O eterno desafio das identificações religiosas – parte 2

A linearidade problemática entre religião e política

Nesse sentido, é essencial distinguir – de um ponto de vista analítico – duas dimensões dentro do mesmo fenômeno que vincula política e religião: por um lado, a instrumentalização política da religião, ou seja, como certos líderes usam a religião para canalizar seus interesses particulares. Por outro lado, os processos de identificação política que ocorrem dentro das bases religiosas, que nem sempre coincidem com os objetivos desses líderes, embora possam ser articulados em determinados momentos.

É nesse ponto que podemos localizar o papel do pastor Silas Malafaia. Seguindo Ernesto Laclau, poderíamos dizer que esse pastor não é tanto um “líder” – em termos institucionais – que mobiliza as massas, mas sim um significante ou uma figura simbólica que condensa múltiplos posicionamentos presentes na discursividade coletiva, que podem ser diferentes – e até mesmo opostos – aos seus.

No entanto, não podemos nos esquecer de que um documentário, como uma obra de arte, requer determinados personagens para criar um fio narrativo. Portanto, devemos ter cuidado ao fazer uma relação tão linear entre essa figura religiosa e certas conclusões sociopolíticas da análise, para não atribuir ao documentário afirmações que ele não pretende.

Acredito que a simplificação mais importante que esse documentário nos deixa não está tanto em sua visão do “evangélico” como uma identidade particular, mas na maneira como ele aborda a relação entre religião e política. Como em outras narrativas contemporâneas, ele insiste em pensar nessa relação de forma unidirecional, abstrata e essencialista, sem levar em conta a complexidade dos motivos pelos quais as pessoas vinculam sua fé – ou o desempenho de sua fé – a determinados eventos políticos.

Deve-se observar que essa observação não tem a intenção de diminuir o objeto do documentário ou diluir o impacto das vozes documentadas. Pelo contrário, o objetivo é tornar seu impacto mais complexo, tendo em mente que, como pano de fundo, existem redes que fazem desse fenômeno, não tanto o surgimento de um bloco que vence por seu peso ou extensão demográfica. Pelo contrário, vence por sua capilaridade em fissuras e raízes muito sub-reptícias que precisamos perceber para explicar sua extensão real, limitação e potencial, elementos que também influenciam o futuro de outros grupos e vozes.

Apocalipse?

Gostaria de encerrar com uma observação teológica. O uso do termo “apocalipse” como eixo simbólico do documentário pode correr certos riscos, pelo menos se não for possibilitada uma abertura hermenêutica mais ampla. Entendo que sua inclusão responde a uma estratégia narrativa da diretora, que incorpora expressões que surgiram durante a pandemia e, em particular, aquelas ligadas à teologia da dominação nesses setores. Essa decisão me parece sensata, pois o impacto das narrativas teológicas é frequentemente omitido nas análises sociopolíticas.

Entretanto, o uso dessa figura bíblica reproduz e reforça as simplificações mencionadas anteriormente, sugerindo que essa interpretação é a única presente no campo evangélico. Afirmar que o Apocalipse é “uma guerra que culmina em paz” é uma leitura altamente discutível nesse contexto. Certamente, ela representa uma das possíveis abordagens do texto bíblico. Porém, em sua raiz, o Apocalipse é uma narrativa política, escrita para posicionar uma comunidade crente em resistência ao Império Romano.

Teria sido valioso incorporar essa leitura alternativa – que, de fato, é mais apropriada em contraste com o literalismo refletido no documentário, até mesmo na própria narração em off. Isto para mostrar que, desde suas origens, o Cristianismo e sua interpretação bíblica envolvem uma luta de significados que reflete as complexas identificações sociopolíticas que o atravessam. Ainda, que esta religião não é necessariamente uma identidade “apocalíptica” no sentido mencionado acima.

Essa leitura teria possibilitado a apresentação de um quadro mais matizado – e mais preciso – das relações emaranhadas entre o campo evangélico e a democracia.

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Leia a parte 1 do artigo aqui.

‘Apocalipse nos Trópicos’ faz leitura alegórica e conservadora de Apocalipse

*** Artigo publicado por Carta Capital, em 23 de julho de 2025.

Apocalipse nos Trópicos, o documentário de Petra Costa que aborda a destacada relação entre evangélicos com a política no Brasil nos últimos anos, é competente na reconstituição da história recente do Brasil. O filme destaca, com mérito, como os fatos que colocaram o país nos trilhos do extremismo de direita foram alimentados pela instrumentalização da fé cristã, particularmente a evangélica, como estratégia política de convencimento por apoio e manutenção do poder – tema insistentemente tratado neste Diálogos da Fé desde 2017.

A qualidade da produção, contudo, não elimina tropeços na abordagem. Vários deles já apontados em comentários na imprensa e nas redes sociais: a outorga ao pastor Silas Malafaia do papel de porta-voz do segmento; a homogeneização dos evangélicos na figura dos pentecostais; a suposição de que apenas essa parcela apoiou o bolsonarismo; o contraste simplista entre “católicos da Teologia da Libertação” — vistos como redentores — e evangélicos, pintados como vilões; a exposição da “teologia do domínio” como teoria conspiratória.

O resultado, infelizmente, é mais desinformação e intolerância do que debate sobre o lugar da fé na esfera pública. Neste texto, contudo, quero me deter em um aspecto pouco abordado nas críticas, e que talvez tenha sido o que mais me incomodou: a leitura alegórica, fundamentalista e conservadora do livro do Apocalipse como eixo explicativo da relação fé-política no Brasil.

Há séculos o Apocalipse carrega má fama. Seu texto hermético, repleto de símbolos, alimentou a ideia de que seria um catálogo de desgraças futuras. Daí o termo “apocalipse” ter virado sinônimo de ruína, aniquilamento, desgraça, fim do mundo. Não por acaso, o nome é também título de outra obra cinematográfica, ganhadora da Palma de Ouro em 1979, Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, um épico sobre a terrível Guerra do Vietnã.

Essa visão nasce de uma leitura literalista da Bíblia, que ignora contexto histórico, cultural e as ciências bíblicas (arqueologia, a literatura comparada, a história, a filologia, as ciências humanas e sociais). Desta leitura brotou o imaginário do fim do mundo decretado por Deus, com a derrota de Satanás e de todos os seus representantes e a salvação dos crentes em Jesus. Por isso já foram marcadas várias datas para o fim do mundo, detectados vários anticristos e identificadas distintas práticas e costumes alinhadas com a visão do mal contida no texto. 

Apocalipse nos Trópicos abraça exatamente essa chave hermenêutica: tal como certos fiéis veem a “besta” do capítulo 13 no Papa, o filme atribui alegoricamente “aos evangélicos” a destruição do Brasil.

A opção pelo fundamentalismo eclipsa outra leitura, mais esperançosa. Estudos bíblicos mostram que o Apocalipse é uma carta, escrita cerca de 90 d.C. por João, exilado em Patmos, dirigida a comunidades cristãs perseguidas pelo Império Romano. A linguagem cifrada servia para driblar a censura.

O texto denuncia um sistema que, legitimado pela religião, concentrava poder econômico, explorava os pobres e impunha culto ao imperador. Ao mesmo tempo, animava os cristãos a resistir, apontando para “um novo céu e uma nova terra”

Todas as visões de João relatadas no livro diziam respeito à situação de perseguição em que se encontravam as pessoas das igrejas naquele momento. Há referências muito duras ao Império Romano e seus apoiadores, como a figura da Besta que emergia do mar (trajeto das invasões romanas) e do anticristo. E são muitas, também, as representações da esperança.

A carta foi escrita para e sobre aquele exato tempo. Não para pregar uma destruição futura, mas para afastar o medo e espalhar esperança no presente. Sua mensagem central é de esperança ativa contra impérios opressores — inclusive os de hoje: o poder econômico-financeiro excludente, o autoritarismo, a intolerância, as milícias políticas. Há, sim, quem invoque Jesus para sustentar tais impérios, como mostram apoios religiosos a Donald Trump e, aqui, a Jair Bolsonaro. Mas também há quem resista.

Reduzir o Apocalipse a presságio de destruição é por demais simplista. E, no fim das contas, se coaduna com o tratamento igualmente simplista e descontextualizado dado aos evangélicos em Apocalipse nos Trópicos. 

Uma pena! A ideia de tomar o livro do Apocalipse é muito boa, pois vivemos tempos muito semelhantes àquele da carta joanina. O Apocalipse convida a superar o medo e, pela fé, vislumbrar um futuro de justiça. Essa deveria ser a mensagem para hoje — e o debate que o documentário poderia ter provocado.

Estátua em frente à ONU é interpretada como a besta do Apocalipse

  • Matéria atualizada em 15/12/2021 Às 18:38

Uma estátua colocada na praça da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, em 4 de novembro passado, marca a presidência do México no Conselho de Segurança da ONU e foi um presente daquele país. No Brasil, mídias religiosas  começaram a postar mensagens contra a estátua, que acusam ser a besta do Apocalipse.

Imagem: reprodução Portal do Trono

No início de dezembro, a notícia sobre uma estátua em frente ao prédio da ONU que foi presente do México à Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York,  começou a repercutir em mídias sociais religiosas. Nas postagens a estátua era comparada ao animal híbrido  descrito no livro bíblico de Apocalipse, capítulo 13, verso 2: “A besta que vi era semelhante a um leopardo,  mas tinha pés como os de urso e boca como a de leão.  O dragão deu à besta o seu poder, o seu trono e grande autoridade.”

A partir das publicações que afirmam a semelhança entre a estátua mexicana e o animal híbrido do livro de Apocalipse, comentários sobre o caso se seguiram em espaços digitais evangélicos. Boa parte deles dizia que a estátua da ONU “faz parte desse complexo para implementar a nova ordem da chegada do anti-Messias”. Também foi comentado que “o anti-Cristo poderá ser a ONU ou até mesmo algum líder de dentro da organização”.

Também o pastor Antônio Junior, bem conhecido por parte de evangélicos brasileiros enfatizou a semelhança da estátua da ONU com o animal no texto do livro de Apocalipse e aconselhou seus seguidores a ficarem atentos: “Não temos que ver os acontecimentos dos últimos dias como 

como algo assustador, mas sim como o tempo em que Jesus voltará e derrotará o inimigo de uma vez por todas”.

O que é a estátua, e qual a sua origem

O Mexico ocupa um assento rotativo no Conselho de Segurança da ONU desde o início deste ano, com um mandato até o fim de 2022. A estátua foi apresentada à ONU e ao mundo pelo embaixador mexicano Juan Jamón de la Fuente, por meio de um vídeo, como o “símbolo guardião da paz e segurança internacional” para os anos de 2021 e 2022 no Conselho de Segurança da ONU.

O embaixador deu as boas vindas ao novo Guardião da Paz, uma estátua de madeira, de dimensões grandes feita pelos artesãos mexicanos Juan e Maria Angeles e considerada um “alejibre”. A arte de alejibres trabalha com esculturas muito coloridas e criaturas fantásticas e faz parte do folclore mexicano.

Imagem: carro de desfile de alejibre / Pixabay

De acordo com la Fuente, a escultura foi um presente do governador do estado mexicano de Oaxaca, Alejandro Murat, entregue à ONU no mês de novembro deste ano, que está sendo marcado pela esperança de um futuro seguro e pacífico,  com base nos apelos  feitos pelo Reino Unido durante a COP26 que aconteceu em Glasgow, Escócia. Na ocasião, os representantes daquela nação que acolheu o evento da ONU, conclamaram os líderes mundiais a entrarem num consenso para o estabelecimentode projetos que garantam a segurança das gerações futuras no planeta.

Ambivalência do símbolo

Bereia conversou com o professor e pesquisador do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Campinas e  especialista em Apocalipse, Paulo Nogueira.

De acordo com o pesquisador,o que aconteceu foi mesmo uma ambivalência  do símbolo. “O símbolo como animal mitológico híbrido, pode ter significados diferentes em diferentes culturas. Como, por exemplo, a serpente, que nas culturas judaica e cristã tem um sentido negativo. Quando S.Tomé vai à Índia pregar, segundo os relatos apócrifos de Tomé, que é uma narrativa ficcional, ele enfrenta a serpente, a naja, que é uma figura divina, positiva para os indianos, como se ela fosse a serpente que introduz o  pecado e a queda do ser humano”. 

O professor explica que por isso, “a serpente para uma cultura pode ser positiva, enquanto para outra negativa”. 

Da mesma forma, Nogueira lembra do dragão, que é um símbolo de fertilidade para os chineses e para as culturas mediterrâneas, e, que especialmente  para a cultura hebraica, é uma figura que representa o caos e o demoníaco. “Neste caso da estátua da ONU, nós tivemos uma infeliz coincidência, porque este animal realmente se parece com o monstro híbrido de Apocalipse 13, que é uma força caótica personificada pelo Império Romano”, afirma o professor. Ele lembra que os primeiros cristãos entendiam, segundo Apocalipse capítulo 13, que o Império Romano não era só um poder econômico e político, mas era uma força do mal, idólatra, opressiva, violenta”. 

Porém, para o professor de Ciências da Religião, o símbolo mexicano é positivo, pois  “vem de uma religiosidade mexicana,  pré-cristã e pré-colombiana e, ali tem um significado positivo”, explica.

Imagem: outros exemplos de alejibres do folclore mexicano

O professor continua com exemplos lembrando o touro colocado  em frente à Wall Street em Nova York, e que recentemente foi colocado também frente à Bovespa, em São Paulo (inclusive, já retirado).

“Provavelmente, ali o touro tem o  significado de pujança. Existe este tema do touro como um animal mítico da cultura ibérica, um animal potente. Mas na cultura bíblica o bezerro de ouro é sinônimo de idolatria, a traição do povo judeu no Êxodo, que resolve adorar um bezerro de ouro enquanto Moisés estava recebendo a Torá diretamente das mãos de Deus”.

Nogueira explica que os símbolos são ambivalentes, não têm um significado em si mesmos nem têm uma essência. Os símbolos significam o que significam na relação com  outro símbolo, dentro de uma dada cultura. 

“Então, realmente, a estátua presenteada pelo México que foi colocada em frente à ONU lembra muito o animal híbrido,o do primeiro monstro do Apocalipse de João. Mas ele é uma evocação deste monstro? Não”,  afirma. Paulo Nogueira explica que a escultura de madeira é uma arte mexicana, pré-colombiana, e como já dito, os símbolos são ambivalentes. 

Numa cultura podem ter um significado e em outra, outro significado bem diferente”, reforça o professor, que conclui: “Monstros e seres híbridos são muito comuns nas culturas, nas mitologias. E eles não têm sempre um significado negativo ou positivo”.

Com base nesta verificação, Bereia considera que a avaliação de lideranças religiosas de que a estátua presenteada pelo México à ONU é uma representação da besta do Apocalipse é enganosa. Estes líderes e as mídias que repercutem seus comentários usam de um trecho da Bíblia descontextualizado e do desconhecimento das pessoas em relação a símbolos culturais, no caso o Mexicano, e em relação às atividades da Organização das Nações Unidas para fazerem críticas às ações do organismo e alimentarem teorias conspiratórias.

Referências de checagem:

United Nations.  https://news.un.org/pt/story/2021/12/1772602. Acesso em: 13 dez 2021.

Indicatu. https://www.indicatu.com.br/noticia/743/onu-inaugura-monumento-guardiao-da-paz-e-seguranca-internacional-para-2021-e-2022. Acesso em: 13 dez 2021.

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/11/touro-de-ouro-da-b3-e-removido-apos-determinacao-de-comissao.shtml  Acesso em: 13 dez 2021.

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Foto de capa: ONU/Manuel Elias

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