Quem tem medo da laicidade na psicologia?

A Psicologia é uma grande área de disputa para o campo religioso. Devido à sua interligação com os estudos da mente e a tradição da confissão (FOUCAULT, 1988), a área veio com uma raiz religiosa que, ao longo do tempo, os autores clássicos tentaram romper – como Freud, Skinner etc. – e que formulou, ao lado da Modernidade, uma profissão laica. Contudo, esse vínculo com a religião fez com que desde muito cedo a Psicologia caminhasse em um lugar ambíguo entre uma ala que queria que a Psicologia fosse uma técnica apropriada pelo campo religioso e outra, defendendo uma autonomia do campo (BELZEN, 2009). 

Essa disputa, que assinalei como histórica, ganha contornos muito específicos no Brasil. A entrada das disciplinas de Psicologia pelos seminários e instituições católicas ou protestantes fizeram esse contorno ser muito presente desde o início da profissão no Brasil. O catolicismo, inicialmente já interessado na área, teve um novo concorrente: os evangélicos, segmento na casa dos 9% em 1990 (dados do IBGE) que dá um salto vertiginoso para 31% da população brasileira em 2020, segundo o Datafolha.

Nesse território marcadamente afetado pela religião, a área da Psicologia se organizou e se regulamentou em 1977. Houve a criação dos Sistemas-Conselhos a partir da Lei 5766/1971, com uma organização em nível federal (Conselho Federal de Psicologia) e os conselhos regionais (Conselhos Regionais de Psicologia), divididos por áreas do país, não necessariamente estados. Cada conselho com eixos de trabalho e instâncias de debate para dois objetivos – orientar e fiscalizar a profissão. 

Nesse processo foi criado o primeiro Código de Ética do Psicólogo ainda em 1975, contudo, em função dos avanços profissionais e sociais – principalmente marcados pela Constituição Cidadã de 1988 e as Declarações Internacionais de Direitos Humanos – foi formulada a nossa última versão do código, em 2005. Nesta, tornou-se mais explícito o compromisso da área com a laicidade e a luta contra qualquer forma de violação dos direitos humanos. 

Em paralelo a esse processo, o CFP criou resoluções que, de modo diferente, já apontavam para a necessidade da laicidade, como a resolução 01/1999 – que proíbe a cura de homossexualidades e que, diversas vezes, foi objeto de grupos religiosos tentando retirar essa normativa; a 01/2000, que fala sobre a laicidade das práticas psicoterápicas; a 18/2002,  que versa sobre racismo e repudia todas as formas de discriminações raciais; a 01/2018,  que proíbe a cura de pessoas transgênero e a 08/22,  que proíbe a cura de pessoas não-monossexuais como bissexuais e pansexuais. Assim, a resolução 07/2023, criada para abarcar a temática sobre laicidade, apenas reforça aquilo que já está construído na profissão desde sua criação e no seu desenvolvimento. 

Além disso, os Sistemas-Conselhos, como citado anteriormente, trabalham com Eixos e grupos de trabalhos, dentre eles alguns específicos sobre Laicidade. Logo, a criação desta última resolução advém de um amplo debate de profissionais – muitas vezes que professam fé religiosa ou que já sofreram com as faltas éticas. Um dos grandes exemplos é um dos presidentes do Eixo de Laicidade do CRP-RJ, Héder Bello, que passou por tentativa de cura de sua sexualidade pela Rozângela Justino, que se autointitulava “psicóloga cristã”. Esta ex-psicóloga foi cassada e perdeu o seu registro profissional. Nesse processo, Bello produz, ao lado do CFP, o documento “Tentativa de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs” (2019), acumulando relatos de dezenas de outros pacientes que passaram por violações similares. Isso ocorreu anos antes da resolução 07/2023. 

Assim, a tentativa de se retirar uma norma do CFP não é uma movimentação nova e incomum na área, da mesma forma que o impulso de organizações para permanecerem usando terminologias que são antiéticas – como “Psicólogo Cristão”. Quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7426 surgiu de modo a barrar a Resolução 07/23, se retomou um mesmo movimento que já ocorrera no passado: “mas o psicólogo não tem “liberdade” de curar uma pessoa de sua sexualidade? E de expressar sua religião como profissional?” O uso do termo “liberdade de expressão” aparece como um opositor aos limites dados pelos Direitos Humanos. 

A resposta para as perguntas acima é “Não!” O psicólogo não tem liberdade para tudo. Por isso somos uma ciência e profissão. A laicidade é uma forma de proteger grupos minoritários de violências como as relatadas no documento “Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs” de 2019, na fala de três mulheres lésbicas:

1: A psicóloga começou invocar alguns trechos da Bíblia, falando sobre o mito da Criação, sobre o papel da mulher, sobre as convicções. 

2: Minha mãe disse que o pastor conhecia uma psicanalista que era uma irmã, ela era da igreja, sei lá o quê, e que tratava de casos assim. (…) Ela conversou comigo que talvez fosse isso que Deus queria, sei lá o quê. Antes da sessão, a gente fez uma oração, claro. 

3: Ao buscar ajuda psicológica, a psicóloga veio interpor uma questão de religião. […] Ela começou dizendo que era uma fase, depois ela entrou muito em religião, começou a falar que Deus tinha um plano para mim e que isso eram “atormentações”, que eu não podia me deixar cair nessas atormentações. Ela passava orações para eu fazer, orações, hinos para eu ouvir, e ficava falando versos bíblicos, nada a ver. (CFP, 2019, p.102.)

Em oposição a esta ADI 7426, organizada pelo Partido Novo e o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) – duas organizações que não são de psicólogos – o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Pedro Paulo Bicalho, decidiu mobilizar respostas que estão em processo. No caso do Rio de Janeiro, a presidente do Conselho, Céu Cavalcanti – uma mulher trans e que possui uma experiência religiosa – fez questão de realizar um evento chamado I Seminário sobre Psicologia, Religião e Espiritualidade, onde estava presente o Eixo de Laicidade do CRPRJ e a Comissão de Estudantes. O evento foi realizado no Instituto Teológico Franciscano, que apoiou firmemente a luta pela laicidade. Houve cerca de 400 pessoas presenciais e 500 online, ouvindo claramente o posicionamento e recebendo em mãos a resolução, a fim de lerem e entenderem a luta pela laicidade. A área continua em luta a fim de reafirmar seu lugar ao lado dos Direitos Humanos.

Referência:

BELZEN, Jacob A. Psicologia Cultural da Religião: Perspectivas, Desafios, Possibilidades. REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 9, 2009.

CFP – Conselho Federal de Psicologia. Link: https://site.cfp.org.br/multimidia/projeto-memorias-da-psicologia-brasileira/. Acesso em 04 out. 2023. 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal, 1988.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Aaron Burden/Unsplash

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