Nacionalismo como religião: um olhar sobre o contexto cristão

Um dos fenômenos que tem preocupado o meio político e social, especialmente nos Estados Unidos e no Brasil, é o crescimento da presença religiosa de evangélicos na vida pública. Um conceito que tem surgido que serve como um construto, e que abrange esse fenômeno em suas diversas características, é o de nacionalismo cristão. Ele nasce da ideia de nação, que corresponde a uma construção que perpassa a história do pensamento ocidental a partir do fim da Idade Média, mas também de uma ideia de Reino de Deus a partir de uma leitura ideológica da Escritura.

O sentido de nação envolve a existência de uma coletividade imaginada de pessoas que estão ligadas por uma mesma cultura, linguagem, costumes e religiosidade. De início, o que ficou conhecido como ideal nacionalista teve uma motivação revolucionária e de resistência ao domínio externo, contra forças dominantes imperialistas e colonialistas. Esse ideal teve origem com a fragmentação do império – o Sacro Império Romano-Germânico, para ser mais exato. É um conceito com viés ideológico que está na base de todos os conflitos europeus que abalaram o mundo desde o século XVI e do colonialismo. Os primeiros ideais nacionalistas influenciaram a criação dos estados nacionais europeus e a expansão de suas esferas de influência a partir do processo de colonização.

O nacionalismo como tendência político-ideológica deu origem à racionalidade moderna, ao liberalismo e ao capitalismo. A racionalidade moderna enfatizou a autonomia do sujeito e a compreensão da natureza como uma extensão do pensamento humano. O liberalismo construiu a ideia de liberdade pensamento e de direito de propriedade em contraposição ao domínio do Estado absoluto. O capitalismo trouxe a ideia da produção da riqueza a partir da transformação da natureza para produzir bens de consumo com o emprego da força do trabalho e para a obtenção de lucro.

A fim de garantir as conquistas das nações europeias, surgiram movimentos que procuravam vincular o poder estatal, os interesses econômicos e a expansão territorial a partir de ideias e concepções que vinculavam esses objetivos com as tradições religiosas dominantes, tanto entre os dominadores quanto entre os dominados.

O ideal nacionalista, conquanto tivesse contornos materialistas bem nítidos e visasse a consolidação de uma estratégia de poder hegemônico, acabou se constituindo com os traços característicos de uma religião para realizar seu projeto político.

Nessa esteira do desenvolvimento do nacionalismo europeu como uma religião, surgiram o fascismo e o nazismo como forças dominantes que empregavam modelos retirados das tradições religiosas. Há cinco marcas características do nacionalismo como religião: o mito, o culto, a doutrina, a pregação e os meios de sustentação. No nacionalismo como religião:

a) O mito aponta para um ideal de domínio e controle e funda uma lógica de exploração e de afirmação de autonomia.
b) O culto é voltado para a defesa da pátria como território de domínio que precisa ser ampliado.
c) A doutrina rejeita tudo o que pode colocar em risco o interesse do mercado que financia o aparelho sustentador do status quo.
d) A pregação é condenatória e demonizadora de todo o pensamento que contraria o discurso de poder do Estado.
e) Os meios de sustentação vêm das práticas de exploração e de acumulação de riqueza nas mãos de poucos.

A ideologia do nacionalismo se apropria dos valores e das estruturas das religiões dominantes para impor seus interesses com o objetivo de restaurar princípios estabelecidos no passado e construir uma sociedade calcada naquilo que se entende como padrão moral para a vida comum. O nacionalismo religioso procura relacionar um viés político com a tradição religiosa predominante a fim de formar uma identidade nacional. Isso tem acontecido em outros contextos sociais que envolvem o Hinduísmo, o Budismo, o Islã e o Judaísmo, não só o Cristianismo.

O que tem sido chamado de Nacionalismo Cristão, no entanto, está mais ligado aos grupos fundamentalistas e neopentecostais que remetem aos ideais políticos, morais e sociais relativos a um momento histórico anterior à própria origem do Cristianismo. São enfatizados princípios relacionados à lei de Moisés e ao judaísmo primitivo. Não é um movimento do Cristianismo propriamente, nem se identifica com os valores da fé cristã como a justiça, a paz, a compaixão e o amor fraternal.

O nacionalismo praticado por segmentos evangélicos e católicos no Brasil tem duas matrizes: o integralismo brasileiro e a chamada “teologia do domínio” americana. Outra característica desse tipo de nacionalismo é que ele envolve uma diversidade de formas, de práticas e de princípios. Por essa razão, é mais correto falarmos de nacionalismos cristãos, no plural. Os nacionalismos cristãos em geral utilizam símbolos, expressões e narrativas tendo em vista a formação de uma sociedade regida a partir de valores judaico-cristãos.

A teologia do domínio tem sido o instrumento de orientação dessa ideologia, que defende a ocupação dos espaços sociais por parte de cristãos em todas as esferas, não só o governo central. O domínio se dá a partir do controle de diferentes setores a fim de que haja maior influência e imposição das ideias conservadoras. Isso inclui espaços como a família, os órgãos judiciários, as representações parlamentares, as instituições coletivas, enfim, em todas as esferas da vida pública.

Os nacionalismos cristãos têm se mostrado refratários ao Estado Democrático de Direito, ao pluralismo e à liberdade de pensamento que se oponham aos princípios que proclamam. Onde essa narrativa se estabelece, ocorrem também as práticas de discriminação, de preconceito, de exclusão e de apagamento das marcas históricas do que se apresenta como ameaça aos seus ideais.

Os grupos que defendem essa ideologia se mostram como supremacistas, racistas, homofóbicos e patriarcais, avessos ao diálogo, promotores da intolerância e da negação da diversidade religiosa. Deste modo, estão ligados ao espectro de extrema-direita, flertando de forma muito próxima ao fascismo e ao nazismo.

Todo nacionalismo cristão é um projeto de poder que visa estabelecer um reino de natureza global, com conexões internacionais, com a atuação das diferentes expressões cristãs, que devem se juntar em uma grande coalizão para promover esse reino global a partir de ideais nacionalistas.

As nações, uma vez governadas pelos justos, seriam conclamadas a se juntarem numa governança global para impor valores e práticas morais de acordo com uma determinada hermenêutica da tradição judaico-cristã.

Todos aqueles que se opõem a esse projeto de poder são considerados inimigos a serem destruídos, como ímpios e hereges. O governo dos justos deve suplantar o governo dos ímpios em cada nação, para que se estabeleça o domínio de natureza global.

Para expandir-se e para disseminar suas ideias, os nacionalismos cristãos se apropriam dos espaços religiosos como templos, púlpitos, cultos, publicações e instituições de ensino bíblico e teológico. A ideologia se espalha com velocidade e se interioriza no contexto das comunidades de fé a partir de movimentos carismáticos, moralistas e avivalistas, tendo como pano de fundo a defesa da família, do conservadorismo, da intervenção dos corpos e do rechaço aos ideais de cunho mais progressista. As vozes dissonantes são silenciadas através de um intenso processo de inquisição sem fogueiras, eliminando qualquer possibilidade de resistência.

Os movimentos ligados aos nacionalismos cristãos se estabelecem como uma religião que atua tanto com a intenção de proporcionar bem-estar quanto para causar rupturas e polarizações. Essa ambivalência faz com que essa ideologia se ajuste e encontre representação em diversos segmentos sociais, ocasionando inclusive formas de alienação e de negação de conquistas científicas, históricas e sociais já consolidadas pela humanidade. O enfrentamento a essa ideologia requer não só uma atitude crítica diante da barbárie e do retrocesso civilizatório, mas também uma abertura para repensar a respeito de quais seriam os valores que são essencialmente cristãos, que emergem do Evangelho e que podem restaurar a esperança de um mundo melhor e mais justo para todos.

** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

Foto de Capa: Rovena Rosa/Agência Brasil

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