Mídias continuam a desinformar sobre projetos que obrigam leitura da Bíblia nas escolas públicas
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No mesmo dia em que a mídia nacional e a internacional rememoravam os atentados ocorridos em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, o site Sul21, jornal online dedicado prioritariamente ao noticiário político, segundo definição na seção institucional da página, trouxe a seguinte manchete: “Câmara de Xangri-Lá (RS) torna obrigatória leitura da Bíblia nas escolas municipais”.
Segundo a matéria, a Casa Legislativa do município, localizado no litoral norte do Rio Grande do Sul, havia promulgado no dia 21 de agosto uma lei que torna obrigatória a leitura bíblica nas escolas públicas na cidade. O texto faz referência ao conteúdo publicado originalmente no Projeto de Lei (PL) n. 2.166, de 21 de agosto de 2020, assinado pelo presidente da Câmara, Valdir Machado Silveira (PSC), e pelo 1º secretário, Fábio Júnior Ramos (PP).
Fundamentada pelo texto do PL, a reportagem de Sul21 descreve como seria a inserção das leituras a partir da promulgação da lei. “Segundo o texto (ver ao final), promulgado pela Mesa Diretora da Câmara local, a leitura da Bíblia será de responsabilidade do professor de cada turma e deverá ser feita no início de cada turno escolar (manhã e tarde), podendo o docente autorizar ou não o debate do texto lido. A lei diz ainda que o trecho a ser lido, bem como capítulo e versículo, será escolhido de forma aleatória ou coletiva, ‘quando melhor convier à classe”. Ainda segundo o PL, a leitura única e exclusivamente do livro terá caráter de “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”. De acordo com Sul21, a obrigatoriedade teria entrado em vigor a partir da promulgação da lei.
A matéria jornalística salienta a inconstitucionalidade de legislações que tornam obrigatórias a leitura da Bíblia em escolas; elas são desaprovadas pelos juristas uma vez que vão de encontro à laicidade do Estado. A publicação exemplifica ainda o caso da cidade de Florianópolis, que, em 2015, instituiu uma lei que obrigava escolas públicas e privadas a disponibilizarem bíblias e que foi suspensa após ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Na página da Sul21 no Facebook, o post sobre o PL em Xangri-Lá, publicado no dia 12 de setembro, gerou comentários de repúdio à iniciativa da Câmara e questionamentos quanto à laicidade de Estado. Foram 68 interações, 24 comentários e 7 compartilhamentos.
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Entendendo a laicidade do Estado
Conforme esclarece o advogado Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, Estado laico é a condição de um país ou nação que adota uma posição neutra no campo religioso. Também conhecido como Estado secular, tem como princípio a imparcialidade, não apoiando ou discriminando nenhuma religião. Defende ainda a liberdade religiosa a todos os cidadãos e não permite a interferência de correntes religiosas em matérias sociopolíticas e culturais.
Um país laico é aquele que segue o caminho do laicismo, doutrina que defende que a religião não deve ter influência nos assuntos do Estado. O laicismo foi responsável pela separação entre a Igreja e o Estado e ganhou força com a Revolução Francesa.
O Brasil é oficialmente um Estado laico, pois a Constituição Federal e outras legislações preveem a liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas. O inciso VI do art. 5º desse dispositivo legal estabelece:
“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”
Constituição Federal de 1988
Vecchiatti reforça que a laicidade do Estado pressupõe a não intervenção da Igreja no Estado, entretanto um aspecto que contraria essa orientação é o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras. Já em países não laicos (teocráticos), a religião exerce controle político na definição das ações governativas. Ali, o sistema de governo está sujeito a uma religião oficial, como ocorre no Vaticano (Igreja Católica), Irã (República Islâmica) e Israel (Estado Judeu).
Outro conceito é o de Estado confessional, em que o Estado reconhece determinada religião como sendo a oficial. Apesar disso, não se deve confundir Estado teocrático com Estado confessional, porque no primeiro caso é a religião que define o rumo do país, ao passo que no segundo ela não é tão importante na comparação entre os dois modelos, mas ainda assim tem mais influência do que em um Estado laico, explica o advogado.
Deve-se destacar, no entanto, que um Estado laico não é o mesmo que um Estado ateu, que não permite que os cidadãos professem sua fé; ao contrário, assume igualdade entre todas as crenças e cidadãos que as professam e deve atuar garantir a liberdade de religião. Por essa razão, um PL que decide impor a leitura bíblica em escolas municipais e privilegia os cristãos em detrimento de estudantes e professores não cristãos fere o princípio de laicidade e, portanto, a Constituição. Sendo assim, projetos desta natureza se tornam inconstitucionais.
Outras localidades também já apresentaram PL semelhante ao de Xangri-Lá
O cristianismo é a religião com o maior número de adeptos no Brasil. Dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha, que atualizam dados do Censo do IBGE (2010), mostram que 81% da população do país é cristã. O estudo, realizado nos dias 5 e 6 de dezembro de 2019 com 2.948 entrevistados em 176 municípios, revelou que 50% é de origem católica, 31% evangélica, 3% espírita, 2% autodeclarados como pertencentes ao candomblé ou outras religiões afro-brasileiras, 1% de ateus, 0,3% judaicos e ainda 10% autodeclarados como sem religião.
Os números explicam as iniciativas com foco em projetos de lei que visam promover conteúdos cristãos no ensino público. Nesse sentido, casos como o de Xangri-Lá já foram pauta de diversos debates ao redor do país. Recentemente, o Coletivo Bereia realizou checagem de matéria sobre a aprovação na Assembleia Legislativa do Maranhão (Alema) do Projeto de Lei nº 281/2019 que insere a Bíblia como livro obrigatório no acervo bibliográfico indicado pela Comissão de Remição pela Leitura. O documento acrescenta dispositivos à Lei Estadual nº 10.606/2017 que institui o Projeto “Remição pela Leitura” no âmbito das penitenciárias do Maranhão. A proposta foi apresentada pela deputada estadual Mical Damasceno (PTB) e aprovada com a totalidade dos votos dos parlamentares presentes.
A checagem do Bereia traz ainda outro exemplo, dessa vez ocorrido na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O PL nº 390/2017 foi vetado em fevereiro deste ano por ser considerado inconstitucional sob o argumento de que legislação penal é de competência do Senado e da Câmara, e não da Alesp, como prevê a Constituição.
Em São Luís (MA), decreto sancionado pelo então prefeito Tadeu Palácio (à época no PDT), em 20 de março de 2003, tornou obrigatório que as escolas municipais do ensino fundamental adotassem a leitura da Bíblia antes do início das aulas.
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Por se tratar de um projeto inconstitucional, foi proposto e vetado, assim como ocorreu em outras cidades que também desejavam incluir a leitura bíblica ao ensino municipal. Foi o caso de Nova Odessa (SP), em 2014, em que projeto de autoria do vereador Vladimir Antônio da Fonseca (SDD) – e que foi vetado pelo prefeito Benjamin Bill Vieira de Souza (PSDB) – previa a leitura de um versículo bíblico por dia para os alunos do 1º ao 5º ano .
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A inconstitucionalidade da lei também foi declarada no Rio de Janeiro em 2015 sobre a Lei nº 5.998/11, que obrigava escolas públicas e privadas a terem um exemplar da Bíblia em sua biblioteca. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio determinou que a lei feria o princípio de neutralidade das religiões.
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Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou pela terceira vez o recurso da Prefeitura de Manaus (AM), que pedia para manter as determinações previstas na Lei n. 1.679/2012 que obrigava que todos os espaços públicos municipais de leitura dispusessem de um exemplar da Bíblia. O projeto de lei, de autoria do então vereador Marcel Alexandre, já havia sido derrubado pelo Tribunal de Justiça do Amazonas em julho de 2018.
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Valdir Machado Silveira (PSC), autor da lei proposta recentemente pela Câmara de Xangri-Lá (RS), é pastor evangélico e cantor gospel. A justificativa para o projeto não é religiosa, conforme ele afirmou. Segundo o vereador, por meio da leitura bíblica quer “tornar o ambiente escolar mais saudável e altruísta”.
O Coletivo Bereia entrou em contato com a Câmara Municipal de Xangri-Lá para apurar a proposição do PL. De acordo com a diretora legislativa, Camila Galvão, trata-se de um projeto aprovado em 2019, mas não sancionado pelo Executivo. A proposta veio à tona novamente, por meio do Projeto de Lei nº 2166, aprovado novamente pelos vereadores, mas ainda não sancionado pela Prefeitura.
De acordo com Ministério Público Federal (MPF), em 2019, o órgão encaminhou ao procurador-geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul representação por inconstitucionalidade do referido PL. A atuação foi do procurador Regional dos Direitos do Cidadão, Enrico Rodrigues de Freitas.
Para o MPF, é evidente a inconstitucionalidade material da norma, uma vez que o STF possui vasta jurisprudência na análise das diretrizes e limites da laicidade do Estado, bem como da liberdade religiosa do cidadão. Dessa forma, a imposição de leitura e autorização/indução de debate confessional em horário escolar regular, em período de disciplinas de matrícula obrigatória, ofende tanto a Constituição Federal quanto a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Além disso, viola a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Igualdade Racial.
Soma-se a isso o fato de que a lei municipal também sofre de inconstitucionalidade formal, pois compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, e à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concomitantemente sobre educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação. Não é permitido ao município editar a lei por faltar-lhe competência legislativa.
Portanto, Bereia classifica a matéria do Jornal Sul21 como imprecisa, uma vez que oferece conteúdos verdadeiros, porém sem considerar as diferentes perspectivas e não contextualizar a situação em questão. O site não explica que o PL que tornaria obrigatória a leitura bíblica em escolas de Xangri-Lá foi promulgado pela Câmara dos Vereadores, mas ainda não foi aprovado pelo Executivo.
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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução
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Referências de checagem
A Crítica, https://www.acritica.com/channels/manaus/news/stf-afirma-ser-inconstitucional-lei-que-exige-biblia-em-escolas-de-manaus. Acesso em: 15 set 2020.
BemParaná, https://www.bemparana.com.br/noticia/leitura-obrigatoria-da-biblia-em-escolas-e-vetada-no-interior-de-sp#.X2DrtWhKjIW. Acesso em: 15 set 2020.
Constituição Federal, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 13 set 2020.
ConsultorJurídico, https://www.conjur.com.br/2015-out-06/inconstitucional-lei-rio-obriga-escolas-terem-biblia. Acesso em: 15 set 2020.
Extraclasse, https://www.extraclasse.org.br/politica/2020/09/vereadores-de-xangri-la-aprovam-lei-que-obriga-leitura-da-biblia-nas-escolas-publicas/. Acesso em: 15 set 2020.
Lei Ordinária n. 4.160/2003, https://leismunicipais.com.br/a1/ma/s/sao-luis/lei-ordinaria/2003/416/4160/lei-ordinaria-n-4160-2003-torna-obrigatorio-que-as-escolas-municipais-de-ensino-fundamental-adotem-a-leitura-da-biblia-antes-das-aulas-e-da-outras-providencias?r=p. Acesso em: 15 set 2020.
Ministério Público Federal, http://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/mpf-representa-por-inconstitucionalidade-de-lei-que-torna-obrigatoria-a-leitura-da-biblia-nas-escolas-publicas-de-xangri-la-rs. Acesso em: 17 set 2020.
Revista Jus Navigandi, https://jus.com.br/artigos/11457. Acesso em: 15 set 2020.
Sul21, https://www.sul21.com.br/cidades/2020/09/camara-de-xangri-la-rs-torna-obrigatoria-leitura-da-biblia-nas-escolas-municipais/. Acesso em: 13 set 2020.
Sul21, https://www.facebook.com/Jornal.Sul21/. Acesso em: 13 set 2020.