A arena sociopolítica está diante de um fenômeno, que tem por nome “antifeminismo”. Ainda que os rastros desse movimento sejam conhecidos há décadas, atualmente ele se manifesta de maneira mais estruturada e sofisticada. Seu objetivo é claro: alcançar mulheres identificadas com as pautas de cunho conservador, utilizando variadas estratégias. E para alcançar seu objetivo usam meios, como a tentativa de desmonte e desqualificação (ridicularização) do(s) movimento(s) feminista(s).
Visando a consolidação do movimento, é oferecido um acervo de leituras e cursos de cunho tradicionalista e conservador sobre como não ser uma mulher feminista e tais ações ganham um caráter cristão. O movimento antifeminista cristão é propagado por personagens conhecidas do universo da política e da religião, com número significativo de seguidores nas mídias digitais e convictas de que têm missão a cumprir.
Nesta entrevista, Bereia ouviu pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser. A socióloga da Religião analisa e problematiza os elementos que compõem o movimento antifeminista cristão e mostra como ele tem atuado e os impactos práticos que pode gerar para a sociedade.
Confira a entrevista
Coletivo Bereia – Como você define “antifeminismo cristão” no Brasil e quais são as suas correntes internas?
No Brasil, o antifeminismo cristão é um fenômeno que combina identidade religiosa, moralidade de gênero e engajamento “feminino” político. Ele se expressa publicamente, sobretudo, em uma autoidentificação recorrente entre mulheres “mães, cristãs, esposas e conservadoras”. Trata-se de uma forma de subjetivação política e religiosa comum entre mulheres que buscam ser reconhecidas publicamente a partir dessa combinação de valores. Nem todas se assumem explicitamente como antifeministas, mas, mesmo entre aquelas que não usam esse rótulo, há um padrão de autoapresentação visível sobre maternidade, religião, conjugalidade e ideologia conservadora.
O que as une é, antes de tudo, um rechaço ao feminismo, compreendido de forma homogênea, como se “o feminismo” fosse um movimento único, coeso e centralizado ou um clube fechado de códigos específicos. Esse rechaço vem acompanhado de uma adesão ativa à feminilidade bíblica tradicional e à hierarquia dos papéis de gênero. Em conjunto, o rechaço ao feminismo e a exaltação do ideal “feminino” operam como marcadores identitários que as consolidam como um coletivo de mulheres de extrema direita, ainda que com diferenças internas importantes.
Entre as principais correntes do antifeminismo cristão, é possível destacar duas vertentes: a católica e a evangélica, a espírita ainda a se mapear.
O antifeminismo católico tem forte lastro institucional. Os discursos antigênero e antifeministas foram forjados dentro da própria Igreja Católica, especialmente a partir dos pontificados que antecedem e culminam em João Paulo II, vocalizados por Joseph Ratzinger e cristalizados na Teologia do Corpo e na Doutrina da Complementaridade. O termo “ideologia de gênero”, que se tornaria central para mulheres antifeministas, surge pela primeira vez na Conferência Episcopal Peruana em 1996 e passa a funcionar como uma “cola simbólica” para unir atores católicos e evangélicos em torno de um inimigo comum (Birolli, 2019). O Vaticano sistematizou o discurso antigênero e o difundiu com as cinco características típicas de pânico moral: a preocupação dogmática de que o feminismo ameaçaria a família; a demonização das feministas; o consenso episcopal na formulação doutrinária de documentos e encíclicas; a narrativa desproporcional de que o feminismo destruiria a religião; e a volatilidade de um discurso que extrapolou os muros eclesiais, alcançando campanhas eleitorais, estratégias de marketing e até produções cinematográficas da extrema direita (Machado, 2018).
Já o antifeminismo evangélico se manifesta de modo mais diretamente vinculado ao ativismo político e digital de mulheres. Ele se estrutura como parte do conservadorismo moral e do “ativismo vulgar” da extrema direita. No caso de figuras como a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), por exemplo, o antifeminismo não se limita à retórica, mas se traduz em prática. Inspirada em Olavo de Carvalho, Campagnolo descreve sua atuação como um “trabalho cultural de conscientização antifeminista”. Essa “missão divina” se materializa em cursos virtuais, como o Clube Antifeminista, composto por nove módulos sobre feminilidade, ideologia de gênero, aborto, família e feminismo, além de livros e testemunhos pessoais. Seu mandato parlamentar opera como vitrine desse antifeminismo partidário, transformando eleitoras em consumidoras de produtos e cursos digitais. Trata-se, portanto, de um antifeminismo monetizado, que combina militância religiosa, discurso moral e técnicas contemporâneas de e-commerce (o livro “Não Existe Feminista Cristã”, foi o mais vendido na categoria “Igreja e Estado”, na plataforma Amazon).
Em síntese, o antifeminismo cristão no Brasil articula religião, gênero e mercado, funcionando tanto como reação teológica e moral ao feminismo quanto como projeto político e econômico em expansão.
Coletivo Bereia – Quais referências teológicas mais aparecem (Gênesis, complementarismo, “batalha espiritual”)?
Trabalhando com a professora Brenda Carranza (Unicamp), temos usado a noção de uma teologia antifeminista que adapta o discurso conspiracionista religioso a partir de um vocabulário próprio da teologia das batalhas espirituais (conforme a pesquisa de Cecília Mariz, 1999). Essa teologia antifeminista se ancora em uma interpretação hermenêutica literal de Gênesis, “homem nasceu homem, mulher nasceu mulher”, mas não se limita a isso: incorpora também referências ao feminacionalismo, ou seja, de mulheres “como defensoras da nação cristã de Deus”.
O vocabulário teológico antagônico constrói inimigos nítidos do “nós contra elas”: feministas, negras/os, LGBTQIAPN+, quilombolas e povos indígenas. Os discursos de batalha espiritual enfatizam a figura do diabo e da ameaça moral, classificando feministas como “feminazis” ou “feministas diabólicas”. Ao mesmo tempo, mobilizam um imaginário de reencantamento e magia, responsável por um tipo de alienação política (conforme o estudo de Cecília Mariz, 1999).
Coletivo Bereia – Como se dá a monetização (clubes, cursos, congressos, doações)? Algum padrão de funil?
Sim. O antifeminismo cristão se tornou também um modelo de negócio. No caso da deputada Campagnolo (PL-SC), autora do primeiro clube antifeminista (2019), por exemplo, há um antifeminismo partidário que transforma eleitoras em leitoras e, depois, em consumidoras de cursos virtuais. Essa estratégia se apoia em uma técnica de e-commerce chamada fórmula de lançamento, criada por Jeff Walker e popularizada no Brasil por Érico Rocha. Empresas conservadoras como a Brasil Paralelo reconhecem publicamente terem aprendido essa metodologia para impulsionar seu alcance religioso.
A fórmula de lançamento tem seis passos: (1) construção de audiência; (2) criação de expectativa e pré-lançamento; (3) lançamento com uso de gatilhos mentais, como escassez e autoridade; (4) pós-lançamento; (5) entrega e encantamento; e (6) relançamento. Campagnolo é pioneira no uso desse modelo no campo antifeminista, transformando sua base política e religiosa em um mercado digital de infoprodutos.
Coletivo Bereia – Há diferenças católicas x evangélicas? E recortes de classe/raça (ex.: “antifeminismo racializado”)?
Sim, há diferenças marcantes. As antifeministas católicas costumam ocupar espaços de liderança mais restritos às suas comunidades paroquiais e à esfera eclesial. Já as antifeministas evangélicas operam em um campo mais secularizado, com forte presença nas redes sociais e no debate público. São elas que, em geral, organizam e divulgam livros, cursos e eventos, inclusive convidando católicas para participar. Em certo sentido, o antifeminismo evangélico “democratiza” mais o conhecimento antifeminista, circulando entre diferentes denominações e camadas sociais. No Brasil, destacam-se nomes como Ana Campagnolo, principal sistematizadora evangélica, e as católicas deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) e jurista Angela Gandra, que articulam o antifeminismo em instâncias políticas e jurídicas.
Quanto a recortes de classe e raça, observa-se o predomínio de um antifeminismo branco, de classe média e média alta, ainda que com penetração crescente entre mulheres periféricas que encontram nesses espaços narrativas de pertencimento, acolhimento e espiritualidade conservadora “feminilidade bíblica”.
Coletivo Bereia – Que efeitos práticos você observa sobre políticas públicas e direitos das mulheres?
O antifeminismo cristão produz efeitos concretos em duas frentes. Por um lado, há um revisionismo histórico dos feminismos, uma tentativa de reescrever o passado e deslegitimar as lutas das mulheres, substituindo-as por narrativas de “feminilidade autêntica” e “missão divina feminina”. Por outro, esses movimentos constroem redes de sociabilidade antifeminista, com clubes e espaços de apoio emocional e espiritual, funcionando como comunidades de autoajuda no antigo modelo de “clube de mães”. Essas práticas criam um duplo motor: político e afetivo. De um lado, organizam resistência a políticas públicas de gênero e direitos reprodutivos; de outro, oferecem acolhimento e sentido de pertencimento, tornando o antifeminismo cristão não apenas um discurso, mas uma experiência social e emocional compartilhada, ou seja, o antifeminismo é também um marcador de identidade que constitui um tipo de vínculo comunitário entre mulheres cristãs.