O eterno desafio das identificações religiosas – parte 1

O documentário de Petra Costa sobre o fenômeno evangélico no Brasil, Apocalipse nos Trópicos, é uma produção com excelente fotografia, acompanhada de uma narração em off que cativa o espectador com uma série de impressões e ideias organizadas com sutileza, como é característico do estilo da diretora. A obra gerou muita polêmica, tanto na esfera religiosa brasileira quanto no campo da análise política e das ciências da religião. Seu foco temático é o apoio de um importante setor evangélico no país durante a campanha presidencial e a subsequente derrota de Jair Bolsonaro, conectando esse fenômeno a vários marcos relevantes no desenvolvimento democrático do Brasil e da América Latina.

Representações, simplificações e omissões

Algumas das críticas apontam para uma representação um tanto estereotipada do mundo evangélico, para a forma como a genealogia dos eventos narrados (desde a ditadura até os dias atuais) é construída e para a forma limitada – ou mesmo silenciada – como a presença do catolicismo (especialmente em seu aspecto popular) é abordada em vários dos eventos mencionados. Muitas dessas observações têm mérito.

Se a intenção do documentário era mostrar a dinâmica de todo o espectro evangélico, ele certamente ficou aquém. Por exemplo, a voz dos evangélicos dissidentes foi reduzida a alguns minutos no final. Talvez tivesse sido mais pertinente delimitar mais claramente o objeto de análise, esclarecendo que – embora seja majoritária e maciça – é uma expressão particular dentro do campo evangélico, mas não representa o quadro completo.

Também é questionável a forma como os eventos históricos são vinculados, ou pelo menos é marcante a forma como são vinculados para mostrar seus ecos com o mundo evangélico: o filme traça uma linha que vai da recuperação da democracia ao apoio religioso a forças antidemocráticas — representadas na figura de Bolsonaro –, o que levanta algumas questões sobre a complexidade da relação entre evangélicos e democracia no país, cuja história tem sido muito mais ziguezagueante do que o que ali se reflete.

Quanto ao lugar dado ao Catolicismo, limitar-se a mencionar a figura de Pedro Casaldáliga e o surgimento da teologia da libertação é, no mínimo, reducionista. No entanto, não se deve esquecer que o documentário trata do mundo evangélico, não do Cristianismo ou do fenômeno religioso em geral, o que é uma delimitação argumentativa que deve ser considerada diante dessa observação.

Talvez a falta de referência aos vínculos entre o Catolicismo conservador e o campo evangélico nos eventos descritos seja uma omissão relevante nesse sentido: não se pode ignorar que uma das razões para a ascensão pública e a crescente influência política dos setores evangélicos – tanto no Brasil como em outros países da região – se deve à aprovação e ao apoio de grupos católicos institucionais, já consolidados no poder muito antes, que abriram as portas para facilitar sua influência.

A necessidade de uma abordagem mais precisa

Concordo que essa produção poderia, mais uma vez, contribuir para reforçar estereótipos ou simplificar a complexidade do campo evangélico. No entanto, no caso do Apocalipse nos Trópicos, acredito que o problema não está tanto no conteúdo em si, mas na falta de precisão na abordagem aos espectadores.

Em outras palavras, o documentário consegue retratar em profundidade uma expressão religiosa nacional com visibilidade e influência suficientes para merecer uma análise dedicada. Ele dá conta de um tipo de articulação entre o evangélico e o político que tem ecos em outros países e cuja genealogia merece ser examinada com cuidado e rigor. Talvez essa precisão pudesse ter sido mais clara, a fim de evitar reações defensivas de setores que se percebem “no mesmo saco”.

Nesse sentido, a associação estabelecida entre o “evangelicalismo”, a figura do midiático pastor Silas Malafaia e as multidões que saíram às ruas exigindo a volta da ditadura é, sem dúvida, uma simplificação exagerada se considerarmos que ela representa a imagem do evangelicalismo como um todo. E não apenas no campo evangélico progressista, mas até mesmo dentro dos próprios setores conservadores, que não são necessariamente pró-golpe ou pró-Bolsonaro. No entanto, esse fenômeno revela uma rede político-religiosa que faz parte de um processo histórico com raízes e sedimentação que merece um estudo focado devido aos efeitos que está tendo em vários cenários políticos contemporâneos em nível regional.

Foi justamente nesse sentido que se identifica uma das deficiências mais importantes do documentário, que está relacionada ao que considero um problema sistêmico na análise política e acadêmica dessas questões. Além do estereótipo do campo evangélico, o mais preocupante é a insistência em uma leitura simplificada e unidirecional do vínculo entre religião e política.

Continua a se supor que mesmo os setores “majoritários” do campo evangélico que apoiaram Bolsonaro o fizeram porque compartilham integralmente de sua agenda, porque são golpistas ou porque são racistas. Mas esse não é necessariamente o caso – e eu chegaria a dizer que isso se aplica além do campo religioso. Os processos de identificação entre religião e política estão longe de obedecer ao modelo proposto por certo pensamento iluminista e racionalista, no qual se espera uma correspondência entre convicções ideológicas, consciência de classe e decisões políticas. Essa redução é frequente em alguns setores progressistas e críticos.

O apoio dos crentes a determinados discursos políticos não decorre necessariamente de uma associação essencialista entre fé e ideologia. São múltiplos os fatores que entram em jogo: temores em relação a determinadas agendas públicas, reações a problemas estruturais, leituras particulares dos problemas sociais e a forma como determinadas lideranças os abordam (sem que isso implique adesão total a seus postulados), vínculos comunitários ou lealdades internas (que não necessariamente implicam convicções pessoais), entre muitos outros.

O que fica claro é que qualquer segmentação dentro do campo religioso – e do evangélico em particular – por mais aglutinadora que possa parecer (mesmo dentro de uma mobilização popular) não se move como uma massa homogênea com base em uma analogia direta entre fé e ideologia, entre política e decisão. Em outras palavras, os evangélicos que apoiam tais narrativas não o fazem exclusivamente por convicção doutrinária ou afinidade ideológica explícita, mas por uma série de fatores inter-relacionados, muitos deles de natureza religiosa, mas nem por isso monolíticos ou definitivos.

Além disso, podemos afirmar que todas as multidões mostradas no documentário são realmente “evangélicas”, mesmo quando se autodenominam assim? A tendência ao essencialismo, que simplifica as posições assumidas pelas pessoas religiosas, não é evidente apenas em nível político ou ideológico, mas também em nível estritamente religioso. Vale a pena perguntar se muitas das pessoas que se mobilizam exibindo gestos e símbolos típicos do campo evangélico – como a oração, a imposição de mãos, o uso de frases comuns ao campo, o exorcismo ou a exaltação emocional – podem ser consideradas evangélicas no sentido tradicional do termo, ou seja, como sujeitos que assumem uma fé estruturada, uma comunidade eclesial ou um processo de conversão pessoal.

Nesse ponto, a relação entre o evangélico e o político também deve ser pensada em uma chave cultural ou, em outras palavras, como uma cultura política evangélica que está presente e estrutura universos de significado muito mais amplos, e não apenas aqueles que aderem à fé evangélica. O desempenho de “ser evangélico” não se reduz mais à adesão institucional ou a uma experiência pessoal de fé, mas pode ser entendido como uma matriz sociocultural que atravessa diferentes estratos sociais, sem necessariamente implicar uma filiação religiosa no sentido estrito. Estamos diante de um fenômeno semelhante ao do Catolicismo popular: uma linguagem cultural transversal, em vez de uma identidade religiosa definida.

Portanto, a principal pergunta que devemos nos fazer é: por que um setor importante da sociedade brasileira escolhe o “formato evangélico” como veículo para expressar suas demandas e queixas? Essa pergunta muda o foco da análise do documentário. Não se trata mais, simplesmente, de como o evangelicalismo adota uma determinada ideologia. Diz respeito, porém, a como essa expressão religiosa se tornou uma estrutura sociocultural capaz de canalizar uma série de demandas sociais de forma mais eficaz, em oposição a outras formas de representação – como o liberalismo histórico, o Partido dos Trabalhadores ou mesmo o Catolicismo básico – que perderam, por várias razões, sua capacidade de se conectar com amplos setores da população.

Um exemplo ilustrativo é encontrado em uma cena do documentário em que Luiz Inácio Lula da Silva é mostrado participando de um culto evangélico, recebendo orações de vários pastores e fazendo promessas eleitorais sobre questões sensíveis. Isso não indica que tanto Lula quanto Bolsonaro operaram dentro da mesma lógica de compreensão do papel político do campo evangélico?

Nesse ponto, vale notar que algumas das críticas formuladas por setores progressistas – inclusive do próprio campo evangélico progressista – às alianças simbólicas e rituais entre a direita e o evangelicalismo também poderiam ser aplicadas ao próprio progressismo.

Onde, então, reside o problema: na associação entre religião e política propriamente dita ou na orientação ideológica que essa associação adota? Se o problema for o último, então a crítica deve ser um pouco mais afiada e trabalhar, na realidade, a partir do reconhecimento desse vínculo e de como operacionalizá-lo em termos democráticos.

“A RELAÇÃO ENTRE O EVANGÉLICO E O POLÍTICO DEVE SER PENSADA TAMBÉM EM TERMOS CULTURAIS OU, EM OUTRAS PALAVRAS, COMO UMA CULTURA POLÍTICA EVANGÉLICA QUE ESTÁ PRESENTE E ESTRUTURA UNIVERSOS DE SENTIDO MUITO MAIS AMPLOS, E NÃO APENAS AQUELES QUE ADEREM À FÉ EVANGÉLICA”.

– NICOLAS PANOTTO


O artigo continua na parte 2.

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