Argumento de ameaça comunista para justificar golpe militar em 1964 é falso
Como resposta ao chamado de militares no governo do Brasil para celebração dos 57 anos do golpe militar de 1964, que levou aos 21 anos de ditadura violenta e sangrenta no País, líderes religiosos e fiéis, apoiadores do governo federal, ocuparam espaços digitais religiosos neste 31 de março, exaltando a ação golpista. Um dos argumentos mais utilizados para se defender e exaltar o golpe que derrubou o Estado democrático, é a de que os militares salvaram o Brasil do comunismo que seria implantado. Há ainda outras justificativas como fim da corrupção, ajuste positivo da economia e redução da violência. Foram publicadas diversas mensagens como esta:
Bereia reproduz aqui conteúdo publicado pelo projeto de verificação de notícias UOL Confere, construído a partir da pergunta: “o golpe militar de 1964 foi dado para evitar que o Brasil escapasse das garras do comunismo?” e o material “10 mentiras sobre a ditadura militar no Brasil” produzido pela Associação de Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Nunca existiu ameaça comunista no Brasil
Jornalistas e especialistas mostram que esta justificativa usada até hoje esconde documentos do próprio Exército que mostram que a “ameaça comunista” no país não era real. Diz o texto do UOL Confere:
O mundo vivia em meio ao contexto da Guerra Fria, cenário de polarização internacional que teve, entre outros elementos, embates sobre capitalismo, socialismo e comunismo. A agenda reformista do então presidente João Goulart levou alas conservadoras a temerem uma proximidade com regimes comunistas implementados em outros países, como Cuba. Mas um informe do SNI (Serviço Nacional de Informações) já citava o desgaste do comunismo na Europa Ocidental. Os militares também analisaram que não havia clima para a instalação do comunismo por conta das contradições “por demais violentas” do Brasil e que o povo não aceitaria “pacificamente as influências externas”.
A ditadura durou 21 anos no Brasil. Em 1968 foi decretado o AI-5 (Ato Institucional nº5), que endureceu a repressão, cassou mandatos, fechou o Congresso, e ampliou perseguições, torturas e mortes de opositores. A Ditadura usou imprensa e ameaças à “ordem” e à “moral” para impor o AI-5.
Historiador e professor da UFRJ, Carlos Fico disse à BBC, em 2019, que tentativas de implantar o comunismo no Brasil partiram de movimento tímidos e sem apoio da maioria da população. Ele também avaliou que mesmo as ações armadas de movimentos de esquerda não foram suficientes para ameaçar os militares.
10 mentiras sobre a ditadura
1) Não havia corrupção durante a ditadura
Apesar do combate à corrupção ter sido uma das bandeiras defendidas pelos militares ao darem o golpe de 1964, não faltaram superfaturamento, desvio de verbas, desvio de função, abuso de autoridade, tráfico de influências, entre outras ilicitudes ao longo dos anos de chumbo.
A condição autoritária do regime militar formava as condições ideias para que a corrupção acontecesse. Sem nenhum tipo de conselhos de fiscalização, com o Congresso Nacional dissolvido, as contas públicas não eram sequer analisadas. Além disso, os escândalos de corrupção eram abafados por conta da censura.
Hoje em dia, documentos comprovam que os militares mantinham relações com o contrabando, negociavam por meio de acordos milionários as nomeações de governadores dos estados e ministros, além de receberem propinas milionárias por meio de empreiteiras. Também cometiam irregularidades imobiliárias e outras ilegalidades.
2) Só morreram vagabundos e “terroristas”
Os movimentos sociais tiveram enorme protagonismo no enfrentamento à repressão dos militares durante a ditadura. Estudantes, professores, sindicalistas, indígenas e membros de organizações sociais que se mobilizavam contra as arbitrariedades do regime eram considerados subversivos e consequentemente, eram perseguidos.
Movimentos sociais e de organização da classe trabalhadora se tornaram ilegais e passaram a acontecer na clandestinidade. A União Nacional dos Estudantes teve líderes e membros desaparecidos. Outras formas de resistência, como a luta armada, obrigaram muitos militantes a sobrevivência na clandestinidade.
Mas o mais importante é apontar que os militantes torturados e mortos eram sujeitos, trabalhadores, estudantes, que tinham uma vida profissional, acadêmica e família. Eles acreditavam em uma causa e escolheram atuar na luta social em prol dessa causa e foram assassinados por isso.
Mesmo assim, não foram apenas os membros de grupos oposicionistas que foram atingidos. Familiares, vizinhos, trabalhadores comuns e camponeses também foram perseguidos e assassinados pelos militares. Alguns dos casos mais chocantes envolvem crianças filhas de presos políticos, que foram sequestradas, presas e torturadas junto aos pais por serem consideradas “subversivas” e “perigosas à Segurança Nacional”.
3) A tortura foi excesso de alguns
Quando militantes eram capturados pelos militares, passavam por sessões de tortura com requintes de crueldade para que revelassem informações. Há anos historiadores refutam a tese de que a tortura foi exclusividade de militares “linha dura” e, recentemente, um documento secreto de 1974, liberado pelo Departamento de Estado dos EUA confirma a teoria de que os presidentes não apenas sabiam, como tomavam para si a responsabilidade sobre as execuções e torturas.
No documento, o ex-presidente Ernesto Geisel, visto como moderado por alguns, aprova uma política de “execuções sumárias” de adversários da ditadura militar. O ex-presidente orienta o então chefe do Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, a autorizar pessoalmente os assassinatos.
Principalmente depois do AI-5, em 1968, a tortura foi uma prática sistemática nas instalações do Estado que exigia recursos, equipamentos e pessoal qualificado. Até médicos participavam das sessões de tortura para reduzir os danos físicos perceptíveis e avaliar a resistência dos presos para garantir que pudessem continuar sendo violentados.
Uma apostila do Centro de Informações do Exército intitulada Interrogatório reconhecia a necessidade de “métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”. E para transmitir as técnicas de como promover as sessões de tortura, os militares até organizaram aulas práticas, nas quais presos políticos sofreram as violências enquanto uma plateia de sargentos e oficiais aprendiam as técnicas.
Documento importante sobre o assunto foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, desenvolvido clandestinamente entre os anos de 1979 e 1985. Mais de 30 brasileiros liderados por Dom Evaristo Arns e outros religiosos sistematizaram informações de processos do Supremo Tribunal Militar que revelaram a repressão política no Brasil encoberta até o momento. O relatório completo e o livro publicado pela Editora Vozes denunciam perseguições, assassinatos, desaparecimentos e torturas praticadas em delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo Estado. Os documentos foram fundamentais na identificação e denúncia de torturadores.
4) Naquela época tinha saúde e educação
Para tentar diminuir os índices de analfabetismo da população brasileira, que nas décadas anteriores à ditadura incluía quase metade da população brasileira maior de 15 anos, o regime militar instituiu o Movimento Brasileiro para Alfabetização. A metodologia do Mobral foi uma tentativa de frear o método do educador Paulo Freire, que ganhava notoriedade e era um sucesso reconhecido e aplicado em todo o mundo.
Já para impor a ideologia do regime, foi implementada a Doutrina de Segurança Nacional nas escolas do país que, entre outras coisas, substituía as disciplinas de Filosofia e Sociologia por “Educação, Moral e Cívica”.
No entanto, o regime militar parecia interessado apenas em controlar o conteúdo que era aprendido nas escolas. A Constituição de 1967 retirou a obrigatoriedade constitucional de um valor mínimo em gastos sociais, o que acarretou, entre 1965 e 1975, uma queda de 6,2% do Orçamento Geral da União em educação e uma redução de 3,31% do orçamento em saúde entre 1966 e 1974. A precariedade do sistema educacional de antes do período militar se manteve e foi ampliada.
Em relação à saúde pública, não existiam garantias constitucionais da saúde como um direito social. Não existia o Sistema Único de Saúde (SUS) e também não existiam planos de saúde particulares. Durante os 21 anos de ditadura militar no Brasil, imperou uma política de Estado de incentivo à privatização da área, ou seja, a saúde era tratada pelos militares como um negócio (que por sua vez, era altamente lucrativo). Só tinha acesso à assistência médica quem tinha carteira assinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que era realizado, em grande parte, por clínicas privadas. Quem não estivesse incluído neste grupo privilegiado, era tratado como indigente.
5) A ditadura foi boa para a economia
Mais um argumento comum dos defensores da ditadura é a conquista do “milagre econômico” ocorrido na época, principalmente entre os anos de 1968 e 1973. De fato, os números apontam um crescimento exponencial do Produto Interno Bruto (PIB). Mas pouco se aponta que esses números beneficiaram os empresários às custas dos salários dos trabalhadores e de um alto endividamento externo.
Para que o “milagre” funcionasse, os militares implementaram medidas que continham o salário dos trabalhadores, mudando a fórmula que previa o reajuste salarial por meio da inflação. “É preciso crescer o bolo para depois distribuí-lo”, é o que afirmavam o ministro da Fazenda dos militares, Antônio Delfim Neto. Para que não houvesse oposição popular às medidas, foram implementadas leis proibindo greves e sindicatos e movimentos sociais eram reprimidos sistematicamente.
Os ganhos reais do crescimento econômico foram distribuídos de forma desigual, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social a níveis nunca vistos antes.
6) Não tinha violência urbana
É sempre importante lembrar que não existia liberdade de imprensa durante o período militar, já que a censura estava estabelecida dentro da burocracia do regime. Ou seja, o que não estava de acordo com os interesses do governo militar, simplesmente não era noticiado.
No que tange a violência urbana, o regime criou a imagem pública de que o país vivia um período de paz quando na realidade, uma escalada do aumento da violência assolava os principalmente centros urbanos. Os dados sobre o número de homicídios no período apontam um aumento exponencial. Em São Paulo, por exemplo, em 1968, a cidade registrou 10,4 mortos por 100 mil habitantes, o que é considerado nível epidêmico pela Organização Mundial da Saúde.
Em resposta ao aumento da violência urbana, agrupamentos policiais começaram a formar grupos de extermínio, criados explicitamente com o objetivo de assassinar bandidos comuns. Foram inúmeras as estratégias de ação desses grupos, uma delas era retirar presos comuns das celas e executá-los em estradas vazias.
Esse tipo de prática aumentou a criminalidade nas periferias, já que os homicídios iniciam uma cadeia de vingança e também porque o assassinato se mostrava como um meio possível de resolver disputas simples ou reagir a ameaças.
7) Antes da ditadura, o Brasil estava à beira do comunismo
No Brasil do início da década de 1960, o presidente João Goulart, defendia uma proposta de governo com uma série de reformas estruturais no Brasil: as Reformas de Base. As medidas se estenderiam às áreas educacional, fiscais, agrárias, entre outras.
A elite agrária e o empresariado que apoiaram o golpe, viam as medidas de Jango como ameaças e criaram conspirações sobre a possibilidade de um golpe socialista do presidente e sua suposta associação à URSS. As relações de Jango com as questões trabalhistas e a proximidade que ele havia estabelecido com ideias sobre justiça social fez com que as alas mais conservadoras das Forças Armadas pedissem a cabeça do presidente.
Jango não era comunista, nem socialista. O presidente democraticamente eleito já havia sido ministro de Estado de Juscelino Kubitschek e de Getúlio Vargas, portanto se aproximava de um espectro mais populista do campo político.
Em depoimento a um historiador americano no ano de 1967, quando o ex-presidente se encontrava exilado no Uruguai, Jango relatou acreditar que houve um “envenenamento” de sua imagem para a opinião pública. “Justiça social não é algo marxista ou comunista”, afirmou o ex-presidente, que acreditava ainda que seu maior crime foi tentar combater a ignorância. A entrevista só veio a público 47 anos depois, em 2014, quando foi publicada pelo jornal Folha de São Paulo.
8) A ditadura foi um governo só de militares
Conhecida principalmente pelo governo de militares, a ditadura que vigorou no Brasil passou a ser chamada por inúmeros historiadores de civil-militar, como forma de apontar a participação direta de empresários, imprensa e outros setores da sociedade civil no regime. Especialmente os empresários tiveram um papel decisivo no regime, contribuindo com dinheiro vivo, financiando propagandas, delatando e perseguindo trabalhadores envolvidos com movimentações sindicais, permitindo que militares se infiltrassem nas fábricas e até utilizando as dependências das fábricas como local para torturas.
Lúcio Bellentani era militante do Partido Comunista Brasileiro e trabalhou na Volkswagen entre os anos de 1964 e 1972. Ele contou, na Comissão da Verdade, que começou a ser torturado dentro das dependências da fábrica, no dia 28 de abril de 1972. Com a abertura de importantes arquivos da ditadura, ficou evidente que a relação entre a empresa e o regime não era pontual, mas sim sistemática: foram encontrados mais 400 documentos assinados por responsáveis da empresa.
Um caso muito conhecido de relação direta entre empresários e o regime militar é o de Henning Boilesen, executivo do grupo Ultra. O sádico dinamarquês que chegou a ser presidente da Ultragaz não apenas levantava recursos para as operações de repressão, como participava pessoalmente das sessões de tortura. Ele foi o responsável por trazer, dos Estados Unidos, um aparelho de tortura por eletrochoque que depois se popularizou entre os militares.
9) Todos os militares apoiaram o regime
Apesar da imagem aparentemente coesa, os militares não formavam um grupo homogêneo e bem coordenado. Na verdade, as Forças Armadas estavam divididas. De um lado, haviam oficiais fiéis a Jango nos altos postos do Exército e no também no baixo escalão. Em contrapartida, o lado conservador também era composto por dois grupos: um mais legalista, que apostava em uma intervenção cirúrgica para retirar da política “corruptos” e “subversivos”, e outro mais “linha dura”, mais preocupado com a “revolução” anticomunista.
Com o acirramento das disputas políticas em 1964, vários cenários golpistas se esboçaram, e com o golpe praticado pelo lado conservador, houve resistência em São Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul. Em consequência, os militares resistentes também foram perseguidos. Estima-se que cerca 7500 membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das corporações por se oporem à ditadura.
No entanto, o entendimento de que também houve perseguição dentro das Forças Armadas não valida a tese de que alguns presidentes militares eram mais brandos do que outros. Durante o governo dos quatro presidentes militares, opositores foram perseguidos, houve censura, direitos políticos foram cassados, dentre outras violações de direitos humanos.
10) A Igreja Católica apoiava o regime
A Igreja Católica teve um papel fundamental de apoio para consolidação do golpe militar no Brasil. A moralidade e a ordem conservadoras defendidas pelos militares se alinhavam à movimentos religiosos como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, organizada e financiada por setores da elite empresarial-militar que acreditavam na “ameaça do comunismo”.
No entanto, apesar de profundamente hierárquica, a Igreja Católica também tem fissuras internas. Durante o período militar, um movimento importante dentro da igreja atuou diretamente contra o regime. Orientados pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reivindicavam melhorias nas condições de vida da população. O movimento combatido pela própria Igreja por ser porta de entrada para ideias subversivas.
Além disso, já na década de 1970, clérigos mais progressistas, como D. Hélder Câmara, denunciavam internacionalmente as torturas e violações de direitos humanos cometidas pela Ditadura no Brasil. Quando as repressões da ditadura começaram a atingir a cúpula da Igreja, os clérigos se reuniram e escreveram uma carta ao presidente Médici em protesto. Posteriormente, a Igreja também criou uma Comissão de Justiça e Paz, o projeto Brasil: Nunca Mais, que coletou processos judiciais movidos contra presos políticos.
A busca da verdade
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, instituída por lei federal em 2012, 424 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura militar. A Lei da Anistia (1985) perdoou crimes políticos cometidos por agentes do Estado no regime e é duramente criticada pela ONU e por outros organismos internacionais. Entre os mortos e desaparecidos citados na CNV estão sete cristãos.
Em relação às violações de direitos sofridas por pessoas cristãs (capítulo 4 do volume II do Relatório Final da CNV), pelo menos 352 cristãs e cristãos foram atingidos.
273 pessoas católicas foram presas, entre bispos, padres, religiosos, agentes de pastoral, pessoas leigas da igreja. Entre católicos, 18 foram assassinados ou se tornaram desaparecidos pelo regime (quatro padres, três religiosos e religiosas); 17 foram banidos, expulsos ou exilados, todos depois de prisão e tortura. Um bispo foi sequestrado e humilhado (deixado nu na rua com o corpo pintado) por agentes do Estado, D. Adriano Hipólito, da Diocese de Nova Iguaçu. A Catedral de Nova Iguaçu teve altar explodido.
22 evangélicos foram presos, dois pastores – 13 eram metodistas, sete presbiterianos, uma luterana e um assembleiano; sete foram assassinados ou desaparecidos (quatro metodistas e três presbiterianos), 14 foram banidos, expulsos ou exilados a maioria depois de prisão e tortura.
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O Coletivo Bereia classifica como falsa toda e qualquer publicação que apresente argumentos de exaltação de uma ditadura. Episódios como este na vida de um país devem ser lembrados como processo educativo para que sejam superados e não mais se repitam.
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Foto de capa: Arquivo Público do Estado de São Paulo/Reprodução