Evangélicos à direita sobre as mortes nos Complexos da Penha e do Alemão (RJ)

*Publicado originalmente no blog Religião em Debate


Ganhou grande repercussão o pronunciamento do pastor assembleiano e deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ) sobre as dezenas de mortes e de feridos provocadas pela “megaoperação” policial nos complexos de favelas da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 2025.

Otoni relatou que ao menos quatro membros de sua igreja foram mortos, apesar de não terem qualquer relação com o crime organizado. Em seu discurso, defendeu a ordem e o combate às facções que destroem vidas nas favelas e na cidade, mas não se calou diante do massacre ocorrido. Com emoção, lembrou que seu filho frequenta a região para evangelizar e que teme por sua vida diante de ações policiais como aquela. Um homem negro na favela, “se estiver de sandalha havaiana e correndo, ainda por cima”, é automaticamente visto como bandido pelo Estado e pela sociedade em geral, lamentou o deputado.

Em seu pronunciamento fez questão de dizer que é um pastor do tipo “não progressista”. Esse seria um modo de limpeza moral própria diante do duplo estigma sobre “evangélicos de esquerda ou progressistas”: a de não serem “verdadeiramente evangélicos” (Vital da Cunha 2021), o de estarem “ao lado dos bandidos”, tal como extremistas de direita costumam dizer em relação aos defensores de direitos humanos no Brasil e em outros países das Américas e Europa (Passos e Sanchez 2025) .

Seu irmão de fé e deputado federal, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), também não ficou em silêncio. Durante sessão na Câmara, a bancada do PL, seu partido, propôs um minuto de aplausos às mortes resultantes da operação. Sóstenes reagiu de imediato: “Vocês estão loucos”, disse. Parecia se levantar ali uma voz pastoral, de um político identificado à direita radical, mas que diante dos fatos se posicionava em favor de mulheres e homens de sua base religiosa que sofreram com a perda de parentes, amigos e vizinhos, sem direito de defesa, sem voz, sem visibilidade. No entanto, diante da oportunidade políticavislumbrada pelo seu partido, voltou-se ao apoio da chamada “megaoperação” enfatizando o discurso oficial do governador do Rio, Claudio Castro e dos chefes de polícia.

Os moradores de favelas cariocas, privadas de cidadania plena, foram trazidos à luz por Otoni de Paula e até por Sóstenes Cavalcante no lampejo humanista e pastoral que teve diante da bancada do PL em festa. Parlamentares historicamente comprometidos com os direitos humanos, como Benedita da Silva e Henrique Vieira, e diversas organizações da sociedade civil estiveram e estão ao lado dos moradores reconhecendo-lhes o sofrimento diante da operação que se prolongou por muitas horas deixando o cheiro de pólvora no ar, como diziam os moradores, dos corpos nas ruas e das idas e vindas dilacerantes ao IML a procura de parentes e amigos.

Causa espanto que um jovem ex-morador de favela e também evangélico, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), se posicione de forma tão irresponsável, apoiando ainda mais violência e arbitrariedade ao defender a “bukelização” do Rio de Janeiro e do Brasil. Ele e os que celebram as mortes estão contra o povo das favelas e contra os próprios policiais, que são insuflados por discursos de honra e heroísmo para se arriscarem em nome de corporações que não valorizam suas vidas. Quando o chefe da Polícia se refere aos agentes de campo como “heróis”, revela indiretamente a precariedade em que trabalham — gladiadores modernos convocados para um espetáculo que atende às elites políticas, policiais e financeiras, todas comprometidas com seus próprios interesses, distantes da justiça social.

Diante de tudo isso, onde esteve Silas Malafaia? A igreja que herdou do sogro — e que lhe rendeu projeção nacional — está justamente na Penha, onde ocorreu a tragédia. Os fiéis de sua igreja, moradores locais e da redondeza, deviam estar aguardando sua palavra de consolo, sua indignação, seu clamor aos céus — como ele tantas vezes fez em outras causas. Onde estava a voz potente de Malafaia para exigir justiça pelas famílias destroçadas? Onde estava a sua veemência em defesa da paz e da competência do Estado do Rio que o projetou politicamente e que garantiu tantos votos a seus aliados? Nada havia sido publicado até sábado, quatro dias depois daquela tragédia. Por esse motivo, fui à celebração em sua igreja, ADVEC na Penha.

Era o primeiro domingo após as operações. O culto era da Santa Ceia e a igreja estava repleta de fiéis. O templo, fundado em 2014, tem capacidade para 6 mil pessoas e creio que era esse o total de pessoas reunidas naquele domingo, dia 01 de novembro de 2025, véspera do feriado de finados. Não havia uma cadeira vaga nem na nave principal e nem no mezanino. O culto das 9:30 foi celebrado por Silas Malafaia. Ao final de quase 3 horas ininterruptas de culto com momentos de louvores, dízimo, ofertas, apresentação de novos projetos da igreja, de agendas de eventos, de produtos e da realização de sua pregação, houve uma consideração sobre o ocorrido. Silas pediu um jejum pela paz e, em seguida, disse que “a polícia que mais mata no Brasil é do PT, é a polícia da Bahia. O Rio de Janeiro é a quinta capital mais violenta. Não é a primeira. É a quinta”. Frisou ainda que é contra a morte de qualquer pessoa concluindo: “Se eu sou contra o aborto, como posso ser a favor da morte de um adulto?”. Essa foi a sua lógica argumentativa. Contudo, frisou três vezes: “Em qualquer lugar do mundo alguém que levanta uma arma para um policial é morto na hora. Eu sou contra qualquer morte, mas na polícia americana, a mais preparada do mundo, se alguém levantar uma arma o policial pode matar. Então, sou contra. Mas no Rio não tem traficantes, são narcoterroristas”.

Toda a ambiguidade narrativa em relação ao número de mortes na megaoperação chama atenção ao corroborar um crescendo de pânico em relação ao crime organizado. No limite, esse pânico ao narcoterrorismo” se conecta a ações supra legais do governo de Donald Trump no Caribe e a manobras de militares próximas a países Sul-Americanos que estariam perdendo o controle sobre “narcoterroristas”. É verdade que o crime violento mudou muito em 10 anos e o antigo clientelismo que marcava muito a relação de traficantes com moradores no território hoje dá lugar a um medo crescente, a uma insatisfação com o achaque, com as intimidações e violências contra moradores. Mas a quem serve o uso contínuo do termo narcoterrorismo no contexto político de radicalização nacional e internacional?

Depois do tom político-religioso do posicionamento de Silas Malafaia no púlpito, solicitou que um pastor amigo na plateia fosse ao púlpito clamar por paz para o Rio e para o Brasil. Uma rápida oração foi feita com a participação de uma plateia muito engajada. Em seguida um louvor dava fim à celebração.

Oração pela Paz – ADVEC. Foto: Christina Vital

Não há dúvida sobre a crescente violência na cidade, sobretudo nos bairros da Zona Norte, Zona Oeste e Baixada Fluminense. As pessoas dizem repetidamente que “não aguentam mais”. No entanto, no contexto fluminense hoje, a venda de soluções parece vir daqueles mesmos que também produzem as situações de violência. Parecendo o argumento de Bauman em seu célebre livro Medo: o causador do problema é aquele que se apresenta na venda das soluções. Isso pode dar certo? Em momentos dramáticos como este, o joio se separa do trigo. A sociedade não pode se calar diante do crime, da corrupção, do abuso de poder — e da hipocrisia, termo que tantos policiais e moradores de favelas cansados disso tudo gostam usar. As lideranças religiosas podem ter um papel central na mediação entre poder público e população, na cooperação por políticas de paz. No entanto, várias delas tem se entregado aos interesses políticos de modo a se tornarem cegos para as dores de suas bases que clamam por justiça – não por “justiceiros” que servem a quem lhes paga mais.

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PASSOS, JOÃO DÉCIO; SANCHEZ, WAGNER L (Org.) . A salvação da Pátria
amada; religião e extrema direita no Brasil. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2024. v. 1. 310p .

VITAL DA CUNHA, Christina. “Irmãos contra o Império: evangélicos de esquerda nas
eleições 2020 no BRASIL”. DEBATES DO NER. v.21, p.13 – 80, 2021.

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