NOMEAÇÕES DE EVANGÉLICOS NO GOVERNO X ESTADO LAICO: AONDE VAMOS CHEGAR?

Ricardo Lopes Dias

A nomeação de Ricardo Lopes Dias, ex-missionário da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), como coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), oficializada no último dia 05 no Diário Oficial da União, gerou inúmeras críticas, até mesmo dos próprios servidores da FUNAI. Mas o governo Bolsonaro parece não estar preocupado com opiniões contrárias, inclusive de entidades que são referências quando o assunto é política indigenista, como a APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), UNIVAJA – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, INA – Indigenistas Associados, FPMDDPI – Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Junta-se a elas o CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, que lançou nota indicando seu desacordo frente à nomeação.

 “O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), composto pela Aliança de Batistas do Brasil, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Presbiteriana Unida e Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia expressa seu desacordo à indicação do ex-missionário, Ricardo Lopes Dias, para chefiar a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai.”

CONIC, 03 de fevereiro de 2020

Além da nomeação do ex-missionário, que fere o princípio constitucional da laicidade do Estado, o presidente da FUNAI, Marcelo Xavier, fez uma manobra que durou 24 horas para efetivar Dias Lopes. Xavier solicitou uma mudança no regimento interno do órgão, alterando as medidas do cargo, que até então só poderia ser ocupado por servidores públicos efetivos da FUNAI.

INDICAÇÕES DE EVANGÉLICOS NO GOVERNO BOLSONARO

Bolsonaro recebe oração de Edir Macedo durante culto na Igreja Universal

Indicações e nomeações de evangélicos no governo Bolsonaro têm sido uma prática rotineira desde as eleições, em 2018. Após vencer nas urnas, o “Messias”, que conquistou o cargo por meio de estratégias que incluíram batismo no rio Jordão, “aceitação de Jesus” em culto, e alianças políticas com líderes religiosos como Edir Macedo, Silas Mafalaia e Marco Feliciano com a bancada evangélica no Congresso Nacional. O ex-capitão tem governado o país como um pastor autoritário, que faz de tudo para não perder seu “ministério”, nomeando figuras “terrivelmente evangélicas”, como ele mesmo afirma, para cargos de liderança.

Como o Estado é laico, “mas o governo é cristão”, segundo fala do próprio presidente, a equipe bolsonarista tem, hoje, cinco evangélicos no primeiro escalão do governo ocupando ministérios. O maior conselheiro do presidente, Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria do Governo, é batista. Os outros são: Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil, luterano. Marcelo Álvaro Antônio, do Ministério do Turismo, membro da Igreja Maranata. André Luiz Mendonça, ministro da Advocacia Geral da União, pastor presbiteriano. Ele é, possivelmente, o homem “terrivelmente evangélico” que Bolsonaro indicaria para o STF. E finalmente, a pastora pentecostal, Damares Alves, ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ela tem levado várias “propostas pastorais” de políticas públicas para o governo, como a de abstinência sexual como uma das diretrizes para combater a gravidez precoce, ignorando, como seu presidente, todas as críticas de médicos, educadores e cientistas que trabalham com o tema da sexualidade na adolescência.

No segundo escalão o número funcionários evangélicos é expressivo, principalmente no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Roberto Alvim durante culto na Bola de Neve

Não podemos esquecer de Roberto Alvim, exonerado em 17 de janeiro da Secretaria da Cultura depois de discurso nazista. Ele havia sido ungido um mês antes na igreja Bola de Neve como o “novo Daniel (profeta do Antigo Testamento) para o Brasil.”

QUAL O PROBLEMA DE HAVER EVANGÉLICOS NA LIDERANÇA DO GOVERNO FEDERAL?

Nenhum. A questão que se coloca no contexto religioso é o “tipo” de evangélico/a que lá está. O mínimo que se espera de um/a cristão/cristã na política é que respeite a Constituição, o que não tem se dado, de forma bem explícita, neste governo.

Jair Bolsonaro e Benedito Aguiar

Nomeações como a do ex-reitor da Universidade Mackenzie, o presbiteriano Benedito Guimarães Aguiar, para a CAPES em 24 de janeiro deste ano, e agora, Ricardo Dias Lopes para FUNAI, revelam a plena coalizão do governo com a religião, fazendo dela a bandeira que rege a desordem e o desprogresso que o Brasil vem enfrentando neste último ano. Lopes já foi missionário em aldeias indígenas e agora, por meio de manobra, o que intensifica ainda mais o equívoco de sua nomeação, é indicado para um cargo que requer a maior imparcialidade religiosa possível, pois o departamento irá coordenar os índios isolados e de recente contato da Funai, que tem como principal atribuição proteger esses povos e não expô-los a nenhum tipo de evangelização.

Para esclarecer a nomeação do ex-missionário Ricardo Dias Lopes, entrevistei um ex-servidor da FUNAI, que pediu para não se identificar devido o cenário de perseguição que se instalou na Fundação na última semana.

O entrevistado é um antropólogo que tem mais de 10 anos de experiência com questões indigenistas.

ENTREVISTA

1- Como ex-servidor da FUNAI, como o senhor vê a nomeação de Ricardo Lopes Dias para a coordenação de índios isolados?

É importante destacar a total incompatibilidade entre a atividade missionária e a coordenação da política de proteção aos povos indígenas em isolamento voluntário e povos de recente contato. Conforme o próprio declarou, o objetivo de vida dele era a criação do que ele chama de “igreja autóctone” em cada povo indígena. Com esse objetivo o missionário vai contra os standards internacionais dos direitos humanos e dos direitos específicos dos povos indígenas, que afirmam o direito à autodeterminação sobre suas vidas e seus territórios bem como afirma o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada sobre todas as ações que possam impactá-los.

2 – O senhor acha que esta nomeação de Lopes fere a política laica para com os povos indígenas? Sendo que as políticas de proteção territorial da Funai, voltada para os índios isolados, é reconhecida como um exemplo pioneiro no mundo.

Os objetivos do missionário ferem a Constituição Federal de 1988 ao ir contra as garantias estabelecidas na Carta Magna em relação ao respeito ao direito dos povos indígenas, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (artigo 231 da CF de 1988). No caso dos povos indígenas em isolamento voluntário, o anseio de Ricardo Lopes é ainda mais grave, porque, ao defender a ação missionária nas terras indígenas ele vai contra os princípios e a política de respeitar e garantir que esses povos vivam de forma autônoma dentro do seu território, protegidos pelas ações desenvolvidas pelas frentes de proteção etno-ambientais da FUNAI, que desenvolvem um trabalho exemplar em defesa da autodeterminação e autonomia dos povos em isolamento voluntário. O Estado brasileiro ao longo do último século passou por várias políticas em relação aos indígenas não contactados até compreender que a melhor forma de respeitar a autonomia e os modos de vida desses povos é garantindo que eles tenham autonomia em realizar o contato ou não.

3-A relatora da ONU para o direito dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, criticou a decisão do governo brasileiro de nomear um evangélico para o cargo na FUNAI. Ela afirmou que “é uma decisão perigosa e que pode ter o potencial de gerar um genocídio para a população de indígenas isolados” . O senhor concorda com essa afirmação?

O trabalho missionário, independente do discurso, da intensão alegada, é uma violência contra esses povos ao tentar impor uma religião específica a eles. É necessário destacar que a ação missionária é invasiva e traz riscos muito sér[ios para os indígenas, inclusive do ponto de vista da saúde, tendo em vista possíveis contágios e vírus decorrentes do contato. Isso ocorreu dezenas de vezes no Brasil, com genocídios provocados por contatos desastrosos e, muitas vezes, criminosos. Importante afirmar que essas populações em isolamento voluntário não estão alheias à realidade a sua volta. Eles optam pelo isolamento muitas vezes por terem passado por experiências traumáticas em relação ao contato com a sociedade nacional. Contato que muitas vezes causou centenas e centenas de morte de Indígenas. É uma opção que deve ser fortemente respeitada.

4 – O estado brasileiro tem a responsabilidade de garantir a proteção integral dos povos indígenas. O senhor acha que este governo tem essa pauta como prioritária?

Fica muito claro nas entrevistas do Ricardo Lopes que ele não está assumindo o cargo para trabalhar na política de proteção e promoção dos direitos indígenas e sim na defesa de uma agenda que a muito tempo eles buscam impor a esses povos. Trata-se de algo totalmente invasivo e vai contra os princípios da liberdade religiosa na medida em que esses missionários promovem proselitismo religioso. Acredito que essa nomeação é um retrocesso de décadas em relação à laicidade do Estado brasileiro e da política indigenista. Cabe lembrar que faz bastante tempo que as organizações de missionários cristãs buscam acessar esses territórios e sempre se ressentiram do trabalho realizado pela Funai na proteção etno-ambiental dos territórios indígenas.

A Missão Novas Tribos, da qual esse senhor participa, tem uma longa história com os povos em isolamento e de recente contato, com inúmeros casos de desrespeito e violência contra os povos indígenas. Uma outra questão a considerar é a total falta de experiência desse senhor em relação à política indigenista. A Funai tem um corpo de funcionários concursados e com longa experiência de trabalho com os povos indígenas. A política hoje é de perseguição a esses funcionários e a colocação de pessoas sem experiência e vivência indigenistas. Pessoas que estão entrando na Funai com uma agenda totalmente contrária aos princípios norteadores da ação indigenista do Estado brasileiro.

5 – Para o senhor, em que princípios a Funai deveria se pautar para escolher o coordenador ou coordenadora para o departamento de índios isolados?

Um pressuposto da vaga de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato era ser servidor da FUNAI. Por isso o cargo foi mudado para permitir a nomeação desse senhor. Foi retirada a exigência e transformou em cargo de livre nomeação. Foi uma manobra capitaneada pelo Delegado da Polícia Federal que está a frente da Funai ultimamente. Ele mesmo não tinha nenhuma experiência de trabalho com povos indígenas e foi colocado justamente para garantir a agenda do governo Bolsonaro de desconstrução dos direitos dos povos indígenas.

Assim, não é possível pensar essa nomeação de forma isolada. Faz parte de uma agenda que busca a flexibilização dos direitos indígenas, de forma a interromper os processos de reconhecimento territorial em curso e possibilitar a exploração econômica dos territórios indígenas. A integração defendida pelo Governo Bolsonaro nada mais é do que a tentativa de acessar os recursos naturais e ambientais das terras indígenas e explorar de forma predatória sem respeitar os direitos dos povos indígenas em relação à autodeterminação, autonomia, direito de consulta e de usufruto exclusivo dos territórios. Temos um sério risco de um genocídio dos povos indígenas no Brasil. Algo que já foi vivenciado muitas vezes pelos povos indígenas, como registrado. É desconsiderar toda a história da política indigenista no Brasil. A FUNAI registra, hoje, 107 grupos de povos indígenas em isolamento voluntário.

Já vimos a ampliação das ações de invasão dos territórios indígenas por frentes de exploração econômica que hoje avaliam que estão com a carta branca do Governo Bolsonaro para explorarem ilegalmente os territórios tradicionais dos povos indígenas. Não podemos ver essa nomeação de forma isolada. É a colocação de pessoas estratégicas na Funai para fazer o desmonte por dentro, paralisando políticas, perseguindo servidores, rompendo o diálogo com o movimento indígena, perseguindo lideranças, sufocando as coordenações regionais da FUNAI. Então, por mais que esse senhor fale da defesa dos indígenas, não pode negar o fato de que ele faz parte de um grupo que ocupa hoje a FUNAI para acabar com a política de proteção e promoção dos direitos indígenas. Acompanha essa invasão da FUNAI um amplo esforço de mudança normativa para permitir a exploração econômica dos territórios indígenas, como ocorreu essa semana no projeto de lei de mineração e exploração hídrica em terras indígenas sem respeitar o direito de autodeterminação e o direito à consulta livre, prévia e informada. Há pressão para descontrair as políticas de cidadania.

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O chamado crítico do CONIC precisa ser assumido por todos que defendem o Estado laico como princípio constitucional fundamental para  o Estado Democrático de Direito: “A concepção evangelizadora que acompanha uma política pública deve ser isenta de toda e qualquer lógica religiosa. Povos indígenas têm um patrimônio cultural e espiritual próprios. É dever do Estado protegê-los e garantir a sua preservação”.

Foto de destaque: Ateliê Canudos

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