Entrevista com Tabata Tesser – Movimento antifeminista cristão no Brasil: um mercado de reações

A arena sociopolítica está diante de um fenômeno, que tem por nome “antifeminismo”. Ainda que os rastros desse movimento sejam conhecidos há décadas, atualmente ele se manifesta de maneira mais estruturada e sofisticada. Seu objetivo é claro: alcançar mulheres identificadas com as pautas de cunho conservador, utilizando variadas estratégias. E para alcançar seu objetivo usam meios, como a tentativa de desmonte e desqualificação (ridicularização) do(s) movimento(s) feminista(s). 

Visando a consolidação do movimento, é oferecido um acervo de leituras e cursos de cunho tradicionalista e conservador sobre como não ser uma mulher feminista e tais ações ganham um caráter cristão.  O movimento antifeminista cristão é propagado por personagens conhecidas do universo da política e da religião, com número significativo de seguidores nas mídias digitais e convictas de que têm missão a cumprir.

Nesta entrevista, Bereia ouviu pesquisadora  do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser.  A socióloga da Religião analisa e problematiza os elementos que compõem o movimento antifeminista cristão e mostra como ele tem atuado e os impactos práticos que pode gerar para a sociedade. 

Confira a entrevista

Coletivo Bereia – Como você define “antifeminismo cristão” no Brasil e quais são as suas correntes internas? 

No Brasil, o antifeminismo cristão é um fenômeno que combina identidade religiosa, moralidade de gênero e engajamento “feminino” político. Ele se expressa publicamente, sobretudo, em uma autoidentificação recorrente entre mulheres “mães, cristãs, esposas e conservadoras”. Trata-se de uma forma de subjetivação política e religiosa comum entre mulheres que buscam ser reconhecidas publicamente a partir dessa combinação de valores. Nem todas se assumem explicitamente como antifeministas, mas, mesmo entre aquelas que não usam esse rótulo, há um padrão de autoapresentação visível sobre maternidade, religião, conjugalidade e ideologia conservadora.

O que as une é, antes de tudo, um rechaço ao feminismo, compreendido de forma homogênea, como se “o feminismo” fosse um movimento único, coeso e centralizado ou um clube fechado de códigos específicos. Esse rechaço vem acompanhado de uma adesão ativa à feminilidade bíblica tradicional e à hierarquia dos papéis de gênero. Em conjunto, o rechaço ao feminismo e a exaltação do ideal “feminino” operam como marcadores identitários que as consolidam como um coletivo de mulheres de extrema direita, ainda que com diferenças internas importantes.

Entre as principais correntes do antifeminismo cristão, é possível destacar duas vertentes: a católica e a evangélica, a espírita ainda a se mapear.

O antifeminismo católico tem forte lastro institucional. Os discursos antigênero e antifeministas foram forjados dentro da própria Igreja Católica, especialmente a partir dos pontificados que antecedem e culminam em João Paulo II, vocalizados por Joseph Ratzinger e cristalizados na Teologia do Corpo e na Doutrina da Complementaridade. O termo “ideologia de gênero”, que se tornaria central para mulheres antifeministas, surge pela primeira vez na Conferência Episcopal Peruana em 1996 e passa a funcionar como uma “cola simbólica” para unir atores católicos e evangélicos em torno de um inimigo comum (Birolli, 2019). O Vaticano sistematizou o discurso antigênero e o difundiu com as cinco características típicas de pânico moral: a preocupação dogmática de que o feminismo ameaçaria a família; a demonização das feministas; o consenso episcopal na formulação doutrinária de documentos e encíclicas; a narrativa desproporcional de que o feminismo destruiria a religião; e a volatilidade de um discurso que extrapolou os muros eclesiais, alcançando campanhas eleitorais, estratégias de marketing e até produções cinematográficas da extrema direita (Machado, 2018).

Já o antifeminismo evangélico se manifesta de modo mais diretamente vinculado ao ativismo político e digital de mulheres. Ele se estrutura como parte do conservadorismo moral e do “ativismo vulgar” da extrema direita. No caso de figuras como a deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), por exemplo, o antifeminismo não se limita à retórica, mas se traduz em prática. Inspirada em Olavo de Carvalho, Campagnolo descreve sua atuação como um “trabalho cultural de conscientização antifeminista”. Essa “missão divina” se materializa em cursos virtuais, como o Clube Antifeminista, composto por nove módulos sobre feminilidade, ideologia de gênero, aborto, família e feminismo, além de livros e testemunhos pessoais. Seu mandato parlamentar opera como vitrine desse antifeminismo partidário, transformando eleitoras em consumidoras de produtos e cursos digitais. Trata-se, portanto, de um antifeminismo monetizado, que combina militância religiosa, discurso moral e técnicas contemporâneas de e-commerce (o  livro “Não Existe Feminista Cristã”, foi o mais vendido na categoria “Igreja e Estado”, na plataforma Amazon).

Em síntese, o antifeminismo cristão no Brasil articula religião, gênero e mercado, funcionando tanto como reação teológica e moral ao feminismo quanto como projeto político e econômico em expansão.

Coletivo Bereia – Quais referências teológicas mais aparecem (Gênesis, complementarismo, “batalha espiritual”)? 

Trabalhando com a professora Brenda Carranza (Unicamp), temos usado a noção de uma teologia antifeminista que adapta o discurso conspiracionista religioso a partir de um vocabulário próprio da teologia das batalhas espirituais (conforme a pesquisa de Cecília Mariz, 1999). Essa teologia antifeminista se ancora em uma interpretação hermenêutica literal de Gênesis, “homem nasceu homem, mulher nasceu mulher”, mas não se limita a isso: incorpora também referências ao feminacionalismo, ou seja, de mulheres “como defensoras da nação cristã de Deus”.

O vocabulário teológico antagônico constrói inimigos nítidos do “nós contra elas”: feministas, negras/os, LGBTQIAPN+, quilombolas e povos indígenas. Os discursos de batalha espiritual enfatizam a figura do diabo e da ameaça moral, classificando feministas como “feminazis” ou “feministas diabólicas”. Ao mesmo tempo, mobilizam um imaginário de reencantamento e magia, responsável por um tipo de alienação política (conforme o estudo de Cecília Mariz, 1999).

Coletivo Bereia – Como se dá a monetização (clubes, cursos, congressos, doações)? Algum padrão de funil? 

Sim. O antifeminismo cristão se tornou também um modelo de negócio. No caso da deputada Campagnolo (PL-SC), autora do primeiro clube antifeminista (2019), por exemplo, há um antifeminismo partidário que transforma eleitoras em leitoras e, depois, em consumidoras de cursos virtuais. Essa estratégia se apoia em uma técnica de e-commerce chamada fórmula de lançamento, criada por Jeff Walker e popularizada no Brasil por Érico Rocha. Empresas conservadoras como a Brasil Paralelo reconhecem publicamente terem aprendido essa metodologia para impulsionar seu alcance religioso.

A fórmula de lançamento tem seis passos: (1) construção de audiência; (2) criação de expectativa e pré-lançamento; (3) lançamento com uso de gatilhos mentais, como escassez e autoridade; (4) pós-lançamento; (5) entrega e encantamento; e (6) relançamento. Campagnolo é pioneira no uso desse modelo no campo antifeminista, transformando sua base política e religiosa em um mercado digital de infoprodutos.

Coletivo Bereia – Há diferenças católicas x evangélicas? E recortes de classe/raça (ex.: “antifeminismo racializado”)?

Sim, há diferenças marcantes. As antifeministas católicas costumam ocupar espaços de liderança mais restritos às suas comunidades paroquiais e à esfera eclesial. Já as antifeministas evangélicas operam em um campo mais secularizado, com forte presença nas redes sociais e no debate público. São elas que, em geral, organizam e divulgam livros, cursos e eventos, inclusive convidando católicas para participar. Em certo sentido, o antifeminismo evangélico “democratiza” mais o conhecimento antifeminista, circulando entre diferentes denominações e camadas sociais. No Brasil, destacam-se nomes como Ana Campagnolo, principal sistematizadora evangélica, e as católicas deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) e jurista Angela Gandra, que articulam o antifeminismo em instâncias políticas e jurídicas.

Quanto a recortes de classe e raça, observa-se o predomínio de um antifeminismo branco, de classe média e média alta, ainda que com penetração crescente entre mulheres periféricas que encontram nesses espaços narrativas de pertencimento, acolhimento e espiritualidade conservadora “feminilidade bíblica”.

Coletivo Bereia – Que efeitos práticos você observa sobre políticas públicas e direitos das mulheres?

O antifeminismo cristão produz efeitos concretos em duas frentes. Por um lado, há um revisionismo histórico dos feminismos, uma tentativa de reescrever o passado e deslegitimar as lutas das mulheres, substituindo-as por narrativas de “feminilidade autêntica” e “missão divina feminina”. Por outro, esses movimentos constroem redes de sociabilidade antifeminista, com clubes e espaços de apoio emocional e espiritual, funcionando como comunidades de autoajuda no antigo modelo de “clube de mães”. Essas práticas criam um duplo motor: político e afetivo. De um lado, organizam resistência a políticas públicas de gênero e direitos reprodutivos; de outro, oferecem acolhimento e sentido de pertencimento, tornando o antifeminismo cristão não apenas um discurso, mas uma experiência social e emocional compartilhada, ou seja, o antifeminismo é também um marcador de identidade que constitui um tipo de vínculo comunitário entre mulheres cristãs.

O movimento antifeminista cristão no Brasil: O que é, quem integra e como opera – parte 2

O discurso das antifeministas cristãs é sustentado por um repertório híbrido de referências religiosas, filosóficas e políticas, que combina santas católicas, pensadoras conservadoras e líderes políticas que alcançaram destaque sem se identificarem com o feminismo. Essas figuras são frequentemente apresentadas como “exemplos de mulher forte, mas submissa à vontade divina”.

Entre as inspirações religiosas mais citadas estão Hildegard von Bingen e Edith Stein, ambas canonizadas pela Igreja Católica. A primeira, monja beneditina do século 12, é lembrada por sua sabedoria e obras místicas, mas nas redes antifeministas aparece como símbolo de obediência e pureza. Já Edith Stein, filósofa judia convertida ao Catolicismo, morta pelo Nazismo no Campo de Concentração de Auschwitz, é evocada como exemplo de intelectual piedosa e defensora de uma “identidade feminina essencial”.

Essas referências espirituais convivem com figuras políticas como a ex-primeira ministra britânica conservadora Margaret Thatcher, conhecida como Dama de Ferro,  e a ex-primeira ministra de Israel Golda Meir, apresentadas como modelos de mulheres que teriam conquistado poder “sem precisar do feminismo”. Antifeministas brasileiras frequentemente utilizam frases ou imagens dessas líderes para reforçar a ideia de que “força e submissão não são opostos”.

No plano teórico, a principal inspiração estrangeira é a ativista estadunidense  Phyllis Schlafly que, nas décadas de 1970 e 1980, liderou o movimento contra a Emenda de Igualdade de Direitos (ERA) nos Estados Unidos. Schlafly ficou conhecida por afirmar que o feminismo “roubou a felicidade das mulheres”, ao incentivá-las a competir com os homens em vez de se orgulhar do papel doméstico. O pensamento desta mulher se tornou uma das bases do antifeminismo cristão moderno e é frequentemente citado por influenciadoras e autoras brasileiras que compartilham desta noção.

Imagem: National Women’s History Museum

No Brasil, essas ideias foram sistematizadas e adaptadas pela deputada estadual Ana Campagnolo (PL-SC), que organizou o livro Não existe cristã feminista, publicado em editora própria. A obra reúne textos de autoras evangélicas e católicas que defendem a incompatibilidade entre Cristianismo e feminismo, argumentando que a igualdade de gênero seria uma distorção ideológica moderna.

Essas referências religiosas, políticas e literárias formam uma espécie de “biblioteca moral” do antifeminismo cristão: um conjunto de símbolos usados para legitimar a rejeição ao feminismo contemporâneo e propor uma “feminilidade virtuosa” baseada na submissão, na maternidade e na obediência à vontade divina.

Como o discurso antifeminista é apresentado

O antifeminismo cristão combina linguagem religiosa, moral e conspiratória em um mesmo pacote narrativo. De acordo com os estudos de Fernanda Lira e Fabiana Moraes, nas redes sociais digitais, as participantes deste movimento falam sobre fé, relacionamentos e maternidade, mas com um pano de fundo ideológico que associa o feminismo à corrupção espiritual e ao declínio moral da sociedade. As pesquisadoras indicam as características a seguir. 

Imagem: Cursology (Clube Antifeminista)

1. A leitura literal da Bíblia

Grande parte das influenciadoras antifeministas baseia-se em uma interpretação literal do livro de Gênesis, que descreve Eva como auxiliadora de Adão. A partir daí, defendem o chamado complementarismo, doutrina segundo a qual homens e mulheres têm papéis distintos e divinamente ordenados – o homem como líder e provedor; a mulher como submissa e cuidadora. Essa leitura serve de base teológica para rejeitar o feminismo e tratá-lo como “rebelião contra Deus”.

2. A batalha espiritual

Outro elemento central é a ideia de que existe uma guerra espiritual entre o bem e o mal, na qual o feminismo, a ideologia de gênero e o “marxismo cultural” seriam armas do inimigo da fé (Satanás e seu séquito). Essa narrativa ressignifica debates políticos e sociais em termos religiosos, apresentando o feminismo não como um movimento histórico, mas como uma força demoníaca que ameaça destruir a família e a fé cristã.

3. O enquadramento conspiratório

Imagem: Monark Talks/YouTube

As antifeministas frequentemente utilizam rótulos como ideologia de gênero, marxismo cultural e agenda woke para simplificar fenômenos complexos e enquadrá-los como parte de uma suposta conspiração global contra os valores cristãos. Esses termos funcionam como atalhos discursivos, facilmente reconhecíveis por públicos conservadores, e permitem que o discurso religioso dialogue com o vocabulário político da nova direita.

4. A promessa de sentido e pertencimento

Apesar do tom combativo, o antifeminismo cristão também se apresenta como proposta de conforto emocional e espiritual. Ele oferece às mulheres uma identidade clara de esposa, mãe e cuidadora em um mundo percebido como confuso e moralmente instável. Essa “promessa de propósito” é um dos fatores que explicam sua forte adesão entre jovens cristãs que buscam segurança e pertencimento.

Imagem: Amanda e Marcelo Família Virtuosa/Youtube

Em síntese, de acordo com os estudos de Lira e Moraes, o discurso antifeminista cristão combina fé, medo e marketing: defende uma visão tradicional da mulher, denuncia inimigos invisíveis e oferece produtos, cursos e comunidades que reforçam a mesma mensagem. Trata-se de uma retórica de salvação espiritual que também opera como estratégia de influência e monetização.

Onde e como opera o movimento antifeminista cristão

O antifeminismo cristão no Brasil funciona como um ecossistema digital e presencial bem articulado, que combina redes sociais, comunidades fechadas, eventos religiosos e produtos comerciais. 

1. Plataformas e formatos

Instagram, YouTube, TikTok e podcasts são as principais ferramentas de propagação. O conteúdo é cuidadosamente produzido — fotos com estética “clean”, vídeos com fundo branco e legendas em tons suaves, trilhas sonoras devocionais e mensagens curtas. A forma leve e acolhedora contrasta com o conteúdo ideológico, que muitas vezes associa feminismo a pecado, desobediência e destruição da família.

Os reels e vídeos curtos são os formatos mais utilizados: frases de impacto (“a mulher moderna perdeu o encanto”), leituras de versículos, e pequenas “aulas” sobre submissão e propósito. Muitas influenciadoras também mantêm podcasts semanais sobre temas como namoro, casamento e maternidade, sempre em tom pastoral e confessional.

2. Comunidades fechadas e clubes

Além das redes abertas, essas influenciadoras cultivam um sistema de pertencimento fechado, com grupos pagos no Telegram, aplicativos próprios ou plataformas de cursos. Os clubes como o Clube Antifeminista, criado por Ana Campagnolo, oferecem acesso a aulas, encontros e materiais exclusivos, mediante assinaturas mensais. Esse modelo cria uma comunidade fiel, em que o engajamento religioso e político se mistura a laços afetivos e espirituais.

3. Eventos presenciais

Congressos, retiros e encontros presenciais consolidam a experiência comunitária. Um exemplo emblemático foi o 1º Congresso Antifeminista de Santa Catarina, sediado na Assembleia Legislativa em 2024, com palestras de influenciadoras, políticos e líderes religiosos. Também são comuns eventos menores — como cafés e “chás de virtude” — voltados à celebração da maternidade e à reafirmação dos papéis de gênero.

Fonte: Agência AL (Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina)

4. Monetização e produtos

Por trás da retórica espiritual, há uma estrutura profissional de monetização. A venda de livros, cursos, consultorias matrimoniais e objetos religiosos financia o movimento e reforça sua sustentabilidade. A Livraria Campagnolo, por exemplo, funciona como eixo comercial, reunindo publicações sobre feminilidade, casamento e política cristã. Outras criadoras vendem roupas “modestas”, bíblias personalizadas e planners espirituais.

Esse sistema transforma o antifeminismo cristão em um mercado religioso de nicho, no qual a fé é convertida em produto e o engajamento político se disfarça de devoção.

Impactos e críticas

O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil tem impactos que ultrapassam o campo religioso. O movimento atua simultaneamente na esfera simbólica, econômica e política, moldando comportamentos e narrativas que influenciam desde o voto até o cotidiano das igrejas.

1. Reforço de desigualdades e retrocessos de direitos

Ao propagar uma visão de gênero baseada na submissão feminina e na liderança masculina, o antifeminismo cristão reproduz desigualdades estruturais e deslegitima pautas históricas do movimento de mulheres — como o combate à violência doméstica, o acesso à educação e a igualdade de oportunidades no trabalho e na política. A pesquisadora Julia dos Anjos aponta que, sob o discurso de “valores familiares”, o movimento contribui para normalizar a exclusão e silenciar mulheres que não se encaixam nesse modelo idealizado de feminilidade.

2. Hibridismo entre fé, política e economia

Segundo a pesquisadora do Grupo de Estudos Gênero, Religião e Política (GREPO) do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp) Tabata Tesser, ouvida pelo Bereia, o antifeminismo cristão não é apenas uma reação moral ao feminismo, mas um sistema de poder e monetização que se legitima pela linguagem religiosa. A promessa de “propósito” e “virtude” vem acompanhada de cursos, livros e clubes pagos, transformando a devoção em produto e a submissão em estilo de vida. Essa economia simbólica é reforçada por influenciadoras e figuras políticas, como Ana Campagnolo, que utilizam sua autoridade religiosa para construir capital político.

3. Retórica conspiratória e desinformação

A pesquisadora em Comunicação, Política e Religiões e editora-geral do Bereia Magali Cunha, ouvida para esta matéria, observa que o sucesso dessas vozes está na estética emocional e na lógica algorítmica das redes, que privilegia conteúdos que despertam medo e identificação. Ao associar o feminismo a ideologias como marxismo cultural, woke ou ideologia de gênero, essas influenciadoras inserem a fé em uma narrativa de batalha espiritual, criando um senso de urgência e ameaça constante.
Essa retórica, semelhante à das guerras culturais importadas dos EUA, alimenta a polarização e favorece o engajamento por indignação, o que explica seu alto alcance nas plataformas digitais.

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O crescimento do antifeminismo cristão no Brasil parece transcender a mera disputa ideológica ou religiosa, configurando e dinamizando um complexo sistema de poder que opera nas esferas simbólica, econômica e política. Esta segunda parte da matéria mostrou que o impacto desse movimento fica evidente ao reforçar as desigualdades estruturais, minando as conquistas históricas do movimento de mulheres e contribuindo para a normalização da exclusão social.

Referências:

Antifeminismo no Instagram: como conservadores atribuem ao movimento feminista uma corrupção moral, artigo de Fernanda Kemilly Silva Lira e Fabiana Moraes

https://sistemas.intercom.org.br/pdf/submissao/nacional/17/07202024222318669c63060175b.pdf

Artigo. “As garras do feminismo”: discurso de ódio antifeminista no Facebook e o senso de urgência controlada: https://www.scielo.br/j/interc/a/HJWF8BGsZzKZ3TMLcVGQXXC/?format=html&lang=pt

Antifeminismo brasileiro: I Congresso Antifeminista do Brasil, Trabalho de Conclusão de Curso de Alexsandra Ferreira Aquino https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/22054/TCC%20-%20Alexsandra%20-%20Alexsandra%20Ferreira%20Aquino.pdf?sequence=1&isAllowed=y 

As quatro ondas do feminismo: lutas e conquistas, artigo de Luana de Oliveira Fernandes e Paula Gabriela dos Santos Almeida. .https://www.researchgate.net/publication/354044281_AS_QUATRO_ONDAS_DO_FEMINISMO_LUTAS_E_CONQUISTAS 

Movimentos antifeministas e desinformação: uma análise dos discursos promovidos no Instagram, artigo de Maiara Silva e Girlaine Gomes https://www.researchgate.net/publication/362674562_Movimentos_antifeministas_e_desinformacao_uma_analise_dos_discursos_promovidos_no_Instagram

Ecumenismo (neo)conservador: pacto programático-religioso na defesa da agenda anti-gênero

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Tabata Pastore Tesser

Essa crônica tem como objetivo suscitar reflexões pessoais acerca do pacto programático-religioso exercido por setores religiosos em torno da agenda anti-gênero. A reflexão é fruto das palestras ministradas no Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina”, promovido pelo Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO) em 2021.

No Seminário Internacional, pesquisadoras e pesquisadores abordaram como a agenda anti-gênero atua como um dispositivo retórico de cunho internacional com objetivo de mobilizar setores da sociedade rumo à uma “cidadania anti-política”. Essa “cidadania anti-política”, abordada pelo pesquisador argentino Juan Marco Vaggione, tem como foco executar uma politização reativa nas democracias e, em especial, nas democracias latinoamericanas por atores neoconservadores confessionalmente religiosos ou não.

A unidade programática de setores neoconservadores religiosos se espraia para as direitas políticas não confessionais a fim de propagar uma “cidadania anti-política” que tem como objetivo comum estabelecer uma “politização da moral sexual conservadora”. A agenda anti-gênero enraizada na América Latina por esses setores distintos entre si mas unitários no programa pela “politização da moral sexual conservadora” é, pra Juan Marco Vaggione, uma resposta ao impacto dos movimentos feministas e pró-diversidade sexual na política contemporânea.

Um dos “dispositivos retóricos” para ascensão dessa moral sexual conservadora é a propagação da compreensão familista desempenhada, apesar das diferenças teológicas históricas, por setores (neo)conservadores católicos, pentecostais e neopentecostais. Um dos pilares para a politização dessa “moral sexual conservadora” é a unidade programática em torno da compreensão heteronormativa e patriarcal da família, oriunda do familismo.

Marcha da família Cristã pela Liberdade. Foto: Reprodução

A articulação transnacional em torno da farsesca retórica da “ideologia de gênero” é um exemplo de articulação comum entre setores religiosos diversos que proporcionou – como mencionou a pesquisadora colombiana Sandra Mazo – um “ecumenismo (neo)conservador” na defesa irrestrita da agenda anti-gênero.

Como apontado pela pesquisadora Sandra Mazo, o ecumenismo (neo)conservador obtém um “aporte teórico-narrativo” com foco em quatro aspectos para balizar o discurso sacrossanto da agenda anti-gênero. Um: a defesa da vida, contrastando com os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR), em específico o direito ao aborto. Dois: a promoção irrestrita do matrimônio e da família heternormativa (familismo). Três: o uso do conceito de liberdade religiosa (cristofobia) a fim de confessionaliza as políticas públicas para igualar os privilégios públicos aos interesses religiosos. Quatro: a imersão na educação como meta estratégica voltada à doutrinação cristã conservadora na comunidade escolar.

Seguindo os aportes teóricos mencionados acima, arrisco que devemos partir de perguntas-pistas para compreender como funciona esse pacto programático-religioso. É possível afirmarmos que o ecumenismo (neo)conservador contemporiza um alinhamento programático em torno da agenda anti-gênero mas há divergências nas estratégias executadas por esses atores? Os diferentes atores usam os mesmos meios e formas para propagação dessa modernização retórica? O que eles têm em comum – na última década – como estratégia para propagação dessa politização da moral sexual conservadora?

Uma das pistas é compreender o uso recorrente das comunicações midiáticas como forma de intensificação dessa “modernização retórica”. A agenda desempenhada por esse ecumenismo (neo)conservador a fim de exercer uma “politização da moral sexual conservadora” indica que, apesar dos agentes terem o mesmo objetivo comum, o fazem de maneiras diferentes e operam seus dispositivos retóricos reacionários de diferentes formas no campo político, jurídico, social e religioso.

Em se tratando da Igreja Católica, setores neoconservadores como o Centro Dom Bosco, liderado pelo Padre Paulo Ricardo, por exemplo, desempenham o dispositivo retórico mais doutrinal e confessional pela “politização da moral sexual conservadora” por meio de intensas agendas de formações onlines (cursos e lives no YouTube). A associação privada de fiéis Comunidade Católica Shalom, fundada pelo Arcebispo Moysés Louro de Azevedo Filho, cultua seu dispositivo retórico reacionário no aspecto mais emotivo, articulando ritos nem tantos doutrinais com uso frequente das redes sociais, além da publicação de artigos contrários à “ideologia de gênero” em seus sites.

No âmbito internacional clerical católico, como apresentado pela pesquisadora brasileira Maria José Rosado Nunes,  temos o papado de Francisco, não analisado usualmente como parte do que tem sido chamado de “neoconservadorismo” uma vez que promove algumas agendas que não se encontram neste campo, como a Teologia o Povo. No entanto, no que se refere aos debates de gênero, o Papa é alinhado discursivamente, e logo politicamente, ao conservadorismo. A intensificação das campanhas anti-gênero entre 2013 e 2019 contou com auxílio do papado de Francisco por meio de documentos pontifícios, pronunciamentos papais, em voga nos termos de “colonização ideológica” e “ideologia de gênero”, ambas citadas no papado a partir de 2013. Termos esses propagados também pelas redes sociais oficiais de Francisco.

Reprodução de tela de vídeo do youtube

Uma das características dessa intensificação das campanhas anti-gênero é justamente como ela vem sendo apropriada por setores protestantes, gerando um ecumenismo neoconservador em torno da agenda anti-gênero.

Observando o campo evangélico, multifacetado e diverso como o catolicismo, temos o exemplo da Ministra Damares Alves, agente política histórica das campanhas internacionais “pró-vida e pró-família” no Brasil. Suas declarações no Twitter sobre “defesa da vida e da família” são constantes, o que proporciona uma reflexão de que o uso das redes sociais por atores religiosos conservadores e neoconservadores são uma arena midiática em disputa na agenda anti-gênero. Ambos atores religiosos conservadores executam estratégias discursivas semelhantes (“ideologia de gênero”, propagação da família, defesa da vida, liberdade religiosa) mas o fazem de diferentes maneiras na arena pública.

Partindo das perguntas-pistas, reflito que a noção de “ideologia de gênero” foi apropriada nos canais midiáticos e nas redes sociais pela direita religiosa como uma forma comum de referir-se a gênero pela direita política até tornar-se uma pauta de Estado, como na interferência nos planos de educação, por exemplo. O sintagma inicial da “ideologia de gênero” inicia-se no campo católico, se espraia para os setores evangélicos e afunila sua agenda nos grupos anti-direitos como um todo, sendo religiosos ou não.

A “ideologia de gênero” não ficou restrita à sua origem católica, ela foi, ao longo do tempo, sendo ressignificada e retrabalhada pela direita política junto a outros setores religiosos não-católicos. Há desalinhamentos teológicos no modo de promoção da “cidadania anti-política” mas há um pacto programático de setores religiosos, portanto ecumênicos, na hora de executar a mesma agenda político-discursiva contra o gênero.

O ecumenismo (neo)conservador compartilha um pacto programático de caráter global que tem como foco a propagação de uma aliança transnacional pró-família (familismo) e que se desdobra no questionamento político dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR). Setores religiosos atuam com campanhas transnacionais em torno de um programa com dois eixos principais: a defesa da vida desde a concepção (pró-vida) e a defesa da família (nos moldes do familismo).

Dessa forma, conclui-se que a agenda anti-gênero executada pelo ecumenismo (neo)conservador tem como objetivo a propagação de um neoconservadorismo cristão pela retomada da “moral familista unitária” (Vaggione, Biroli, Campos Machado, 2020) no que refere-se a moral sexual cristã. São as agendas anti-gêneros “novas formas de totalitarismo”[1] (Bracke, Paternotte, 2018) no século XXI baseadas em dogmas religiosos cristãos conservadores que visam a defesa da “lei natural” e provocam um retorno da Igreja Católica aliada a setores pentecostais a um regime de diferença sexual. Regime este desempenhado pelo ecumenismo (neo)conservador na utilização estratégica das redes sociais com objetivo de modernizar a retórica dos discursos reacionários.

[1] Ver Sara Bracke e David Paternotte, “Desentrañando el pecado del género”. Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideología de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.

Referências

BIROLI, Flávia, MACHADO, Maria das Dores Campos e VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. 1. ed – São Paulo. Boitempo, 2020.

BRACKE, Sara e PATERNOTTE, David. “Desentrañando el pecado del género”. Em: Sara Bracke e David Paternotte (eds.), Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideologia de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 08-25.

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. Youtube. Disponível em 10/04/2021 <https://www.youtube.com/watch?v= m0fG3Wbh1Dk & t=3092s>.

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Tabata Pastore Tesser é mestranda em Ciência da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e integrante do Grupo de Estudos em Gênero, Religião e Política da PUC/SP (GREPO).

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03/21 e 01/04/21, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a primeira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de capa: Marcha da Família Cristã pela Liberdade (Reprodução).

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