“A Igreja irá perder as mulheres que pensam”. Entrevista com Ivone Gebara
*Publicada originalmente no IHU. Republicada no Cebi. Imagem: Cebi/Reprodução
“Dizer que a Virgem Maria é mais importante que os apóstolos só serve para que tudo continue igual. Isso não vem do Evangelho”. A teóloga brasileira Ivone Gebara é uma das máximas representantes da teologia feminista no mundo.
De Comillas [Espanha], onde esta tarde participou de algumas conversas organizadas pela Associação de Teólogas Espanholas, Gebara critica a “Igreja patriarcal” que, afirma, corre o risco de “perder as mulheres que pensam”. Conversamos com ela exclusivamente.
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 01-10-2018. A tradução é do Cepat.
EIS A ENTREVISTA.
Em sua exposição, você fala em alteridade, diferença e igualdade. O que quer dizer com tudo isso?
São conceitos muito relacionados com o feminismo, e por isso algumas filósofas feministas trabalharam, e eu também, estes conceitos, que não nasceram com o feminismo, mas de outras reflexões filosóficas, como as do filósofo judeu francês Levinas, que falou muito do outro, de quem é o outro. Minha contribuição é levantar uma suspeita de que as reflexões sobre a alteridade colocaram a mulher como ‘a outra’. E quando se fala de diferença, se faz dentro de um contexto, onde a universalidade masculina é bastante forte.
Vivemos uma ética machista?
Não necessariamente machista. Quero dizer que nem sempre estão relacionados a uma ética, mas, ao contrário, a uma maneira de reduzir o outro, de não levar em conta a diferença. Estes conceitos passam a ser teóricos, quase vazios na prática. A igualdade, a alteridade, a diferença… estão relacionadas a algo. Igual a quê, diferente de quê. Neste sentido, quero falar de algo que está relacionado à vida das mulheres, que é a beleza. Fabrica-se uma só beleza, que na realidade são os produtos que se vendem. As mesmas marcas produzidas para diferentes marcas…
Esta é uma teia de aranha na qual todas nós caímos, porque essa beleza é algo exterior, e é muito sacrificada. Temos que nos sacrificar muito para ter o peso ideal, a pele sem rugas… milhares de escravidões. Finalmente, falo do corpo feminino a partir do Cristianismo. E é interessante que no Cristianismo, e quando falo do Cristianismo falo da teologia, não do tempo de Jesus, o ideal da beleza feminina é um ideal ‘espiritual’, mas é a beleza do serviço. A mulher que é boa é a que serve, a que é muito boa mãe… Por exemplo, todas estas mulheres que vão à rua para falar dos direitos das mulheres traem o ideal da mulher como mãe, cuidadora, contida, dona de casa, zeladora da Igreja, servidora dos padres. São as mulheres que cozinham para eles, limpam os seminários…
A Igreja não percebe que o dia em que as mulheres disserem: ‘Já basta’ de ser servas, escravas… e não a outras coisas dentro dessa Igreja, a Igreja pode ficar vazia?
É que até agora eles veem este projeto de mulheres muito distante, sobretudo na América Latina. Percebem, mas agem como se o problema não existisse. Eu conheço alguns padres que pagam um salário mísero e, ao mesmo tempo, falam de justiça social. Estas contradições existem, porque existe a pobreza em que as mulheres vivem. Pobreza material, em primeiro lugar, mas também há uma ‘compensação’, porque às vezes o padre é bom tipo, educado, não é como o bêbado do marido. Existe o consolo…
Sim, mas a mulher não muda seu papel, permanece submetida…
Mas, a submissão é diferente. O padre não a pega, o padre lhe agradece, diz que irá rezar por ela. Há uma ideia do padre como representante de Jesus. Esta simbologia, de certa maneira, atrasa o processo.
Isso, aqui, se chama ‘micromachismos’, sem você se dar conta…
… está fomentando a injustiça. E o dia em que o padre perceber, as relações irão mudar. Mas são mais relações de amizade.
Quando a Igreja também reconhecerá as mulheres como discípulas de Jesus?
A primeira coisa que é necessário dizer é que se dizemos ‘discípulas’, já estabelecemos uma hierarquia. Eu prefiro falar de ‘Movimento Jesus’. Neste movimento, Jesus não sempre tinha a última palavra. As teologias masculinas destacaram uma sabedoria infundida em Jesus, como se não necessitasse aprender nada de ninguém, até o ponto de dizer que Maria foi a primeira discípula de seu filho. Isso não pode se sustentar. Jesus tinha que aprender, ser contestado, responder, se equivocar. Acredito que temos uma ideia muito romântica de Jesus de Nazaré, e ao falar de movimento estamos descendo à realidade da vida. No mundo judeu, as mulheres têm um papel importantíssimo, como mães, educadoras, que são escutadas. O mundo patriarcal, o Cristianismo a partir do século II e III, irá se vincular à ideia de poder do Império Romano, e aí as coisas começam a mudar. A autoridade pública da mulher se perde totalmente.
A Igreja, é machista?
Eu prefiro não usar a palavra machismo, porque essa palavra tem uma conotação de subjetividade e emotividade muito negativa. Nem todos os homens são machistas, nem todos os bispos são machistas, por isso eu prefiro falar de um fundamento patriarcal. Aqui, quem manda é o varão porque é o representante de Jesus, e eu não sou. Então, eu poderia estar mais com a razão do que você, mas a última palavra é sua. O mundo patriarcal não apenas subsiste na Igreja.
É evangélico que somente os homens possam ser sacerdotes, que as mulheres não tenham um papel sacramental na Igreja?
Isto não vem do Evangelho. Os sacerdotes querem ver os 12 apóstolos, varões, como uma escolha de Jesus. Eu não vejo isso. A hermenêutica bíblica feminista vê outras coisas, mas infelizmente não nos leem, não nos escutam e nos deixam de fora das instituições de formação. As poucas teólogas que ensinam nas faculdades de Teologia precisam se ajustar às normas.
Como interpreta que o Papa tenha incluído três mulheres na Comissão Teológica internacional e que tenha aberto uma comissão para o diaconato feminino?
Eu sou muito crítica. Não sou a única que pensa assim. Primeiro, quem escolheu estas teólogas como representantes? Podem ser representantes do feminino, mas não do feminismo católico. Porque o que incomoda a Igreja não é o feminino, é o feminismo. Porque o feminino quer dizer, como disse o Papa, a Virgem Maria é mais importante que os apóstolos, esse é um discurso romântico e que serve para que tudo continue igual. O Papa coloca três mulheres, entre elas há uma freira, duas teólogas alemãs. Por que não perguntou às diferentes organizações de teólogas, por exemplo, para a ATE da Espanha, que nomes indicariam?
Acredita que é mais um assunto de cota, e não de convencimento?
Claro, e depois colocam dois cardeais velhos que não tem nada a ver. Dizem que estão estudando, mas não chegarão a conclusão nenhuma. Já de antemão, ele já disse não à ordenação presbiteral. Agora, abre uma pequena brecha para a diaconal, mas não se deve ter muita esperança.
O que nós católicos feministas, homens e mulheres, que entendemos que a Igreja deve ser um lugar onde a igualdade seja praticada, precisamos fazer?
Acredito que os varões falam muito pouco disto. Podem fazer isso em círculos fechados, mas não falam em congressos, não escrevem ao Papa. Estão satisfeitos, ainda que se poderia fazer diferente. Não há vozes masculinas. Há os dominicanos, jesuítas, que falam de respeito às mulheres, contra a violência, há textos muito bonitos sobre isto. Contudo, entre isto e dizer ‘É preciso mudar a teologia’, até quando falarmos dos apóstolos, de Deus Pai Todo-Poderoso, dos sacramentos somente relacionados à figura masculina de Jesus…, então, não haverá mudanças. E se houver mudanças, estou certa de que não será agora, mas é preciso começar a mudar.
Por onde deveríamos começar?
Cada comunidade, em cada grupo, em cada país, precisa começar a partir de sua própria realidade. Eu convidaria as mulheres para que se reúnam, que estudem, por sua parte, e aos varões que reflitam por seu lado.
Que futuro espera pela Igreja, caso não rompa com o paradigma de varões com poder e mulheres servidoras?
Não sei falar do futuro, mas no presente o que ocorre é que muitas mulheres saem da Igreja. A Igreja já perdeu os operários, já perdeu o campesinato, e irá perder as mulheres que pensam. As mulheres que pensam e as líderes de movimentos populares. A Igreja católica já não lhes diz quase nada. No mundo indígena, esta maneira da Igreja com o feminismo comunitário, não lhes diz nada. Sim, algumas permanecerão, mas perderão muitas.