Despojar-se de tudo para ganhar tudo: o boneco de sal

Nos últimos tempos temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente à questão do Covid-19, de seu contexto que é a superexploração da Terra viva e da natureza pelo capitalismo globalizado, incluindo a China. Elas se defenderam enviando-nos uma gama de vírus (zika, ebola, febre aviária e suína e outros) e agora este que atacou a humanidade inteira, poupando outros seres vivos. A corrida desenfreada da acumulação desigual e todos tivemos que parar, entrar no isolamento social, evitar conglomerações e usar as incômodas máscaras. Acolhemos estas limitações em solidariedade uns com os outros e com os sofredores do mundo inteiro.

Essa situação severa enseja a ocasião de não apenas pensarmos no que virá após a pandemia mas de voltarmos sobre nós mesmos, sobre as questões cotidianas como a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca terminada mesmo sob o confinamento social. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.

Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe inúmeras barreiras: de profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo e outras. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes face a dados que não podemos mudar como a presença de uma pessoa com seus altos e baixos ou de um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível.

Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental:”se alguém sente profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância”. Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para os outros.

A outra tarefa consiste na busca da autorrealização. Esta, essencialmente, é a capacidade de desapegar-se. O zen-budismo coloca como teste de maturidade pessoal e de liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno, em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, dos parentes e das pessoas amigas. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irrefragavelmente vão diminuindo até cessarem e aí nos despedirmos da própria vida. Nestas despedidas temos crescido em nossa identidade mas à custa de deixarmos um pouco de nós mesmos para trás.

Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não guarda um sentido existencial a ser buscado pelo espírito? Se, na verdade, comparecemos como um projeto infinito e um vazio abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e de misericórdia, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca finalmente descansará, como o cor inquietum de Santo Agostinho?

Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que esta foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre Teresa, de Irmã Dulce e, creio eu, também do Papa Francisco, o maior dos humanos de hoje.

Talvez um estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda que produz um ganho.

“Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia compreendê-lo. Perguntou o boneco de sal:” Quem és tu? E o mar respondeu:”eu sou o mar”. Tornou o boneco de sal: “Mas que é o mar?” E o mar respondeu:” Sou eu”. “Não entendo”, disse o boneco de sal. “Mas gostaria muito de compreender-te; como faço”? O mar simplesmente respondeu: “toca-me”.

Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que o mar começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar, veja o que fizeste comigo”? E o mar respondeu:”Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te dares todo para me compreender todo”.

E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o boneco continuava perguntando: “que é o mar”? Até que uma onda o cobriu totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no mar: “Sou eu”.

Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Pastor usa informações falsas em pregação sobre vacina contra Covid-19

* Com colaboração de Bruno Cidadão

Pelas mídias sociais, circula o vídeo de um pastor que, durante pregação em uma igreja, propaga mentiras sobre a Coronavac, vacina chinesa contra a Covid-19. Nas imagens, o pastor afirma:

“Daqui alguns anos muitas pessoas vão morrer de câncer, por quê? Por causa da vacina. Um cientista francês soltou um vídeo todo em francês alertando sobre a vacina. Já está sendo constatado por ele, um grande cientista francês, que o vírus surgiu na França, criado em laboratório, foi levado para China, aprimorado e espalhado para o mundo. (…) No mundo não tem uma nação comprando vacina da China. Quem tá comprando? São Paulo. Aí o cientista soltou a nota dizendo que essa vacina que está vindo aí, quem tomar vai atingir o seu DNA. Quando atingir seu DNA você não vai sentir nada mas depois de um tempo doenças aparecerão. Muitas pessoas vão morrer de câncer achando que foi câncer porque comeu alguma coisa, porque é hereditário, porque tem tumor, mas na verdade é por causa da vacina. Você, concordando comigo ou não, graças a Deus, tem um presidente doido no Brasil que diz que no Brasil não vai ser ninguém obrigado a tomar, porque se fosse outro estaria dizendo ‘vai todo mundo tomar’. Eu não tenho coragem de tomar uma vacina vindo da China, o país de origem do vírus. O cientista diz que até HIV tem dentro dela.”

Pastor Davi Goes
Foto: Reprodução/Twitter

Bereia verificou que o líder religioso que aparece no vídeo é pastor na Igreja Assembleia de Deus Ministério Canaã, no bairro Água Fria, em Fortaleza (CE). Davi Goes é capelão no Exército Brasileiro e comandante da Capelania Samaritans, organização que oferece serviços religiosos. Segundo o site da organização, Goes foi militar das Forças Armadas, mas “saiu com méritos e honras para trabalhar no Exército de Deus”, sendo hoje pastor da igreja que tem cerca de 2.500 membros, onde foi gravado o vídeo.

Bereia checou nos registros do Portal da Transparência do Governo Federal e não encontrou qualquer vinculação de Davi Baracho Ferreira (nome de Davi Goes antes de sua alteração para Davi Baracho Ferreira Goes, em abril de 2013, por via judicial) nem de seu atual nome com qualquer órgão militar ou civil da Administração Pública Federal. Não foi possível ao Bereia verificar os dados dos militares da reserva – categoria em que supostamente Davi Goes se enquadra – uma vez que o governo federal tem descumprido, sem consequências, uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) de 11 de setembro de 2019 para que torne estas informações disponíveis.

Entretanto, em ferramentas de busca na internet, foram encontrados apenas dois registros que vinculem, em algum nível, Davi Goes com as Forças Armadas Brasileiras, mas nenhum deles comprova a vinculação como servidor efetivo ou temporário do órgão militar. O primeiro é referente ao Concurso Público para Admissão de Capelães Navais da Marinha do Brasil do ano de 2015, onde o nome do pastor aparece em documento de habilitação dos candidatos para realização de provas para o referido concurso. O segundo é referente ao mesmo cargo, porém em certame do ano de 2018, no qual Davi Goes aparece na relação de candidatos com inscrição deferida e habilitado para a prova escrita do concurso. Mesmo em busca por concursos anteriores e resultados dos certames, os sites das Forças Armadas não disponibilizam de forma facilitada os arquivos para consulta pública.

No Twitter, foram localizadas imagens em que Davi Goes aparece realizando funções de capelania militar, inclusive trajado conforme o código militar. Em uma das fotos é possível identificar a tarjeta em seu peito com o nome do pastor. As imagens foram publicadas em 21 de março de 2018 por um usuário do Twitter.

Foto: Twitter/Reprodução

Davi Goes, além disso, é filho de Jecer Goes, pastor fundador e presidente da denominação Assembleia de Deus Ministério Canaã, iniciada no ano 2000. Segundo postagem em um antigo site da igreja, em 2011, o ministério possuía 140 congregações, um seminário teológico, um santuário para 12 mil lugares, uma rádio, duas fazendas (uma delas com 852 hectares), um grande hospital evangélico e um canal aberto de TV para todo o Estado.

Após a repercussão da gravação de sua pregação, o pastor deletou seu perfil no Instagram, Twitter, Facebook, bem como seu canal no YouTube. A página da Igreja Assembleia de Deus Canaã em Água Fria no Youtube também não pode mais ser encontrada. Antes da exclusão, entretanto, era possível assistir pregações de Davi no mesmo cenário exibido no vídeo do qual falamos. Portanto, o sermão antivacina contra a Covid-19 foi, provavelmente, ministrado em um culto na igreja. 

Foto: Reprodução/Youtube

Na terça-feira (15), o Ministério Público do Ceará (MPCE) protocolou dois ofícios pedindo a responsabilização do pastor pelas informações falsas disseminadas. Para o MPCE, o pastor fere a legislação estadual contra fake news relacionadas à pandemia (Lei estadual nº 17.217/2020). Cabe à promotoria verificar se houve crime ou contravenção penal e, se constatado, Davi Goes poderá responder nas esferas civil e criminal pela fala.

Bereia tentou contato com a Assembleia de Deus Ministério Canaã mas não obteve resposta até o momento desta publicação. 

Sobre o vídeo do “cientista francês” mencionado pelo pastor, o Projeto Comprova já havia realizado verificação sobre o material original, com a colaboração do Coletivo Bereia

Bereia confere nesta matéria, especificamente, os trechos selecionados pelo pastor Davi Goes:

“No mundo não tem uma nação comprando vacina da China. Quem tá comprando? São Paulo” FALSO

A afirmação do pastor é falsa. A informação foi repetida também pelo vice-presidente da República Hamilton Mourão, na manhã deste 14 de dezembro, em entrevista em Brasília, mas tem sido desmentida por vários veículos jornalísticos, como fez o portal de notícias UOL. Além do Brasil (por meio do estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Butantã), dois outros países já encomendaram as vacinas desenvolvidas na China para imunizar suas populações e vêm realizando testes: a Turquia e a Indonésia. Além destes, o Chile tem realizado estudos sobre a vacina, embora ainda não tenha fechado contrato de compra para o território nacional. 

“Aí o cientista soltou a nota dizendo que essa vacina que está vindo aí, quem tomar vai atingir o seu DNA” FALSO

A falsidade sobre a “alteração do DNA” por parte da vacina já foi verificada em outras checagens do Coletivo Bereia. Essa confusão é comum entre aqueles que desconhecem os mecanismos das formas mais avançadas de vacinação, que são as vacinas de RNA mensageiro. O mecanismo, que alguns apontam “mudar o DNA”, não faz alterações no código genético nem é permanente para o indivíduo. Isto não existe em qualquer vacina.

RNA (ribonucleic acid) é uma sigla em inglês que significa ácido ribonucleico. O RNA, ao contrário do DNA, é composto por apenas uma fita e ela é produzida no núcleo celular a partir de uma das fitas de uma molécula de DNA. Depois de pronto, o RNA segue para o citoplasma celular, onde desempenhará sua principal função, que é controlar a síntese de proteínas.

Existem três tipos de RNA, o RNA mensageiro, o RNA transportador e o RNA ribossômico.

O RNA mensageiro (RNAm) é o responsável por levar a informação do DNA do núcleo até o citoplasma, onde a proteína será produzida.

As vacinas de RNA mensageiro funcionam da seguinte forma: o conteúdo da substância de imunização é um trecho de RNA mensageiro do vírus. As células das pessoas “leem” o RNA e produzem, enquanto ele permanecer no organismo (intervalo de dias), pedaços do vírus. O sistema imune do corpo humano identifica esses pedaços e começa a produzir anticorpos antes que sejamos infectados. Assim, quando o indivíduo tem contato com o vírus, já conta com um sistema imune treinado, e o RNA mensageiro que foi inserido já se encontra fora do corpo humano. 

A desinformação se torna ainda mais grave quando se recorda que a CoronaVac, vacina produzida pela Sinovac Biotech, indústria chinesa, é de RNA mensageiro. Este imunizante encomendado pelo Governo do Estado de São Paulo, na verdade, é do mesmo modelo já usado há anos no Brasil na “tríplice viral” que previne contra caxumba, rubéola e varíola. Ambas as vacinas trabalham com formas enfraquecidas do vírus, que são identificadas pelo sistema imune e geram resposta imunológica. Portanto, tal base da Coronavac não é novidade no país.

“Já está sendo constatado por ele, um grande cientista francês, que o vírus surgiu na França, criado em laboratório, foi levado pra China, aprimorado e espalhado para o mundo” FALSO

Desde abril, as fake news sobre os planos conspiratórios para a “fabricação” da COVID-19 vêm circulando na rede, com ares de ciência, fazendo-se uso de declarações do pesquisador francês e Nobel de Medicina Luc Montagnier. O pesquisador francês recebeu um quarto do prêmio no ano de 2008 pela sua descoberta do vírus HIV. Ele dividiu o prêmio com Françoise Barré-Sinoise (também com ¼) e Harald zur Hausen (½ do prêmio). No entanto, essa não é a primeira vez que o pesquisador se envolve em polêmicas científicas. 

Em 2009, Montagnier conduziu uma série de experimentos, com pouca validade científica, que buscavam defender a efetividade da homeopatia. Em 2012, ele também engrossou as linhas do movimento antivacina, afirmando que as mesmas seriam a causa de autismo em crianças. Ambas as declarações geraram revolta e descrédito da comunidade científica, que apresentou estudos e testes desmentindo ambas as declarações. 

A ideia do coronavírus ter sido criado em laboratório já foi testada e confirmada como falsa. Também em abril, um editorial da Agência Lupa demonstrou como vários artigos científicos têm indicado a falta de veracidade nas declarações, e há abundância de evidências de que o vírus é, de fato, natural e se desenvolveu do contágio animal para o humano.  

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Bereia conclui que o vídeo citado é verídico e representa uma gravação de pregação do pastor da Assembleia de Deus Ministério Canaã, Davi Goes, porém seu conteúdo é falso. A apuração mostra que o pastor mentiu durante culto ao dizer que o vírus foi criado em laboratório; que a vacina causará câncer, ao atingir o DNA dos usuários; e que contaminará com HIV. Todas estas afirmações já foram classificadas como falsas por diferentes fontes de informação comprometidas com a saúde da população.

O Coletivo Bereia chama a atenção dos/as leitores/as para que toda e qualquer afirmação referente à Covid-19, doença que já matou mais de 180 mil pessoas no Brasil, seja verificada antes de ser compartilhada. Ainda que informações sejam veiculadas por autoridades políticas e religiosas há muita mentira e confusão em circulação que pode causar a perda de vidas. Bereia está à disposição para receber denúncias e indicação de checagens pelo e-mail coletivobereia@gmail.com ou pelo WhatsApp (38) 98418-6691

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Referências

Capelania Samaritans. https://capelaniasamaritans.org/quem-somos/. Acesso em 14 dez 2020. 

Portal da Transparência, http://www.portaldatransparencia.gov.br/servidores/consulta?paginacaoSimples=true&tamanhoPagina=&offset=&direcaoOrdenacao=asc&colunasSelecionadas=detalhar%2Ctipo%2Csituacao%2Ccpf%2Cnome%2CorgaoExercicio%2CorgaoServidorExercicio%2Cmatricula%2CtipoVinculo%2Cfuncao&orgaosLotacao=OR52131%2COR52132&tipoVinculo=3&ordenarPor=nome&direcao=asc. Acesso em: 15 dez. 2020.

Diário da Justiça do Ceará, http://www.radaroficial.com.br/d/5314233633865728. Acesso em: 15 dez. 2020.

UOL, https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/09/14/governo-omite-ha-um-ano-pagamentos-a-militares-da-reserva-e-pensionistas.htm. Acesso em: 15 dez. 2020.

Marinha do Brasil, https://hugepdf.com/download/instruoes-aos-candidatos-diretoria-de-ensino-da-marinha-5ad2ae8452b52_pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.

CIAAR FAB, https://www2.fab.mil.br/ciaar/images/concursos/eiac2018/02relafsidefeiac18.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.

AD Canaã Saboeiro. https://adcanaasaboeiro.webnode.com.br/ministerio%20cana%C3%A3/. Acesso em 14 dez 2020. 

Diário do Nordeste, https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/pastor-diz-que-coronavac-causa-cancer-e-possui-hiv-e-mpce-pede-responsabilizacao-civil-e-criminal-1.3022961. Acesso em: 16 dez. 2020.

Assembleia Legislativa do Ceará, https://belt.al.ce.gov.br/index.php/legislacao-do-ceara/organizacao-tematica/trabalho-administracao-e-servico-publico/item/6995-lei-n-17-207-de-30-04-20-d-o-20-05-20. Acesso em: 16 dez. 2020.

Comprova. https://projetocomprova.com.br/publica%C3%A7%C3%B5es/virus-nao-foi-feito-na-franca-e-vacinas-nao-sao-uma-iniciativa-globalista-para-reduzir-a-populacao/. Acesso em 14 dez 2020. 

UOL. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/14/mourao-erra-ao-dizer-que-nenhum-pais-comprou-a-coronavac.htm. Acesso em 14 dez 2020. 

Veja Saúde. https://saude.abril.com.br/medicina/vacinas-de-dna-e-rna-contra-coronavirus-nao-causam-alteracoes-nos-genes/. Acesso em 14 dez 2020. 

Sanar Med. https://www.sanarmed.com/tipos-de-vacinas-em-estudo-contra-covid-19-resumo. Acesso em 14 dez 2020. 

Nobel Prize. https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2008/summary/. Acesso em 14 dez 2020. 

HuffPost. https://www.huffpost.com/entry/luc-montagnier-homeopathy-taken-seriously_b_814619#:~:text=Luc%20Montagnier%2C%20Nobel%20Prize%20Winner%2C%20Takes%20Homeopathy%20Seriously,-Dana%20Ullman%2C%20MPH&text=Dr.,strong%20support%20for%20homeopathic%20medicine. Acesso em 14 dez 2020. 

Forbes. https://www.forbes.com/sites/stevensalzberg/2012/05/27/nobel-laureate-joins-anti-vaccination-crowd-at-autism-one/?sh=6d3edb955c53. Acesso em 14 dez 2020. 

Piaui. https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/04/27/lupa-ciencia-coronavirus-laboratorio/. Acesso em 14 dez 2020. 

Site Gospel desinforma sobre inquérito do Ministério Público contra cantora gospel Ana Paula Valadão

Em 02 de dezembro o portal evangélico Gospel Prime publicou a matéria “Ministério Público aceita denúncia de ‘homofobia’ contra Ana Paula Valadão”.

Segundo Gospel Prime, a denúncia, aceita pelo Ministério Público Federal, decorre do fato de que a cantora Ana Paula Valadão manifestou seu posicionamento bíblico sobre a prática homossexual durante o Congresso Diante do Trono em 2016. Entretanto, o acontecimento veio à tona este ano depois de o vídeo com a gravação da fala da cantora ter viralizado em setembro passado.

A matéria de Gospel Prime afirma que a cantora “lembrou que a Bíblia condena a prática como pecado”, que ele tem suas consequências e associou a homossexualidade à Aids. “Inclusive tudo que é distorcido traz consequência naturalmente, nem é Deus jogando uma praga, um juízo não. Tá aí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres, enfim… Não é o ideal de Deus. Sabe qual é o sexo seguro, que não transmite doença nenhuma, o sexo seguro se chama aliança do casamento”, afirmou.

De acordo com o portal gospel, Ana Paula Valadão citou a Aids como “doença gay” e foi denunciada pelo conteúdo. “Toda a fala foi feita em um ambiente de culto, mas ainda assim o MPF aceitou a denúncia”, afirma a matéria, em tom crítico ao órgão judiciário.

O estabelecimento do inquérito

O ativista da causa LGBTI+ Agripino Magalhães solicitou ao Ministério Público de Belo Horizonte (MG) que abrisse um inquérito para investigar se houve crime de homofobia na fala da cantora.

O procurador Helder Magno da Silva aceitou a denúncia em novembro e foi aberto inquérito. Em sua decisão, o procurador afirmou que a declaração de Ana Paula Valadão “remonta à década de 1980 a narrativa da Aids como ‘doença/câncer/peste gay’ ou mesmo ‘castigo de Deus’, que se baseava na desinformação sobre o vírus e desconhecimento sobre a doença. Tal concepção, inclusive, foi há muito superada pelo conhecimento médico-científico”.

A investigação vai apurar se houve conduta discriminatória caracterizadora de discurso de ódio contra portadores de HIV. Até o momento a cantora não se manifestou sobre o caso.

O vídeo que levou ao inquérito

O vídeo com a fala de Ana Paula Valadão veio à tona na internet em setembro passado, alguns dias depois da postagem de conteúdo homofóbico pelo irmão dela, o pastor e cantor André Valadão, uma das lideranças da Igreja Batista da Lagoinha. Em 8 de setembro André Valadão havia sido questionado por um seguidor no Instagram sobre o que fazer em relação a dois rapazes membros da igreja que estavam namorando. A resposta do pastor circulou nas mídias sociais:

“Entendi. São gays. Então. Igreja tem um princípio bíblico. E a prática homossexual é considerada pecado. Eles podem ir para um clube gay ou coisa assim. Mas na igreja não dá. Esta prática não condiz com a vida da igreja. Tem muitos lugares que gays podem viver sem qualquer forma de constrangimento. Mas na igreja é um lugar para quem quer viver princípios bíblicos. Não é sobre a igreja expulsar, é sobre entender o lugar de cada um”.

André Valadão
Foto: Reprodução/Instagram

Após a repercussão, o pastor André Valadão apagou o post das mídias sociais. Em nota enviada à imprensa, a igreja afirmou que “A marca da Igreja Batista da Lagoinha é ser bíblica e ter como maior referencial a pessoa de Jesus Cristo, que recebia todas as pessoas sem distinção. Vemos isso por meio de sua trajetória registrada nos evangelhos, por isso, Ele é o nosso maior exemplo! Como Jesus nos ensina, nossas portas estão abertas para que todas as pessoas participem de nossos cultos de pregação das Sagradas Escrituras”.

No entanto, em atitude crítica para contradizer a defesa da igreja e do pastor Valadão, passou a circular em mídias sociais o vídeo de 2016, em que Ana Paula Valadão está no palco da Igreja da Lagoinha em uma conversa com o cantor Asaph Borba, quando dispara:

“Muita gente acha que isso é normal. Isso não é normal. Deus criou o homem e a mulher e é assim que nós cremos. Qualquer outra opção sexual é uma escolha do livre arbítrio do ser humano. E qualquer escolha leva a consequências. A Bíblia chama de qualquer escolha contrária ao que Deus chamou de ideal, o que Deus nos criou para ser, de pecado. E o pecado tem uma consequência que é a morte. Inclusive tudo que é distorcido traz consequência naturalmente, nem é Deus jogando uma praga, um juízo não. Tá aí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte e contamina as mulheres, enfim… Não é o ideal de Deus. Sabe qual é o sexo seguro, que não transmite doença nenhuma, o sexo seguro se chama aliança do casamento”.

Ana Paula Valadão

No meio da fala, Asaph Borba se manifesta: “Glória a Deus. Esse é o padrão de Deus”.

Bereia verificou que o vídeo que viralizou em setembro passado foi retirado da gravação de uma mesa no Congresso Internacional Adoração, Intercessão e Missão do Ministério Diante do Trono, em 26 de março de 2016. O evento foi transmitido ao vivo pela Rede Super e a gravação completa está disponível no YouTube da emissora. O congresso também está disponível no canal do Ministério Diante do Trono, banda de Ana Paula Valadão, mas o vídeo do dia 26 de março, que contém a conversa de Ana Paula e Asaph Borba, foi removido. No canal da Rede Super, os comentários foram limitados.

No vídeo na íntegra, verifica-se que após o uma apresentação musical de Asaph Borba, Ana Paula Valadão o convida para uma conversa sobre as experiências no chamado “campo missionário”. O cantor conta um testemunho sobre a época que foi trabalhar como missionário em Cuba e recebeu doações de um pastor e seu “companheiro”. Ana o interrompe para esclarecer que se tratavam de companheiros na obra missionária e não de um casal homossexual, proferindo então a fala reproduzida acima.

Em 20 de setembro, um grupo de manifestantes realizou um ato em frente à Igreja Lagoinha contra as falas homofóbicas da família Valadão. A Aliança Nacional LGBTI+ divulgou uma nota de repúdio sobre o caso e anunciou que processaria a pastora e cantora. “Ana Paula atinge toda a coletividade da comunidade LGBTI, e principalmente a dignidade das pessoas que vivem com HIV/AIDS, colocando-as como responsáveis pela proliferação de um vírus, equiparando de maneira vergonhosa, antiquada e criminosa uma expressão legítima de amor e afeto a um ato criminoso como ceifar a vida de um ser humano”, afirma um trecho da nota.

O Ministério Público enviou à Justiça a queixa-crime, em 15 de outubro, protocolada por entidades civis contra o cantor André Valadão por homofobia. Cabe à Justiça Federal decidir a respeito de uma ação penal contra o pastor.

Estereótipos: HIV e pessoas LGBTI+

A associação da comunidade LGBTI+ ao vírus da AIDS não é uma coisa nova. Desde 1984, quando o vírus foi descoberto por cientistas franceses, esse estereótipo cerca o grupo minoritário, principalmente os homens gays. Isso porque o contágio entre pessoas deste grupo era maior que em outros grupos sociais.

A causa do contágio acelerado foi motivada, principalmente, pela homofobia e pela falta de implementação de políticas sociais e educacionais que informassem a população sobre a gravidade do vírus.

Reportagem publicada no jornal Notícias Populares, em 1983.

Essa noção, entretanto, tem sido desconstruída por cientistas e especialistas, que enfatizam que pessoas LGBTI+, trabalhadoras sexuais e outros grupos estigmatizados são, na verdade, vítimas de uma epidemia, e não a causa dela. “Desde o início da epidemia, há 30 anos, as pessoas tinham na cabeça uma ideia de que homem gay é impuro — ele não podia nem doar sangue. E quando você tira o preconceito da história e coloca critérios técnicos [tanto sobre a doença, e a doação], você acaba com um estigma”, diz o infectologista Rico Vasconcellos, do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), em entrevista ao Portal HuffPost.

Ser portador de HIV não é a mesma coisa que ter Aids. Com os avanços da ciência em relação a medicamentos e prevenção, hoje é possível viver tranquilamente sendo soropositivo. Segundo dados da UNAIDS, atualmente são quase 38 milhões de pessoas vivendo com o vírus HIV no mundo. Ainda segundo a instituição, semanalmente, cerca de 6.000 jovens mulheres entre 15 e 24 anos são infectadas pelo HIV.

No Brasil, de acordo com Boletim Epidemiológico de HIV/Aids de 2019, entre 2007 e 2019, 51,3% dos casos de infecção por HIV entre homens foram decorrentes de exposição homossexual ou bissexual e 31,4% heterossexual. Entre as mulheres, nessa mesma faixa etária, nota-se que 86,5% contraiu o vírus em relação heterossexual. Segundo a UNAIDS, grande parte dessas mulheres adquire o vírus em relações monogâmicas, com maridos ou namorados que pegam em relações extraconjugais e transmitem, ou em situações de violência sexual.

Nas taxas de mortalidade em decorrência do vírus têm caído nos últimos anos, devido a políticas públicas de saúde, como campanhas de conscientização, distribuição de preservativos e distribuição do coquetel antirretroviral e outras medidas de controle do vírus. A Lei 9.313 estabelece a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV pelo SUS desde 1996.

Entretanto, as estatísticas também apontam que o número de infecções por HIV/Aids tem aumentado nos últimos anos. Segundo a UNAIDS, em 2010, houve 44 mil novas infecções por HIV no Brasil, em 2018, elas chegaram a 53 mil: um acréscimo de 21%.

Especialistas apontam vários motivos para esse aumento, inclusive o enfraquecimento das campanhas de prevenção e políticas públicas voltadas a HIV/Aids. “Houve simplesmente um silenciamento sobre a Aids, um descaso, um relaxamento por parte dos governos como também por parte de escolas, na questão da prevenção”, afirmou à DW Brasil Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Interdisciplinar de Aids (Abia).

O modelo brasileiro de combate ao HIV foi referência mundial durante anos, mas tem perdido o status devido a um desmonte do programa pelo atual governo federal. Um decreto assinado em maio de 2019 alterou o nome do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais para Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Ouvidos pela Revista Exame, especialistas, associações e ONGS que atuam na área afirmaram que nessa nova estrutura, a área de HIV/Aids foi rebaixada a uma coordenação, e no mesmo departamento foram incluídas tuberculose e hanseníase, doenças não relacionadas ao contágio sexual, o que enfraqueceu o programa.

Em fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que uma pessoa portadora de HIV é “despesa para todos no Brasil”.

O Ministério da Saúde alerta para os comportamentos que podem causar o contágio por HIV: sexo vaginal sem camisinha; sexo anal sem camisinha; sexo oral sem camisinha; uso de seringa por mais de uma pessoa; transfusão de sangue contaminado; da mãe infectada para seu filho durante a gravidez, no parto e na amamentação; compartilhamento de instrumentos que furam ou cortam não esterilizados.

Para superar preconceito e segregação, em 2014 foi publicada no Brasil a Lei nº 12.984, de 2 de junho de 2014, que define o crime de discriminação aos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids.

A repercussão do caso Ana Paula Valadão

O também evangélico Ministro da Justiça André Mendonça se pronunciou no último 3 de dezembro sobre a abertura do inquérito contra Ana Paula Valadão pelo MPF, por crime de ódio. Em uma sequência de três tuítes Mendonça disse: “Respeito os homossexuais. Aliás, respeito é um princípio cristão! Contudo, isso não significa que o cristão deva concordar ou não possa questionar o homossexualismo [sic] com base em suas convicções religiosas. O próprio STF assim reconheceu. Os direitos às liberdades de expressão e religiosa são inalienáveis!!! Por isso não aceito o processo de perseguição a que está sendo submetida a cantora e evangelista Ana Paula Valadão. Espero que a Justiça garanta os direitos desta cidadã brasileira, assim como tem garantido os direitos à liberdade de expressão de quem pensa em sentido contrário.”

Destaque-se que o ministro usa o termo “homossexualismo”, que remete à concepção de que a homossexualidade (o termo correto) seja uma patalogia, e não uma orientação sexual. A Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de doenças em 1990 e o termo “homossexualismo” é comumente usado com conotação pejorativa e condenatória.

Em seu pronunciamento, Mendonça faz referência à decisão do STF que criminalizou a homofobia, na qual houve uma ressalva à liberdade religiosa. A decisão não criminaliza dizer em templo religioso que o grupo é contra relações homossexuais, mas enquadra na lei quem induzir discriminação ou preconceito em templo religioso. Em outubro de 2020, mais de um ano depois dessa decisão, a Advocacia Geral da União (AGU), no clima do caso Valadão, pediu ao STF esclarecer se a decisão atinge a liberdade religiosa.

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Bereia conclui que o site Gospel Prime desinforma leitores/as com matéria imprecisa sobre o caso do inquérito de crime de ódio contra a cantora Ana Paula Valadão. O veículo não descreve o contexto em que o caso ocorre, não informa sobre as políticas internacionais e brasileiras sobre a AIDS e muito menos alerta sobre a última decisão do STF em relação a este tipo de situação, que criminaliza a indução de discriminação ou preconceito em templo religioso. A desinformação é ressaltada ainda com a vinheta da matéria, “Igreja Perseguida”, levando leitores/as a concluírem que o inquérito é uma perseguição à pastora e cantora por ela ser cristã, e não por sua fala discriminatória e promotora de ódio. Leitores/as também são levados a interpretar que cristãos teriam o direito de expressarem publicamente preconceito e rejeição contra pessoas que têm norma sexual distinta daquela indicada por certas interpretações de textos bíblicos.

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Foto de Capa: IstoÉ/Reprodução

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Referências

Canal Migalhas (Youtube): https://youtu.be/vE731aOI_5U. Acesso em: 03 dez. 2020

Portal Cultura: https://cultura.uol.com.br/noticias/14459_cantora-gospel-ana-paula-valadao-sera-investigada-por-homofobia.html. Acesso em: 03 dez. 2020

Portal UOL, https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2020/12/01/ana-paula-valadao-sera-investigada-por-homofobia-apos-fala-sobre-aids.htm. Acesso em: 04 dez. 2020.

Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. http://www.aids.gov.br/pt-br. Acesso em: 15 out. 2020.

Fundação Oswaldo Cruz, http://www.ioc.fiocruz.br/aids20anos/linhadotempo.html. Acesso em: 04 dez. 2020.

Unaids. https://unaids.org.br/estatisticas/. Acesso em: 15 out. 2020.

DW. https://www.dw.com/pt-br/o-que-explica-o-aumento-dos-casos-de-hiv-no-brasil/a-51455784. Acesso em: 15 out 2020.

Exame, https://exame.com/brasil/modelo-no-mundo-departamento-de-combate-ao-hiv-do-brasil-perde-status/. Acesso em: 04 dez 2020.

UOL. https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/02/08/estimulo-ao-preconceito-como-soropositivos-reagiram-a-fala-de-bolsonaro.htm. Acesso em 15 out 2020.

Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12984.htm. Acesso em: 04 dez. 2020.

DW, https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-30-anos-oms-retirava-homossexualidade-da-lista-de-doen%C3%A7as/a-53447329. Acesso em: 04 dez. 2020.

Portal G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/13/stf-permite-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia.ghtml. Acesso em: 04 dez. 2020.

Portal G1, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/14/agu-pede-ao-stf-para-esclarecer-se-criminalizacao-da-homofobia-atinge-liberdade-religiosa.ghtml. Acesso em: 04 dez. 2020.

A onça. https://www.aonca.com.br/pastor-e-cantor-gospel-andre-valadao-diz-que-igreja-nao-e-para-homossexuais-podem-ir-para-um-clube-gay-mas-igreja-nao-da/. Acesso em 22 set. 2020.

O Tempo. https://www.otempo.com.br/cidades/ato-e-feito-na-igreja-da-lagoinha-contra-falas-homofobicas-da-familia-valadao-1.2387791. Acesso em 22 set. 2020.

Portal UOL: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/10/15/mp-denuncia-andra-valadao-por-fala-homofofica.htm. Acesso em: 04 dez. 2020.

Melancias chinesas não vieram contaminadas com coronavírus

* Nota por Maria Fernanda de Lima

Voltou a circular em grupos religiosos no WhatsApp um áudio que já havia sido desmentido em maio deste ano pelo Boatos.org. O áudio tem quase dez minutos e nele uma mulher não identificada pede para avisar a população para não comprar melancias, pois todas elas estariam vindo da China contaminadas com o coronavírus.

Conforme outra checagem, realizada pela agência Lupa em setembro, que também declarou como falsas as informações contidas no áudio, o Ministério da Saúde afirma que não há qualquer evidência de que produtos enviados da China para o Brasil tragam o vírus.

Segundo o Boatos.org, o áudio tem características alarmistas, não apresenta qualquer fonte confiável e, além da questão das melancias, mente sobre uma série de outras informações falsas, como supostas vacinas que envenenariam a população e inexistência do coronavírus.

Confira a abaixo a reprodução, na íntegra, da checagem realizada pelo Boatos.org.

Melancia vendida no Brasil foi contaminada por chineses com coronavírus #boato

Caramba! O que não tem faltado na internet são informações malucas (talvez esse seja o melhor termo) relacionadas à Covid-19. A mais nova delas fala de uma “denúncia bombástica” que envolve caminhoneiros, chineses, coronavírus e… melancia.

De acordo com um áudio que está circulando no WhatsApp, uma mulher denuncia que “os chineses” estão contaminando todas as melancias no Brasil com o “vírus” (presume-se que seja o coronavírus), que os caminhoneiros estão sabendo, mas não podem fazer greve e que é preciso deixar de comprar a fruta. O áudio ainda fala que não existe Covid-19 e a pessoa que o narrou pede para ela não seja identificada. Leia a transcrição do áudio em questão:

Por favor, só não divulgue nome de quem te passar por favor, mas avisa toda população que puder. Não compre melancia no Brasil. as as melancias tá entrando. Já nos comércios todas contaminadas. Os caminhoneiros não pôde para greve, porque só tem eles para transportar as melancia os que tão os governantes que tão saindo de Brasília que tão pedindo as contas porque não tão concordando e tão correndo risco de vida, já foi vazado um áudio os chineses tão invadindo o Brasil. Eles querem o Brasil, Estados Unidos a qualquer custo. Só que eles querem comer na população já foi dado ordem. Para o presidente Assinar o decreto espichar mais três meses de seiscentos reais e se depender precisar espichar, mais seis meses que é pra não pegar a população indo trabalhar pa, pegar eles encurralado em casa pra aplicar as vacinas que já tão chegando no Brasil, quem não tomou a vacina vai ser ameaçada de ser preso.
Outra por que que os cadeeiro não pode sair porque lá dentro eles vão ter que consumir a melancia após as refeição e tomar as vacinas e as pessoas idosas vão pegar mais rápido o vírus porque as melancias tão contaminadas todas as melancia entendeu por favor, avisa o Máximo de população que puder porque vão ser obrigado também a tomar vacina todo pessoal da área de saúde até os que tão em casa e eles não tão conseguindo conter as pessoas em casa. Então, eles vão começar a multar quem tiver na rua Só vai poder sair de acordo com a data do seu aniversário, então por favor. Avisa a população que o problema não é máscara. O problema é a injeção que eles tão injetando até mesmo nos hospitais. Quem morre não pode ter direito ao corpo de delito. Eles tão jogando pro Covid-19 não tem Covid-19. é o veneno que eles tão injetando nas pessoas pra diminuir a população pra passar o Brasil Brasil. Dívida alta pra passar o Brasil por cima acontece que o nosso Presidente não queria usar máscara porque ele já sabia. Eles obrigaram o presidente usar máscara pra poder incentivar as pessoas, usa máscara e ficar em casa porque em casa que eles vão querer as pessoas pra vacinar por favor a vacina que tá chegando. Toda contaminada, as pessoas que se escaparem vai ter problema sério mentais em depressão. por favor, avisa o máximo que você puder não consumir as melancia daqui pra janeiro que tão todas contaminadas os governantes que estão ainda em Brasília, porque tão concordando em contaminar Todas as melancia, os caminhoneiro é obrigado a trabalhar na rua pra entregar as melancias pra ir pro comércio. por favor avisem o máximo que puder.

Melancia vendida no Brasil foi contaminada por chineses com coronavírus?

Caraca! Como tem gente maluca (ou mau caráter). Você notou que a pessoa que gravou o áudio pediu para não ser identificada? Sabe por que? Porque o áudio em questão é MUITO falso. Vamos aos fatos.

Como é possível ver, a mulher do áudio em questão faz acusações gravíssimas que envolvem tentativas de matar muitas pessoas dolosamente, contaminar alimentos, promover uma quebra de mercados e outras coisas. E sabe quantas provas ela apresenta? Nenhuma! Isso mesmo. A mensagem em questão vomita acusações e não apresenta nenhuma prova.

É importante citar que o áudio, além de ter características de boatos online, como ser vaga, alarmista, com erros de português e falta de citação de fontes confiáveis, tem diversas contradições que derrubam a tese. Vamos listar algumas só para vocês terem uma ideia.

1) A “contaminação massiva de melancias” cobraria uma logística gigantesca. Em 2014, o Brasil produziu 111 milhões de toneladas de melancia. Imagina só como seria o trabalho de infectar cada melancia. Isso demandaria uma mão de obra e matéria-prima (o vírus) que, com certeza, chamaria atenção. Mas sabe o que sabemos além do áudio da “agente secreta” do áudio? Nada. Não há uma referência sobre o assunto em fontes confiáveis.

2) Mesmo que a ação fosse realizada, não há garantia de que as pessoas fossem contaminadas. O vírus não se multiplicaria na melancia e, se o tempo de infecção até o consumo fosse longo (alguns dias), o vírus já estaria morto. Ou seja: não seria um “plano maléfico” tão eficaz.

3) A mulher fala que “os governantes que não concordam” saíram de Brasília. Com exceção de alguns ministros (como Mandetta, Moro e Teich), não houve nenhuma “renúncia”. Detalhe: nenhum dos três citados saíram por causa de “melancia”.

4) A mulher fala que a China vai invadir o Brasil. Essa tese não só é falsa como também já foi desmentida no Boatos.org. Leia aqui.

4) A mulher chega a falar que vão dar vacinas infectadas nas pessoas e que a Covid-19 não existe. De novo, mais duas informações que não procedem. Primeiro, porque ainda não foi homologada uma vacina para Covid-19. Segundo, porque está mais do que claro que o coronavírus existe.

5) Para terminar, não faz nenhum sentido a tese de que o governo vai prender as pessoas em casa para “se contaminarem”. Se houvesse um plano desses, o que faria sentido seria soltar as pessoas na rua para se contaminarem e morrer muita gente. Ainda bem que ninguém quer isso, não é?

Pela falta de provas apresentadas pela mulher que narra o arquivo e pelos absurdos apresentados, podemos dizer que a informação que circula na internet é falsa. As melancias não foram infectadas com o coronavírus por chineses que querem “invadir o Brasil”.

Ps.: Esse artigo é uma sugestão de leitores do Boatos.org. Se você quiser sugerir um tema ao Boatos.org, entre em contato com a gente pelo site, Facebook e WhatsApp no telefone (61) 99177-9164. 

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Júlio Lancelotti e a igreja samaritana

 Já lá se vão mais de seis meses desde que a pandemia foi reconhecida como flagelo universal que ameaçava a humanidade e o planeta.  Todos desde então foram instruídos a ficar em casa, sobretudo os idosos, por serem grupo de risco.  No entanto, em São Paulo, pelas ruas e praças onde os moradores de rua vivem e sofrem em meio à intempérie,  um senhor de 71 anos circula sem parar.  Todos os dias, a cada momento, dia útil, santo ou feriado. 

Trata-se do padre Júlio Lancelotti, da arquidiocese de São Paulo. Entrou já adulto no seminário. Após os estudos, ordenou-se e recebeu como missão do então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns ser vigário episcopal do povo de rua da arquidiocese.  Desde então, assimilou plenamente em sua vida todo o significado da palavra vigário. Oriunda do latim vicariu, seu primeiro e principal significado é: aquele que faz as vezes de outro. Vigário episcopal, padre Júlio passou a ser e representar a Igreja de São Paulo, na pessoa de seu bispo, junto àqueles e àquelas que vivem nas ruas.

Ele não os chama moradores de rua, mas sim “irmãos” de rua.  Não diz tampouco que trabalha com eles, pois não são objetos.  Diz que convive com eles, como os irmãos convivem uns com os outros.  Diante das infinitas necessidades que apresentam os que fazem da rua sua casa, o sacerdote atende desde a fome, o frio, a nudez, até a carência afetiva, o medo, o desespero, a solidão. Olha nos olhos de todos e ali, segundo ele, vê Jesus que disse que tudo que se fizesse ao menor de seus irmãos, a ele mesmo se faria. 

Sem nenhum medo do contágio que o vírus pode trazer, padre Júlio toca a cada um, abraça, acaricia, examina suas feridas e os abençoa, impondo as mãos sobre suas cabeças. Cuida de todos, conseguindo bicas de água para que possam higienizar as mãos, dando-lhes máscaras e encaminhando-os aos serviços de saúde quando apresentam febre ou sintomas de doença. 

Mas o sacerdote, ao mesmo tempo em que é só ternura e cuidado para com o povo da rua, sabe falar forte e assumir sua vocação de profeta quando se trata de denunciar injustiças e expor as feridas da desigualdade obscena de uma sociedade que descarta pessoas.  De uma lucidez impressionante, padre Júlio sabe ler a realidade com olhos críticos, enxergando e denunciando a raiz das injustiças e incriminando os responsáveis pelas mesmas. 

Sempre foi criticado e discriminado por aqueles a quem seu discurso, mas sobretudo sua prática incomodava.  Recentemente passou a receber ameaças, insultos e agressões mais pesadas.  Isso fez com que o cardeal Dom Odilo Scherer, pastor de São Paulo, se solidarizasse publicamente com ele relembrando o Evangelho pelo qual ambos empenham a vida. “Eu estou com ele…quem cuida dos pobres, vai sofrer junto com os pobres também. Sempre foi assim”.

O prefeito Bruno Covas também é seu admirador e agradece que o religioso constantemente denuncie as injustiças na cidade, para que sua administração possa recordar que deve prioritariamente aos mais vulneráveis.  Foi oferecida escolta policial ao padre, que delicadamente a recusou, em coerência com a solidariedade aos irmãos de rua. “Então eu fico com a escolta e os moradores de rua ficam com o cassetete, com a tortura? ”

Uma rede de auxílio foi montada ao redor de Júlio Lancelotti. Voluntários o auxiliam em seu trabalho, seja transportando a ele ou aos irmãos de rua pelo trânsito engarrafado da cidade, seja providenciando alimentos, cobertores, roupas e calçados para os que se enfileiram às centenas às portas de sua paróquia, pedindo e esperando. Diante das ameaças por ele recebidas, listas foram passadas e receberam milhares de assinaturas. 

Padre Júlio não está sozinho.  Tem com ele o povo a quem serve, a Igreja à qual pertence, todos aqueles que hoje lutam por um mundo mais justo e assumem com ele os conflitos a isso inerentes. Sua fidelidade inquebrantável é a Jesus Cristo e ao povo da rua. E para ser fiel a esse compromisso maior, sua energia chega a ser impressionante.  Parece uma fonte que nunca seca e faz com que a cada dia, de manhã à noite se repita a cansativa rotina de estar perto dos últimos e dos vencidos, levando seu serviço e seu cuidado. Poucos jovens suportariam o ritmo que o sacerdote já idoso impõe a sua vida. 

A caridade de Cristo o constrange, como disse Paulo de Tarso de si mesmo e dos cristãos de Corinto. Nesses tempos de pandemia e em todos os tempos onde a justiça for pisoteada e os pobres estiverem sofrendo será assim.  Pois, como diz o Papa Francisco, a Igreja deve ser samaritana. Tal como o samaritano da parábola do evangelho de Lucas 10, 25-37, há que cuidar do ferido à beira do caminho.  É preciso curar as feridas, abraçar os sofredores, aquecer os corações, estar próximo… É necessário começar de baixo. Júlio Lancelotti, em nosso país e em nossos dias, é certamente uma testemunha luminosa dessa Igreja que Francisco deseja ardentemente que se faça realidade.