Como se vive o cristianismo hoje

Os grandes analistas da história nos confirmaram que já há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Com isso se quer significar que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí falar-se em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social. Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.

Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.

Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos,liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) no   qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, pôr em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.

O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, se procurou assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.

O processo de secularização trouxe à luz três formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.

Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo em seus valores humanísticos de respeito aos direitos humanos, de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa. Não negam o valor da Igreja mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.

Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão – sociais- relação de fraternidade, ecológicas – guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba – paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.

Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, de forma secularizada. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como  agnóstica ou como ateias ou simplesmente sem se auto-definir. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.

Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, defendendo as mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”(Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46) que podemos denominar como o evangelho dos ateus humanísticos se diz que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”(v.45).

Portanto, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.

São João em suas epístolas enfatiza:”Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”(3Jo 1,11).

Aqui se realiza o que dizia o grande teólogo [evangélico] alemão que participou de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer: “viver como se Deus não existisse”( etsi Deus non daretur).

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Pixabay/Concerdesign

O fogo que queima reputações nas Assembleias de Deus

O sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, escrevendo sobre os “Discursos evangélicos de uma Nova Direita Cristã à brasileira” (1), identificou na narrativa dos evangélicos que apoiam o atual presidente da República as características do que ele chama de discurso da integridade. O que seja isso? É um conjunto de fatores e práticas que fornece sustentação teórica (discurso) para tomadas de posições à direita, como também a defesa de uma pureza doutrinária (integridade) que se propõe a agredir o outro que esteja em atitude discordante do grupo quando o assunto é política, igreja, família. O texto de Alexandre Brasil é o capítulo “Discursos evangélicos de uma nova direita cristã à brasileira”, na obra: GALLEGO, Esther Solano (Org.). Brasil em colapso. São Paulo: UNIFESP, 2019, p. 105-120. 

A reação dessa nova direita cristã à brasileira se dá, principalmente, nas redes sociais. Geralmente é uma interlocução truculenta com pessoas ou grupos que discordam ou, em algum momento, expressou algo que indicasse não concordar com a política em curso no país. Alexandre Brasil ressalta que o principal componente que dá sustentação para esse discurso da integridade é a briga com o comunismo, ou marxismo. A “ameaça vermelha” é o grande inimigo que está atormentando as igrejas e os portadores dessa ameaça são, notadamente, os partidos de esquerda no Brasil. É dentro dessa narrativa fantasmagórica em torno de um tema que nunca foi possível a sua viabilidade no país, que o discurso da integridade se baseia. Com isso, a senha está dada: caçar todos que, minimamente, seja um infiltrado na igreja e que tenha qualquer relação com o marxismo. Até porque, pensam, se for marxista é adepto do ecumenismo, da teologia da libertação (ou missão integral) e a favor de homossexuais, logo é contra a Bíblia, a família, a igreja e o próprio Deus!

Neste maio de 2021, o discurso da integridade escolheu mais uma pessoa para demonstrar que não está para brincadeira. Trata-se do pastor auxiliar da Assembleia de Deus de Joinville/SC Dr. Claiton Ivan Pommerening. O pastor foi o comentarista da Revista de Escola Bíblica Dominical da Editora CPAD do terceiro trimestre de 2021 com o tema: “O plano de Deus para Israel em meio à infidelidade da nação”. Tema que suscitou expectativas por conta dos últimos acontecimentos envolvendo o Estado de Israel e a causa palestina. Como reação ao autor, a Assembleia de Deus na cidade de Abreu e Lima/PE, liderada pelo pastor Roberto José dos Santos, “proibiu” a revista nas igrejas que estão sob seu comando. O motivo, segundo o pastor, o comentarista seria um marxista. Para o pastor de Abreu e Lima, Claiton teria “posições ideológicas marxistas”; defendia a “teologia da libertação”; promovia o “ecumenismo em ambientes confessionais assembleianos”. Bastou isso para acender a fogueira contra o pastor de Joinville. O fogo que queima reputações foi aceso com postagens em redes sociais. 

Interessando nessa história, este articulista procurou algumas fontes para conversar sobre isso. A fonte consultada, ressaltou que, num primeiro momento, não se tratava apenas de colocar fogo na reputação de alguém rotulando como “marxista”. O caso, assegurou a fonte, é que as duas maiores igrejas em Pernambuco, Abreu e Lima e Recife, colecionam diferenças históricas. Ambas participam da CGADB, mas seus templos e posicionamentos são bem conhecidos entre os membros dessas duas igrejas. Essas igrejas passaram a disputar também qual delas era mais conservadora em termos de doutrina e comportamento. Por essa razão, a decisão do pastor Roberto José em “proibir” a circulação da revista da CPAD, se deu por entender que agindo assim estava “protegendo a igreja de heresias de um marxista”. 

A partir do momento que um pastor faz essa acusação para uma publicação da CPAD, a situação fica mais complicada. Segundo apurou esse articulista com uma fonte, as revistas da EBD “é a galinha de ‘ovos de ouro’ da CPAD”. Esse episódio, portanto, não é apenas “teológico”, mas muito mais comercial. É por essa razão que o Conselho de Doutrina e Comissão de Apologética se manifestou favorável ao autor e à revista. A Nota esclarece que a fritura do pastor nas redes sociais está causando “prejuízos enormes ao processo de distribuição das Revistas de Escola Dominical das Assembleias de Deus no Brasil”. Até porque, segundo apuramos, os comentários do pastor Claiton para a revista, alvo da fúria de Abreu e Lima, já estava na fila de produção há dois anos atrás. Assim, não seria viável o Conselho de Doutrina recuar agora, por uma questão de reputação do próprio Conselho, afinal de contas deixaram um “marxista” ser o autor de uma revista da CPAD; mas também por razões estritamente comerciais. 

Com esse episódio, a CGADB emitiu uma Nota; a Casa Publicadora das Assembleias de Deus emitiu uma Nota Explicativa; a Igreja Assembleia de Deus em Joinville emitiu uma Declaração. Com exceção da Declaração da AD em Joinville que é mais pessoal em relação ao pastor comentarista da revista; as demais são todas corporativas. 

Com esse ocorrido, tiramos algumas conclusões: (i) Fica evidente a disputa de duas igrejas em Pernambuco em torno do “discurso da integridade”; (ii) Uma vez atacando o comentarista de uma revista da CPAD com o rótulo de “marxista” o caso ganha dimensão nacional; (iii) Com essa atitude regional, o pastor Roberto José consegue mexer com as estruturas do Santo Ofício assembleiano que reage de maneira contundente, porque a produção capitalista de uma revista de EBD, que faz a máquina assembleiana caminhar, não pode parar. 

E sobre o pastor Claiton e as acusações? Infundadas. Não há nada de marxista no pastor; nada que ele tenha escrito sobre teologia da libertação; não há registro sobre qualquer posicionamento ecumênico quanto ao referido pastor. E por que então escolheram ele para colocar na fogueira que queima reputações? Porque o comentarista de uma das revistas mais consumidas no universo assembleiano não faz parte do “clã de intelectuais orgânicos da denominação”, conforme me assegurou uma fonte. Um outro fator, é porque publicar em uma revista da CPAD dá capital simbólico e visibilidade denominacional, e aí a inveja continua sendo um dos sete pecados capitais, até para quem diz que ouve a voz do Espírito Santo.

René Padilla: teólogo da missão integral – em memória

Antes de conhecê-lo pessoalmente, havia lido seu livro “Missão Integral – ensaios sobre o reino e a igreja”, que me deixou encantado com sua abordagem inovadora da teologia da missão, minha área específica de pesquisa e docência. Mais tarde, já nos estudos de doutorado, selecionei alguns teólogos da missão para aprofundar este conceito sob a perspectiva da missão de Deus (missio Dei), em vista da crise da missão cristã no mundo, e particularmente, na América Latina. A escolha por investigar os escritos de René Padilla foi uma consequência direta daquelas leituras e do diálogo que havia estabelecido com outros representantes da teologia da missão integral no Brasil e América Latina. 

Foi uma decisão certa e que me levou – afortunadamente – a visitá-lo em duas oportunidades na sua cidade de adoção, Buenos Aires, onde viveu por longos anos. Lá, ele foi um dos fundadores e impulsionadores da Fundação Kairós, que prestou e continuará a realizar excelentes serviços à causa evangélica progressista na América Latina. 

Padilla era uma pessoa afável e sempre sorridente. Recebeu-me com certa curiosidade, pois o que levaria um teólogo luterano a interessar-se por ouvir dele suas apreciações sobre teologia da missão na América Latina? Nossas conversações ofereceram-me uma importante fonte de inspiração para o que depois constou na minha tese sobre a teologia da missão em perspectiva latino-americana, especificamente sobre a proposta da qual Padilla foi um dos criadores e que ficou conhecida como teologia da missão integral. À sua teologia de missão dediquei mais de 50 páginas na tese.

René Padilla nasceu num lar batista em Quito, Equador, em 1932, de uma família pobre e muito ativa na comunidade de fé. O pai foi alfaiate. O casal teve sete filhos, 4 meninos e três meninas. Por razões profissionais, a família mudou para a Colômbia, onde René realizou os estudos fundamentais. Mas era um tempo difícil de forte perseguição aos evangélicos e o menino acabou por ser expulso da escola por sua postura evangélica num país de forte tradição católica conservadora. Retornando ao Equador, já na juventude, René aprofundou sua experiência espiritual a partir de uma conversão consciente a Cristo, tornando-se liderança na Sociedade Juvenil da igreja. Terminada a escola secundária, o jovem decidiu estudar nos EUA, para onde transferiu-se em 1953 onde estudou filosofia e teologia no Wheaton College. Aí concluiu os estudos universitários com muita dificuldade, pois devia trabalhar duro ao lado dos estudos, uma vez que a bolsa somente cobria os gastos do colégio. Dedicou-se então com afinco às línguas bíblicas, grego e hebraico.

Na sua trajetória ministerial, notabilizou-se como liderança na Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE), onde trabalhou como secretário itinerante por anos. Conheceu boa parte dos países da América Latina, o que alargou sua experiência como cristão e pessoa de referência para as causas dos movimentos estudantis nos meios evangélicos. Foi nesse movimento que conheceu e se tornou amigo de Samuel Escobar, Pedro Arana e outros importantes lideranças evangélicas da América Latina.

Durante os anos de Wheaton, conheceu Catharina Feser, ela também teóloga, com quem veio a contrair matrimônio, sendo o casal abençoado com quatro filhas e um filho. Em 1963, a família mudou-se temporariamente para a Inglaterra, onde Padilla realizou os estudos de doutorado em Ciências Bíblicas na Universidade de Manchester, sob a orientação do Dr. F. F. Bruce. Em sua tese, debruçou-se sobre o tema das relações entre a igreja e o mundo na obra do apóstolo Paulo. Esta pesquisa o preparou para uma retomada da teologia de Paulo e sua relação com a missão integral.  

A vida, o testemunho e a obra de Padilla já são bem conhecidos na América Latina. Mas agora será – tenho certeza – revistada por sua amplitude, seu ecumenismo aberto e generoso, sua simplicidade e sua coerência humana e fraterna. Deixou-nos um legado do qual destaco dois momentos, entre tantos, de uma longa vida de serviço ao evangelho do reino e da liberdade cristã. Em 1970, em Cochabamba, Bolívia, um pequeno grupo de intelectuais evangélicos decidiu constituir a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), que depois responsabilizou-se pela organização dos Congressos Latino-americanos de Evangelização (CLADEs), já então com Pedro Savage, Samuel Escobar, Pedro Arana, Robinson Cavalcanti, Enrique Cepeda, Héctor Espinoza, Andrés Kirk, Valdir R. Steuernagel e tantos outros irmãos e irmãs de sonhos e esperanças. Foi no âmbito da FTL que ele encontrou a comunidade de pensamento e de reflexão que impulsionou a teologia da missão integral, uma tentativa de resposta evangélica à teologia da libertação que com o tempo possibilitou um diálogo frutífero com a nova maneira de fazer teologia na América Latina.

O segundo momento a destacar é a participação de René Padilla e Samuel Escobar, em 1974, no Congresso Internacional de Evangelização Mundial, sob os auspícios da Fundação Billy Graham, o famoso evangelista norte-americano. Padilla e Escobar destoaram no evento por apresentarem uma postura crítica em relação à concepção estreita de evangelização. Foi sua contribuição que aparece com força no documento emanado do Congresso e que ficou conhecido como Pacto de Lausanne, cidade suíça onde ele ocorreu. O destaque coube ao artigo 5 do Pacto que está baseado na experiência latino-americana e que deixa explícito que evangelização não pode se resumir a salvar almas ou converter corações a Cristo, mas tem de repercutir numa consciência social ativa e crítica às injustiças reinantes, responsáveis pela pobreza e miséria de milhões em nossa região do então Terceiro Mundo. 

René Padilla – a meu ver – nos deixou um exemplo extraordinário de coerência e honestidade intelectual dignos da melhor tradição protestante, pois à medida que passavam os anos ele afinava sempre mais suas análises críticas dos sistemas econômicos e políticos, desafiando permanentemente as igrejas e os movimentos a assumirem as causas da luta pela justiça, pela defesa das pessoas mais vulneráveis e pela integridade do meio ambiente como caminho para a fidelidade ao evangelho da libertação proclamado por Jesus. Ele foi um dos críticos mais contundentes – nos meios evangélicos – ao cristianismo dominado pelo espírito do American way of life. Em sua visão, este tipo de cristianiamo não serve aos nossos povos, pois ignora o “princípio protestante” como formulado por Paul Tillich, isto é, a capacidade de denunciar toda forma religiosa ou cultural de absolutização histórica. O reino de Deus é a principal mensagem de Jesus e a igreja de Jesus só faz sentido se estiver a serviço desse reino e de sua justiça (Mateus 6.33).

Nestes tempos de tanta intolerância e ódio gratuito de certos setores da sociedade, lamentavelmente, também presentes em igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais, a voz e o testemunho de René Padilla nos farão muita falta. Por isso mesmo, cabe-nos reverenciar sua memória, procurando estudar seus textos e fazer ressoar com ousadia suas palavras proféticas (2004): 

A missão da igreja hoje é aquela que sabe honrar o nome de Jesus Cristo, é a missão em que se mostra uma compaixão real pelo homem integral, como pessoa e como membro de uma sociedade, em seu aspecto pessoal e em seu aspecto comunitário. Eu creio que, na América Latina, por muito tempo trabalhamos como se as pessoas não tivessem corpo, só alma. Hoje as coisas estão mudando. Somos seres psicossomáticos e espirituais e, portanto, a atenção tem que ser ao homem integral na sociedade e na comunidade.

Sua tese da missão integral procurou resgatar a integralidade da pessoa e da comunidade humana. Esta compreensão ainda precisa ser assumida de uma forma mais radical do que até aqui. O mundo em que estamos vivendo só confirma que a sociedade neoliberal dos dias de hoje não tem limites em seus intentos de dominação e destruição da alma humana. Com René Padilla haveremos de reafirmar – alto e bom som – que a graça e a misericórdia de Deus serão nossa força e suporte para uma vivência evangélica radical de serviço profético aos que mais sofrem neste mundo. Em nome de Jesus, Jesus de Nazaré, o Cristo, o Ungido de Deus.

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Roberto E. Zwetsch (Pastor luterano, professor associado de Faculdades EST de São Leopoldo, RS, Brasil).

Artigo apresentado voluntariamente pelo autor para publicação. Aprovado pela coordenação editorial em 04 de maio de 2021.

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Foto de capa: René Padilla – Guiame.com.br (Reprodução)

A Teologia da Libertação para reconstruir o Brasil a partir de baixo

Em 13 de julho, o filósofo italiano Gianni Vattimo (84 anos) publicou no jornal espanhol La Nación um artigo que o Facebook reproduziu para nós. Deste texto, colhi as seguintes afirmações que traduzo na minha linguagem e podem não ser citações literais do que Vattimo escreveu, mas correspondem ao que ele afirmou:

“Atualmente, com a pandemia e a quarentena, o controle coletivo sobre as pessoas tende a aumentar. Então, se torna mais necessária uma outra organização social, baseada na ajuda mútua e no amor fraterno”. (…)
“Isso significa que tem de haver uma profunda transformação social. Mas, atualmente, só é possível uma transformação social radical tendo como base um apelo espiritual – e hoje a única pessoa que tem condições de dirigir um processo de transformação radical do mundo é o papa Francisco”.
“Para isso, o papa teria de transformar a Igreja e libertá-la dos dogmatismos, da moral ultrapassada, principalmente, em relação à família, à mulher e a questões sexuais e também libertar ministros e fieis da tentação de se ligarem ao poder social e político”

Gianni Vattimo (La Nación, 13/ -7/ 2020)

Será que depois de escutarmos a voz de um dos mais importantes filósofos vivos do mundo, ainda precisamos explicar porque as teologias da libertação se tornam necessárias no Brasil dos nossos dias e no mundo? 

Quando eu era jovem, me tornei amigo de um dos teólogos pioneiros da Teologia da Libertação, um brasileiro que escreveu sobre isso antes da geração do nosso querido Leonardo Boff, João Batista Libânio e outros. Era Hugo Assman. Ele foi o primeiro a estabelecer a relação entre Teologia e Economia. No começo da década de 1980, houve um famoso congresso teológico em Montevidéu. Ali, Hugo Assman afirmou:

“Se a situação histórica de dois terços da humanidade, com seus 30 milhões de mortos de fome e desnutrição não se converte em ponto de partida de toda teologia cristã hoje, a teologia não poderá aplicar seus temas fundamentais à história concreta. Suas perguntas não serão perguntas reais. Por isso, é necessário salvar a teologia (e a fé) do seu cinismo. Porque, realmente, diante dos problemas do mundo de hoje, muitos escritos de teologia se reduzem a um exercício de cinismo”

(Assman e Mo Sung, 2007, p. 12).

Então, as teologias da libertação existem para salvar a teologia, as ciências da religião e as próprias Igrejas do cinismo hipócrita de falar coisas bonitas e viverem o oposto de tudo o que a fé poderia expressar. 

Até agora, no Brasil, na Europa e em todo o mundo, ainda há – e infelizmente não são tão poucos – padres, bispos, grupos católicos, assim como pastores evangélicos e pentecostais e comunidades cristãs que ainda defendem totalitarismos e políticas de direita e contra os mais vulneráveis do mundo (migrantes, refugiados, minorias sexuais e outros). Nos Estados Unidos, alguns arcebispos e cardeais fazem publicamente campanha em favor da reeleição do presidente Trump e se organizam contra o papa Francisco. Sabem perfeitamente que o presidente persegue migrantes, discrimina negros e é contra a Ecologia. Mas, têm interesses em defendê-lo.

No Brasil e em muitos lugares do mundo, é mais lucrativo apoiar a direita do que a justiça e a democracia. No entanto, entre os eclesiásticos, esse grupo de interesseiros que defendem seus lucros é minoria. A maioria dos cristãos e de gente de outros credos que defendem a desordem indefensável é de gente alienada que faz isso por não saber teologia ou ao menos uma teologia digna deste nome, seja teologia cristã, seja teologia da Umbanda, ou teologia islâmica ou budista… ou simplesmente transreligiosa e não confessional. Outro dia, um amigo me perguntou: “Existe teologia sem ser a partir de uma revelação concreta? Sem estar amarrada a uma Igreja e a uma hierarquia?”

Ao menos, desde o começo deste século, temos as teologias pluralistas da libertação e vocês encontram nas livrarias os livros de europeus como Andres Torres Queiruga e Raimon Panikkar, na América Latina, de José Maria Vigil e no Brasil de Faustino Teixeira e Cláudio Ribeiro, só para dar alguns exemplos. 

Portanto, quando falamos de teologias da libertação no plural, este plural tem dois sentidos. O primeiro é de pluralista, ou seja, queremos ir além de uma teologia confessional e, como cristãos, nos abrir para escutar e acolher a Palavra divina, vinda de outras tradições religiosas. Mas, este curso de teologias da libertação será também no plural para nos introduzir nas teologias contextuais, teologias negras, descoloniais, nas ecoteologias, nas teologias índias, feministas, gays, queers e outras. 

Como Jesus disse no evangelho: Na casa do meu Pai, há muitas moradas. E ele não falou isso para dizer que quando morrermos, teremos um apartamento nos esperando no céu. Ele quis dizer que, na caminhada que temos de percorrer neste mundo, na caminhada da fé, Deus arma para nós tendas, de barracas, moradas provisórias. Estas moradas do Pai são nossas Igrejas, mesquitas, terreiros, as matas da Jurema sagrada e outras moradas do meu Pai. É um caminho encantador e vocês todos/todas estão convidados/as a fazermos juntos/as esta caminhada. 

Um desafio exigente é que toda a teologia clássica que aprendemos foi pensada a partir das categorias greco-romanas e dentro de paradigmas que eram, e são até hoje, coloniais e legitimadores das desigualdades sociais, dos racismos e da religião ligada ao poder. Mesmo quando nossa intenção é fazer teologias da libertação, estas categorias coloniais estão dentro de nós, se expressam nas nossas liturgias, na nossa linguagem religiosa e na organização hierárquica das nossas Igrejas. Querendo ou não, ainda confundimos estes elementos históricos e culturais com a revelação divina no evangelho de Jesus. Agora, somos chamados por Deus a desconstruir essas estruturas de dominação e colonialidade. 

Há quase 30 anos, em Santo Domingos, o papa João Paulo II pedia perdão aos negros e índios pelos pecados de alguns filhos da Igreja. Na ocasião, um simples monge brasileiro, desconhecido e sem importância lhe escreveu fazendo duas ponderações de irmão menor. A primeira é que os tais filhos da Igreja que pecaram contra os negros e índios não eram apenas pessoas individuais. Representavam oficialmente a Igreja. Eram papas, bispos e padres que falavam em nome da Igreja. Portanto, foi a própria Igreja que pecou. Em segundo lugar, eu ponderava que, se queremos enxugar uma sala que está inundada, a primeira providência não é enxugar o chão. É fechar a torneira de onde a água está saindo. Para mudar a atitude da Igreja em relação às culturas oprimidas, é preciso descolonizar a teologia, a espiritualidade, a liturgia, a catequese e a própria forma de organização clerical das Igrejas. Na época, quase nenhuma revista ou jornal aceitou publicar a minha tentativa de diálogo com o papa. Mais tarde, em 2004, escrevi uma carta pública ao papa e aí as consequências foram mais sérias.

Em 2007, aconteceu o 3º Fórum Mundial de Teologia da Libertação em Nairobi, no Quênia. E foi convidado para falar um teólogo muçulmano. Ele chegou, nos cumprimentou e disse: 

– Eu não vou fazer nenhuma palestra para vocês, teólogos cristãos. Só quero que me digam o que vocês fizeram para que os impérios do mundo aceitem tão bem o Cristianismo de vocês. Qual foi o segredo? O que vocês fizeram com a fé que Jesus de Nazaré propôs para transformar o mundo? 

Silêncio total. Todos nós tínhamos a resposta, mas não adiantava apenas falar. Era preciso testemunhar. 

No seu livro Teologia Negra, nosso irmão Ronilso Pacheco comenta que ouviu de um teólogo negro dos Estados Unidos a seguinte afirmação: “Nos Estados Unidos, o racismo não acaba, enquanto a Igreja branca existir”. E Ronilso dizia: “E no Brasil, como dizer que enquanto existir uma Igreja branca ou embranquecida, o racismo não se acabará?” Ele esclarece que não está falando apenas contra uma Igreja de brancos e sim contra um modelo de Igreja construído a partir do colonialismo branco (Cf. Pacheco, 2019, p. 162- 163). 

Não basta pensar uma ao lado da outra: uma Igreja que romaniza cada vez mais e outra que tenta descolonizar a fé. Nesta quarta-feira, todos os que seguem o lecionário católico ouviram um texto do evangelho no qual Jesus ora ao Pai: “Eu te agradeço, Pai, porque tu escondeste tuas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”. Uma coisa está ligada a outra. Sem desconstruir o paradigma colonial não se constrói o novo. 

Convido vocês a no final deste curso podermos juntos dar uma resposta adequada ao irmão muçulmano que nos encorajava a expressar nossa fé e nossa teologia de forma revolucionária, certos de que Deus, se é Deus, não pode ser de direita e quem é de Deus não pode apoiar governos genocidas e ecocidas, como infelizmente temos hoje no Brasil e em vários países do mundo que se dizem cristãos.

Faz parte dessa resposta descolonial que os conteúdos deste curso sejam desenvolvidos o mais possível na metodologia e na mística do diálogo intergeracional. Os irmãos jovens estarão aqui não apenas como monitores ou apresentadores para o curso ficar mais bonito.  É porque é da própria natureza das novas teologias da libertação serem geradas no diálogo e a partir das sensibilidades e dos desafios das juventudes atuais.

Na exortação pós-sinodal Querida Amazônia, o papa Francisco revelou ao mundo quatro sonhos: o social, o cultural, o ecológico e o eclesial. Claro que tudo isso está interligado, mas vamos tentar propor mais um sonho a estes quatro: o sonho afetivo. Uma grande ciranda de amor revolucionário que, a partir das relações humanas e do amor apaixonado cresça, e se desenvolva até as dimensões cósmicas do amor. Tudo em um só eixo de erotismo que envolva nossos corpos e nossos espíritos em uma só energia. Uma vez, escutei do presidente Hugo Chávez uma afirmação que me tocou muito. Ele me disse: Marcelo, só se pode fazer revolução com amor. 

Então, irmãos e irmãs, aceitem este apelo para revolucionar nossas formas de amor e começar por nós a revolução amorosa e libertadora que queremos ver incendiar o mundo. Como disse a comunidade joanina em sua carta: Nós somos as pessoas que cremos no Amor.

Capa: Pixabay/Reprodução