j/texas-school-bans-the-bible Acesso em: 6 jun 2023

Education Week. https://www.edweek.org/teaching-learning/why-the-bible-is-getting-pulled-off-school-bookshelves/2022/12 Acesso em: 6 jun 2023

The Salt Lake Tribune.

https://www.sltrib.com/news/education/2023/06/01/bible-is-banned-these-utah/ Acesso em: 6 jun 2023

https://www.sltrib.com/religion/2023/06/02/book-mormon-now-challenged-utah/ Acesso em: 7 jun 2023

https://www.sltrib.com/news/education/2023/03/22/utah-parent-says-bible-contains/ Acesso em: 6 jun 2023

Utah Code 76-10-1227. https://law.justia.com/codes/utah/2006/title76/76_0c153.html Acesso em: 6 jun 2023

PEN America. https://pen.org/ Acesso em: 6 jun 2023

Britannica. https://www.britannica.com/topic/The-Bluest-Eye Acesso em: 7 jun 2023

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Foto de capa: Luis Quintero/Pexels

É verdade que STF derrubou obrigação de Bíblia em escolas e bibliotecas no Amazonas

No dia 13 de abril, o site gospel de notícias Pleno News publicou matéria na qual afirma que o STF havia derrubado a obrigação de escolas e bibliotecas públicas amazonenses manterem um exemplar da Bíblia em seus acervos. A decisão diz respeito à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) número 5258 e teve como relatora a ministra Carmen Lúcia. O relatório foi seguido por todos outros ministros da corte, em votação ocorrida em 12 de abril.

A lei contestada

A ADI tem como alvo a lei 74/2010 do Estado do Amazonas e foi requerida pelo então Procurador Geral da República Rodrigo Janot, em 2015, sob o argumento que a legislação contrariava o Artigo 19, inciso I, da Constituição Federal. No entanto, a ação foi incluída para julgamento apenas em 22 de março de 2021.

O trecho da Constituição referido pela ADI diz: “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”

De outro lado, a lei estadual teve os artigos 1º, 2º e 4º questionados, que trazem essas normas:

“Art. 1º – As unidades escolares da rede estadual de ensino e as bibliotecas públicas estaduais ficam obrigadas a manter em seus acervos ao menos um exemplar da Bíblia Sagrada. 
Parágrafo único. A obrigatoriedade prevista no caput não implica em restrição ou impedimento para a manutenção, nos acervos, de livros sagrados de outras tradições religiosas. 

Art. 2º – Os exemplares da Bíblia Sagrada deverão ser colocados à disposição de alunos, professores e demais usuários, em local visível e de fácil acesso.

Art. 4º – As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações consignadas no orçamento vigente”.

Lei nº 74/2010

A PGR argumentou que essa legislação fez com que o Estado do Amazonas tenha passado a promover a fé cristã quando seu dever constitucional é de não se identificar nem adotar uma visão de mundo de ordem religiosa, moral ou filosófica. Além disso, o questionamento é que ao obrigar a presença da Bíblia em escolas e bibliotecas, o Estado promoveu seus dogmas em prejuízo daqueles condenados pelo texto sagrado dos cristãos, o que seria uma afronta à laicidade do Estado.

Justificativa de inconstitucionalidade pela ministra do STF Carmén Lúcia

Os ministros do STF decidiram em unanimidade que é inconstitucional a lei estadual que obrigaria escolas e bibliotecas a manterem ao menos um exemplar da Bíblia em seus acervos. Em sua justificativa, a relatora ministra Carmén Lúcia observou que a lei fere o princípio da laicidade. “Na determinação da obrigatoriedade de manutenção de exemplar somente da Bíblia, a lei amazonense desprestigia outros livros sagrados quanto a estudantes que professam outras crenças religiosas e também aos que não têm crença religiosa alguma”, escreveu. A ministra também ressaltou que compete ao Estado ser neutro para preservar o direito fundamental à liberdade religiosa em favor dos cidadãos.

A decisão também reitera a manifestação da Procuradoria-Geral da República:

“Não se afirma que seja ilícito a escolas públicas a aquisição da Bíblia, do Corão, da Torá, dos épicos Maabárata e Ramáiana, do Bagavadguitá, da Codificação Espírita de Allan Kardec, dos Vedas ou de outros livros sagrados, pois todos são objetos culturais, além de obras de culto. Tê-los ao dispor dos alunos e usuários de suas bibliotecas é plenamente compatível com o acesso a obras relevantes que bibliotecas não especializadas devem promover. Inconstitucionalidade há, todavia, na imposição normativa de compra de apenas um desses livros tidos como sagrados, por parte da administração pública, com evidente privilégio a determinada manifestação religiosa” 

Decisão do STF

Outros casos semelhantes

Bereia já verificou outras tentativas de pautar a obrigatoriedade da leitura bíblica em escolas públicas em outras cidades do Brasil. Projetos de lei semelhantes já foram propostos em Xangri-Lá (RS), São Paulo (SP), Nova Odessa (SP) e vetados em todas as cidades. Em Manaus, a Lei n. 1.679/2012, que obrigava que todos os espaços públicos municipais de leitura dispusessem de um exemplar da Bíblia, já havia sido vetada pelo STF em 2019.

Segundo o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Estado laico é a condição de um país ou nação que adota uma posição neutra no campo religioso, não apoiando ou discriminando qualquer religião. “Assim, tem-se que laicidade é a doutrina filosófica que defende e promove a separação entre Estado e religião ao não aceitar que haja confusão entre o Estado e uma instituição religiosa qualquer, assim como não aceitar que o Estado seja influenciado por determinada religião”, explica. 

Conclusão

Bereia verifica, portanto, que a notícia publicada por Pleno News de que o STF  derrubou a obrigação de Bíblia em escolas e bibliotecas no Amazonas é verdadeira. Os ministros decidiram por unanimidade que a Lei é inconstitucional pois fere o princípio do Estado laico. A decisão ressalta que a inconstitucionalidade não está em ter obras religiosas na biblioteca, mas a imposição normativa de compra de apenas um desses livros tidos como sagrados, por parte da administração pública. O amplo esclarecimento sobre a inconstitucionalidade do caso é muito relevante no contexto de publicações religiosas, uma vez que tal tipo de notícia pode ser usada em desinformação sobre suposta perseguição do STF a cristãos.

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Foto: Pixabay/Reprodução

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Referências

STF, http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4727836. Acesso em 14 de abril de 2021.

Consultor Jurídico, https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/lei-amazonas-exige-biblia-escolas-inconstitucional. Acesso em 14 de abril de 2021.

Assembleia Legeslativa do Estado do Amazonas, https://sapl.al.am.leg.br/media/sapl/public/normajuridica/2010/9014/9014_texto_integral.pdf. Acesso em 14 de abril de 2021.

Planalto, http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 14 de abril de 2021.

STF, http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15321807264&ext=.pdf. Acesso em 14 de abril de 2021.

STF. https://www.conjur.com.br/dl/lei-amazonas-exige-biblia-escolas.pdf. Acesso em 15 de abril de 2021.

Coletivo Bereia. https://coletivobereia.com.br/materia-sobre-obrigatoriedade-da-leitura-biblica-nas-escolas-publicas-de-xangri-la-rs-e-imprecisa/. Acesso em 15 de abril de 2021.

Jus Brasil. https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/692169711/recurso-extraordinario-re-1191849-am-amazonas. Acesso em 15 de abril de 2021.  Jus Brasil, https://jus.com.br/artigos/11457/tomemos-a-serio-o-principio-do-estado-laico. Acesso em 15 de abril de 2021.