A morte da jovem brasileira Juliana Marins, de 26 anos, em 24 de junho, durante uma trilha no Monte Rinjani, na Indonésia, gerou comoção nacional e uma onda de desinformação sobre o traslado de brasileiros mortos no exterior. Opositores do governo federal passaram a compartilhar conteúdos enganosos com alegação de que o Estado teria se recusado a cumprir uma “obrigação” de repatriar o corpo, o que não corresponde à legislação vigente até então.
Bereia identificou que essas mentiras passaram a circular também em grupos de WhatsApp com pastores evangélicos e em portais de notícias gospel.
Entenda o caso
O Decreto nº 9.199/2017, assinado pelo então presidente da República Michel Temer (MDB) e a Lei nº 9.199/2019, aprovada aprovada no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro (PL) estabelecem que o governo federal não poderia custear sepultamentos ou translado de corpos de brasileiros falecidos no exterior, salvo em situações excepcionais, como missões oficiais.
Diante dessa limitação jurídica, em 25 de junho, o Itamaraty informou à família da jovem morta na trilha do vulcão que prestaria assistência consular, mas não poderia arcar com as despesas do traslado.
Diante da repercussão e comoção com o caso e do apelo da família, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva telefonou ao pai de Juliana Marins e anunciou a mudança da norma.
O Decreto nº 12.535, publicado neste 27 de junho, prevê agora a possibilidade de o governo federal custear, em caráter excepcional, o traslado de brasileiros falecidos no exterior, desde que haja comoção pública, comprovação de vulnerabilidade econômica da família, inexistência de seguro ou vínculo com missões oficiais.
Apesar da mudança legal, o monitoramento do Bereia aponta que vídeos, postagens e matérias de viés religioso têm atribuído falsamente ao governo uma omissão deliberada, sem contextualizar o marco legal anterior nem a alteração feita por decreto.
Para a editora-geral do Bereia Magali Cunha, o episódio revela como tragédias podem ser instrumentalizadas politicamente: “Há um uso recorrente de desinformação em ambientes religiosos digitais para reforçar discurso de oposição ao governo federal. Mesmo em momentos de luto, a verdade é sacrificada em nome de disputas ideológicas. A oposição é saudável e necessária em uma democracia, porém tal estratégia precisa ser refutada”.
O novo decreto ainda dependerá de regulamentação do Ministério das Relações Exteriores e da disponibilidade orçamentária para ser aplicado a outros casos. Enquanto isso, a família de Juliana Marins aguarda a chegada do corpo e segue em luto, agora com o apoio oficial do Estado brasileiro para que a jovem seja sepultada no país.
Relembre o caso
Juliana Marins, moradora de Niterói, Rio de Janeiro, desapareceu no sábado, 21 de junho, após escorregar de um penhasco durante uma escalada no segundo maior vulcão da Indonésia. Seu corpo foi localizado por um drone dois dias depois e resgatado apenas na quarta, 25 de junho, após sucessivos atrasos causados por terreno íngreme e mau tempo.
A família afirmou que houve negligência das autoridades locais no resgate, pois a jovem teria sido ouvida com vida horas após o acidente. A tragédia mobilizou apoio popular nas redes e gerou uma campanha pública para financiar o retorno do corpo ao Brasil.
Vídeos e correntes de mensagens alarmistas sobre cristãos perseguidos e mortos na Síria inundaram perfis de identidade religiosa em mídias sociais e grupos de igrejas no WhatsApp neste mês de março.
Estas publicações alegam que cristãos estão sendo massacrados na Síria por grupos islâmicos. Bereia checou o material.
Entre os conteúdos analisados está um vídeo da influenciadora evangélica Samia Sousil, missionária na Índia, enviado por leitores ao Bereia. A gravação, publicada no Instagram em 10 de março, viralizou nas mídias digitais e foi marcada pela plataforma como “conteúdo sensível”, contendo imagens de corpos e apelos emocionais.
Imagem: reprodução/WhatsApp
Imagem: reprodução/Instagram
Publicações semelhantes circulam em grupos no WhatsApp, principalmente entre fiéis e lideranças religiosas evangélicas:
Imagem: reprodução/Facebook
Imagem: publicação em grupo de WhatsApp
Estes conteúdosassociam a nova onda de violência na Síria a perseguição religiosa a fiéis do Cristianismo, mas as vítimas são, na verdade, membros da minoria islâmica alauita, alvo de ataques após a queda do governo de Bashar al-Assad em dezembro de 2024.
Assad foi deposto por forças rebeldes que tomaram a capital Damasco após 13 anos de guerra civil. Este evento marcou o fim de seis décadas do governo da família Assad na Síria e representou uma mudança significativa na geopolítica do Oriente Médio.
Agências internacionais relatam massacre de Alauitas
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os recentes assassinatos na Síria ocorreram maioritariamente em bairros alauitas nas províncias costeiras de Latakia e Tartus, redutos históricos de apoio ao ex-presidente Bashar al-Assad. Em declaração oficial, o secretário-geral António Guterres alertou para a escalada das tensões sectárias e pediu que todas as partes envolvidas protejam civis e evitem discursos de ódio e ações violentas, após 14 anos de guerra e cinco décadas de governo autoritário no país.
A rede de TV Al Jazeera informou que, após a deposição do presidente Bashar al-Assad, ocorreram ataques significativos contra vilarejos alauitas, resultando na morte de centenas de pessoas
Uma investigação da CNN revelou o massacre de uma comunidade alauita na vila de al-Sanobar As forças alinhadas ao novo governo comemoraram os atos de violência, o que evidencia ainda mais a brutalidade dos ataques contra essa minoria religiosa.
O documento detalha execuções sumárias e outras atrocidades ocorridas na região costeira da Síria após ataques insurgentes contra forças de segurança sírias A comunidade alauita foi mais afetada por essa violência.
A HRW enfatiza que, embora os novos líderes sírios tenham prometido romper com os horrores do passado, graves abusos em escala alarmante estão sendo relatados contra os alauitas em diversas partes da Síria.
Já o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH)relatou que, entre 6 e 10 de março de 2025, pelo menos 803 pessoas foram executadas na Síria. O relatório destaca que a maioria das vítimas eram civis, incluindo mulheres e crianças, e que as execuções ocorreram principalmente em vilarejos alauitas na região costeira do país.
Quem são os alauitas e por que estão sendo perseguidos?
Durante séculos, este segmento foi marginalizado e excluído das estruturas de poder, até a ascensão de Hafez al-Assad ao governo sírio em 1971, o que marcou o início de uma nova fase para o grupo religioso.
De acordo com a obra The History of Syria: 1900–2012, de Clement M. Hall, o regime da família Assad, estabelecido por Hafez al-Assad, consolidou-se como uma ditadura centralizadora, mas procurou garantir certa estabilidade interna ao adotar uma política de proteção às minorias religiosas.
Em um país marcado por forte fragmentação sectária, o primeiro Assad a governar, pertencente à minoria alauíta, sustentou um discurso de laicismo e unidade nacional, promovendo a convivência entre diferentes grupos religiosos, como cristãos, drusos, xiitas e armênios. Embora repressivo em termos políticos, este governo conteve o avanço do sectarismo e favoreceu a presença de minorias no funcionalismo público e nas forças armadas.
Essa abordagem foi mantida, ao menos nos primeiros anos, pelo sucessor, o filho Bashar al-Assad, que assumiu o poder em 2000 e ampliou alianças estratégicas com segmentos religiosos minoritários. Estas alianças seriam rompidas com a explosão do conflito sectário durante a guerra civil iniciada em 2011.
Em entrevista à Agência Brasil, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC(UFABC) Mohammed Nadir avalia que “os [atuais] assassinatos em massa de civis alauitas, incluindo famílias inteiras e de crianças, enfraquecem o discurso do novo presidente do país, Ahmed al-Sharaa(al-Jolani), de que o novo poder irá respeitar as minorias e promover um governo de união nacional”.
De acordo con o prof. Nadir, este segmento é o segundo maior grupo religioso do país, atrás dos muçulmanos sunitas. Estão localizados em maior número nas províncias costeiras sírias de Latakia e Tartus, mas estão presentes também em outros países como o Iraque, o Líbano e a Turquia.
O vínculo dos alauitas com o antigo regime transformou essa minoria em uma espécie bode expiatório para setores radicais do novo poder. Ainda que não haja um projeto oficial de extermínio, os ataques sistemáticos contra comunidades alauitas demonstram a fragilidade da promessa de união nacional e reforçam o cenário de instabilidade e violência sectária que ainda domina o país.
Lucas Kerr-Oliveira, Ana Karolina Morais Silva e Issam Rabih Menem explicam ao Le Monde Diplomatique Brasil, que a guerra civil síria teve início em 2011, no contexto da Primavera Árabe, com protestos populares contra o regime de Bashar al-Assad que rapidamente se transformaram em um conflito armado complexo e multifrontal.
Ao longo de 13 anos, o país viveu disputas entre o governo, grupos rebeldes seculares, milícias curdas, facções jihadistas e potências estrangeiras. O regime de Assad, sustentado por aliados como Irã, Rússia e Hezbollah, resistiu até ser derrubado entre novembro e dezembro de 2024, após uma ofensiva da coalizão Hay’at Tahrir al-Sham ou Organização para a Libertação do Levante (HTS), liderada por Abu Mohammed al-Jawlani
Em menos de duas semanas, o grupo, que tem origem jihadista e já controlava áreas do norte da Síria, conseguiu avançar sobre a capital e derrubar um regime que esteve no poder há mais de cinco décadas. A vitória da HTS, que se apresenta hoje como força política moderada, mas tem raízes na organização armada Al-Qaeda.
Os muçulmanos xiitas, entre eles os alauitas — grupo do qual fazia parte o ex-presidente Bashar al-Assad — representam cerca de 13%. Cerca de 10% dos sírios são cristãos, entre eles ortodoxos gregos, maronitas e católicos. Os curdos, também em torno de 10%, vivem principalmente no norte do país. No sul, estão concentrados os drusos, grupo religioso com práticas esotéricas.
Além disso, a Síria abriga comunidades armênias, assírias, circassianas e turcomanas. Essa diversidade, embora culturalmente rica, tem sido fonte de tensões e conflitos, especialmente quando minorias são associadas a regimes políticos ou se tornam alvo de perseguições, como ocorre atualmente com os alauitas
Imagem: Coletivo Bereia
Cristãos na Síria
Durante o governo da família Assad — tanto sob Hafez al-Assad (1971–2000) quanto sob seu filho Bashar al-Assad (2000–2024) — os cristãos na Síria viveram um período de relativa estabilidade e liberdade religiosa, especialmente se comparado à situação de cristãos em outros países do Oriente Médio.
O regime reconhecia diversas igrejas, como a Ortodoxa Grega, a Maronita e a Católica Síria, e permitia a construção de templos, a realização de celebrações públicas e a manutenção de escolas religiosas. Cristãos também ocupavam postos relevantes no funcionalismo público, nas Forças Armadas e nas universidades, compondo parte da elite urbana em cidades como Damasco, Homs e Aleppo.
A aliança dos Assad com minorias religiosas, incluindo cristãos, era estratégica para equilibrar o poder da maioria sunita. Com o início da guerra civil em 2011, a ameaça representada por grupos jihadistas como o Estado Islâmico e a Frente al-Nusra fortaleceu o apoio cristão ao regime, visto como uma proteção contra o extremismo religioso.
Embora haja temor e insegurança entre cristãos sírios diante do novo cenário político no país, não há registros recentes de ataques sistemáticos ou massacres direcionados especificamente contra essa comunidade, conforme apurado por agências internacionais e pela ONU.
Há casos específicos, como na cidade de Maaloula,de maioria cristã, conhecida por preservar o idioma aramaico. Residentes denunciaram assédio e vandalismo, especialmente devido a acusações de apoio a grupos de oposição durante a guerra civil. Apesar de solicitar proteção ao novo governo islâmico liderado por Ahmad al-Sharaa, poucas mudanças foram observadas.
Em dezembro de 2024, cristãos sírios participaram de missas de Natal pela primeira vez desde a queda de Assad. Apesar das medidas de segurança reforçadas, incidentes como o incêndio de uma árvore de Natal na província de Hama geraram preocupações sobre a proteção de locais cristãos.
Em Damasco, de acordo com a RFI/UOL, a preocupação dos cristãos aumentou após os ataques contra os alauitas. O receio é de que outras minorias religiosas passem a ser alvo de violência em regiões onde o novo governo não exerce pleno controle.
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Bereia considera que, embora exista uma preocupação legítima da comunidade cristã diante da instabilidade na Síria, não há evidências concretas de perseguição ou massacres direcionados aos cristãos no cenário atual. A desinformação que circula nas redes sociais distorce fatos, instrumentaliza a fé e contribui para o aumento da intolerância religiosa.
O uso de tragédias reais, como o massacre da minoria alauita na Síria, para sustentar falsos discursossobre perseguição a cristãos compromete a compreensão pública dos fatos e alimenta preconceitos, especialmente contra muçulmanos. Tais publicações, além de promoverem o medo, servem a interesses políticos e financeiros.
Bereia reforça que é essencial buscar fontes confiáveis e verificar o contexto de informações que circulam nas redes sociais, especialmente quando envolvem temas sensíveis como perseguição religiosa. O respeito à diversidade e à verdade dos fatos é essencial para o diálogo e a convivência democrática entre os povos e as religiões.