As nada novas dissonâncias nas relações entre Brasil e os Estados Unidos: de Vargas a Lula 3 – parte 1

A atual crise diplomática e comercial entre Brasil e os Estados Unidos (EUA) certamente é a mais grave da história.  O Brasil está sendo um verdadeiro desafio para a famosa Doutrina Monroe, uma doutrina que construiu todo o arcabouço pelo qual os EUA pautou sua relação com os vizinhos de continente. Porém, devemos recordar que as dissonâncias entre os EUA e o Brasil sempre existiram, algumas mais sérias, outras administradas por conversas bilaterais pela diplomacia brasileira que sempre foi capaz de negociar.

A crise atual tem contornos mais explícitos que envolvem questões económicas e questões relativas a soberania nacional, trazendo para o campo uma disputa ideológica que poe a prova a sobrevivência de uma extrema direita no cenário mundial. O Brasil tem sido um laboratório de uma extrema direita que desempenha um papel de represamento das forças de esquerda na América do Sul.

A dissonância, no entanto, tem história. Tomo, para efeito de análise, o período que começa com o Estado Novo,  sob o governo de Getúlio Vargas (1937-45), e que segue até o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2023, em curso). 

Vargas, Estado Novo e Redemocratização

O contexto de Getúlio Vargas o coloca em uma insistente política de não alinhamento com os EUA. Só entrou na Segunda Guerra Mundial, por causa do afundamento de navios na costa brasileira. 

Quando a guerra terminou, Vargas caiu. O Estado Novo ruiu e a participação dos EUA foi importante pela motivação de setores como o militar, o eclesial e a mídia corporativa. Sob o manto da redemocratização, o Brasil experimentou novos ventos políticos. O presidente Eurico Gaspar Dutra governou com um arcabouço formalmente democrático, mas dentro da lógica da Guerra Fria. Basta ver que a esquerda viu o Partido Comunista do Brasil (PCB) ser colocado na ilegalidade.

Quando do retorno de Vargas “nos braços do povo” (1951), a dissonância voltou a se agravar pelo projeto de desenvolvimentismo nacionalista como a luta pelo “Petróleo é nosso” e a busca da autonomia industrial com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). O final nós sabemos. Culminou no suicídio de Vargas (1954). Embora não se atribua responsabilidade direta dos EUA com o suicídio, sabe-se que as forças que lideraram a oposição a Getúlio Vargas tinham corte anticomunista e liberal, além de serem terminantemente contra o desenvolvimentismo estatal. 

O mandato de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) foi relativamente tranquilo devido ao ambicioso Plano de Metas que precisava fortalecer as relações econômicas entre os dois países. Isso não escondeu um desgaste com os EUA e o projeto de desenvolvimento com autonomia nacional sofreu alguns sérios arranhões, incluindo uma ruptura com o Fundo Monetário Internacional (FMI).  Esse arranhão foi resultado da interferência do governo dos EUA junto ao FMI para travar financiamento ao país. 

Na década de 1960, as relações entre o Brasil e os EUA foram marcadas por períodos de aproximação e afastamento, refletindo interesses políticos, econômicos e estratégicos divergentes. Embora ambos os países compartilhassem, naquele momento, o contexto da Guerra Fria, as dissonâncias logo se evidenciaram em questões regionais, comerciais e diplomáticas.  

A renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, abriu a caixa de pandora. Ele havia desafiado a diplomacia do Tio Sam ao não romper com Cuba e ainda ter condecorado Che Guevara com a Ordem Cruzeiro do Sul. Em relação à China, tentou aproximação diplomática com missão especial delegada ao vice-presidente João Goulart. Após a sua renúncia e depois de muita negociação, conseguiu-se fazer valer a legalidade, um pouco anêmica, mas que adiou um golpe militar para um pouco mais adiante.  A efervescência dos movimentos por Reformas de Base e o apoio do governo João Goulart ao movimento sindical por melhoria salarial levou a mídia corporativa, a classe média e as igrejas a abraçarem o golpismo.  

Ditadura e alinhamento 

Após o golpe militar de 1964, claramente cheio de digitais do governo dos EUA, o regime brasileiro alinhou-se, oficialmente, com Washington.  O silêncio sobre os horrores da ditadura mostraram o quanto a sociedade “mais democrática” do mundo estava satisfeitíssima com o governo militar.

Nos anos 1970, o Brasil buscou desenvolver um programa nuclear próprio, assinado um acordo com a Alemanha Ocidental (1975), o que provocou forte oposição dos EUA, preocupados com a proliferação nuclear. O Brasil começava a se posicionar como líder do chamado “Terceiro Mundo” em foros multilaterais, o que causou desconforto em Washington. O ditador general Ernesto Geisel (1974-1978) foi o primeiro a enfrentar esse tipo de dissabor com o governo dos EUA.

Nos anos seguintes, com a redemocratização e a abertura econômica, surgiram novas dissonâncias, especialmente em temas como barreiras comerciais, disputas agrícolas e propriedade intelectual. O Brasil criticou, frequentemente, a postura protecionista dos EUA e buscou ampliar laços com outros parceiros, como o Mercosul e países emergentes. 

Vale aqui destacar que o diitador general João Batista Figueiredo (1979-1985), acuado pelo movimento das ruas por democratização, foi o síndico responsável por preparar a entrega das chaves para um governo civil. As dissonâncias aconteceram em questões como a Guerra das Malvinas e o embargo americano ao comércio com a então União Soviética. 

Nova República e Dilemas 

O presidente José Sarney (PMDB, 1985-1989), o primeiro civil pós-ditadura militar, seguiu, em linhas gerais, o pragmatismo político da diplomacia brasileira, aproximando-se cada vez mais de seus parceiros regionais, num claro movimento de ampliar a influencia brasileira na região. Nenhuma dissonância mais grave foi percebida nesse período. 

O governo de Fernando Collor (PRTB), 1989-1992) foi o primeiro a vivenciar o paradigma da queda do Muro de Berlim e o advento da chamada globalização. Inicia um amplo projeto de privatização de empresas públicas e promove uma abertura de mercado. Na verdade, refaz um pouco a política externa brasileira deslocando a atenção para os países do Primeiro Mundo. 

Collor cedeu lugar, após o impeachment do deu mandato, ao vice-presidente Itamar Franco (PRN 1992-1994) que retoma a ênfase na integração regional com a América Latina. Sua postura um tanto resistente à criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) lhe rendeu alguns dissabores. 

O presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-1998 e 1999-2002) repetiu a agenda privatista de seus antecessores e ganhou muita visibilidade em razão da estabilidade monetária com o Plano Real. Em seus dois mandatos por reeleição, ele  enfrentou dissonâncias no plano do comércio externo  com um déficit comercial crescente em razão de políticas protecionistas. Apesar de solidário em relação aos ataques terroristas aos EUA do 11 de setembro de 2001, recuou um passo com relação à Alca. Pode-se dizer que o Brasil ganhou o status de um global player moderado.

Na segunda parte deste artigo, chegaremos ao período mais contemporâneo, os anos 2000. Leia aqui.

Referências 

Brasil de Fato

Entenda como foi a participação dos EUA no golpe de 64 (e o que ainda pode ser revelado)  Acesso em 28 jul 2025

Super

O papel dos EUA no Golpe de 1964 Acesso em 28 jul 2025

Folha de S.Paulo 

Nixon elogia o Brasil em seu último livro – 1/5/1994 Acesso em 28 jul 2025

Jornal da USP

O passado não pode ser desfeito, mas deve ser reparado: documento mostra apoio militar dos EUA ao golpe de 1964 no Brasil  Acesso em 28 jul 2025

Revista Brasileira de Política Internacional 

Origens e direção do Pragmatismo Ecumênico e Responsável (1974-1979) Acesso em 28 jul 2025

Le Monde Diplomatique

Os 200 anos das Relações Brasil-EUA: do reconhecimento da Independência às articulações da extrema direita Acesso em 28 jul 2025

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