O Brasil tem o seu talibã?
Falar sobre religião, fanatismo e política nunca pareceu tão necessário. A tomada do poder no Afeganistão pelo grupo extremista Talibã levou o mundo a questionar o que está certo ou errado na estreita relação entre Estado e religião.
No Brasil, essa relação está cada vez mais confusa. Em um governo onde o slogan é “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, a laicidade do Estado é colocada em xeque em cada ação governamental. Neste cenário atual, é indispensável o desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre o tema.
Esta é a área de atuação da Dra. Andréa Silveira de Souza, filósofa, doutora em Ciências da Religião, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisadora na área de religião e política, fundamentalismo religioso, religião e educação e ensino religioso.
Andréa dedicou sua pesquisa, inicialmente, ao fundamentalismo religioso nos Estados Unidos. Mas porque Estados Unidos e não Brasil? Ela explica: “A questão é que para compreendermos o papel desempenhado pelos movimentos ditos fundamentalistas no cenário contemporâneo é essencial compreendermos o momento e o contexto no qual surgiu o fundamentalismo, nos Estados Unidos, no início do século 20. A compreensão deste movimento no espaço público americano contribuiu sobremaneira para que eu encontrasse chaves interpretativas importantes para compreender muito do atual contexto religioso-político brasileiro”, explica a professora cujo primeiro livro, “Fundamentalismo Religioso: o discurso religioso moralista e a disputa por corações e mentes no espaço público” (Editora Terceira Via, 2019), versa justamente sobre esse tema. Andréa tem mais um livro publicado em co-autoria com outras 3 escritoras: “Ensaios da Quarentena: sobre educação, política, religião e cotidiano” (Editora Ambigrama, 2020) e quatro artigos sobre essa temática publicados.
Por conta deste olhar sobre o fundamentalismo religioso no mundo, Bereia bateu um papo com a Dra. Andréa Silveira sobre o Afeganistão, o Brasil e a relação entre o público e o religioso na esfera política internacional.
Bereia: O Afeganistão e outras nações teocráticas cujo regime político é baseado na religião servem de alerta para o Brasil que tem misturado o Estado com a igreja?
Dra. Andréa: De certo modo eu acredito que sim. Isso porque, elas expressam na prática aquilo que estudiosos e analistas vêm indicando como sendo as possíveis consequências e desdobramentos dessa articulação deliberada entre Estado e Igreja que tem se desenvolvido no Brasil. Entendo que, para o grande público, principalmente para aquelas pessoas que têm acesso a informações do campo político apenas por meio das mídias de massa, pode parecer um tanto distante ou mesmo pouco plausível quando analistas e estudiosos do campo religioso e político indicam as possíveis consequências seja de discursos, de agendas ou mesmo de políticas públicas cujos princípios e objetivos sejam pautados por uma perspectiva religiosa ultraconservadora ou fundamentalista. Essas pessoas tendem a interpretar essas análises como catastróficas demais ou até como teorias da conspiração, não conseguindo perceber como atuação de grupos religiosos radicais têm objetivos e, sobretudo, estratégias deliberadas no campo político, com consequências graves para o processo democrático no médio e no longo prazo. Assim, quando emergem fatos lamentáveis, porém não impensáveis, como o ocorrido com o Afeganistão nos últimos dias, ele chama a atenção sim para a reflexão acerca das causas do que está acontecendo hoje. Mas é importante destacarmos que, não só as causas, é preciso refletirmos sobre os processos, sobre tudo o que atravessa a conjuntura, de modo a compreendermos assim, a complexidade das relações entre Estado e Igrejas, entre religião e política. Salvaguardadas as devidas proporções e todas as diferenças culturais, históricas e políticas, a atual conjuntura afegã pode ser sim um instrumento de alerta para o que tem se desenrolado no Brasil nas últimas décadas.
Bereia: Como o Brasil está na questão do avanço dos fundamentalismos?
Dra. Andréa: Os fundamentalismos no Brasil têm avançado a olhos vistos, com o apoio de uma parcela da sociedade e ao total desconhecimento de outra parcela que despreza as consequências que essa ação ostensiva pode ter para a democracia brasileira. O slogan “Deus acima de todos” tem feito cada vez mais sentido na prática política brasileira, mas o entendimento religioso que funda esse slogan é, por princípio, excludente, não dialogal, anti-democrático, coercitivo e beligerante. É cada vez mais evidente a presença e a força política daqueles que os representam nas instâncias do poder executivo, legislativo e judiciário, seja em nível nacional ou regional. Os exemplos não são poucos e destaco aqui alguns, tais como: a tramitação dos projetos de lei Escola sem Partido (PL 246/2019) e de educação domiciliar, mais conhecido como homeschooling (substitutivo do PL 3.179/2012), ambos agendas fundamentalistas religiosas, e que são apoiados pelo atual Ministro da Educação, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro. Além disso, a indicação do também pastor presbiteriano e ex-advogado geral da união André Mendonça ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, cumprindo a promessa de campanha de Jair Bolsonaro de colocar um ministro “terrivelmente evangélico” no STF. A presença não apenas de ministros declaradamente religiosos, mas também, de quadros que chegaram ao poder com o objetivos explícitos e manifestos de defender pautas religiosas no campo político, como a pastora e ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, a qual, já vem atuando na assembleia legislativa há mais de 20 anos como assessora parlamentar. Outro exemplo que pode ser citado, é o do atual Secretário Geral da Presidência da República Onix Lorenzoni que, numa coletiva de imprensa no Palácio do Planalto, no dia 23/06/2021, cujo objetivo era preservar a imagem do governo federal perante as denúncias do deputado Luiz Miranda, na CPI da Covid, iniciou seu pronunciamento enunciando o versículo bíblico Efésios 6: 12, que diz “Por que a nossa luta não é contra o sangue e a carne apenas, mas contra os principados e as potestades. Contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal”. O significado religioso e a força simbólica desse versículo evidencia que elementos teológicos como a batalha espiritual, têm sido trazidos não só para a conduta individual no campo temporal mas, sobretudo, seu caráter beligerante está nos princípios da ação política desses grupos que estão se fortalecendo cada vez mais no poder.
Bereia: O fato do governo federal pautar a agenda pública com base em princípios religiosos é um sinal de que as coisas não estão indo bem?
Dra. Andréa – Com certeza sim! A imposição de uma única perspectiva religiosa no poder, como tem se imposto atualmente no Brasil, além de ferir os próprios princípios da laicidade, ainda que flexível, que marca o nosso país, representa a perda progressiva de direitos fundamentais, a garantia de um regime democrático e uma sociedade que preza pela justiça social.
Bereia: Como a sociedade civil pode ajudar a impedir esse avanço? Dra. Andréa: Primeiro, tendo ciência de que, quando o atual governo fala de religião, ele não está falando de uma perspectiva cristã que preconiza valores como “amai uns aos outros como a si mesmo”, ou “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. O que está em ascensão na política brasileira é uma cosmovisão religiosa beligerante, violenta, excludente e persecutória, ou seja, que persegue e exclui quem pensa diferente. Não é um cristianismo que acolhe, dialoga e liberta, pelo contrário, é um entendimento que procura impor a todas as pessoas uma única forma de ser, viver e estar no mundo. É preciso as pessoas entenderem que, quando alguns representantes do atual governo dizem “em nome de Deus e da família”, não estão dizendo, necessariamente, do mesmo entendimento que eu compartilho, ou mesmo que estão para defender famílias como a minha. Além disso, a sociedade civil precisa se mobilizar por direitos políticos, e um deles é a liberdade religiosa, a qual pode ser perdida quando se trata de perspectivas políticas como a que vem crescendo no Brasil. A democracia deve ser sempre um valor a ser preservado e do qual a sociedade civil não pode abrir mão.
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Foto de capa: Jornal da Unicamp