O Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) gerou polêmica ao denunciar a contratação de um instituto privado para desenvolver um projeto com viés religioso na rede estadual de ensino. De acordo com o sindicato, a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Seeduc) implementaria um projeto de matriz evangélica ao custo de R$1,45 milhão.
Após a crítica, encampada por figuras públicas como a deputada estadual Martha Rocha (PDT-RJ) e o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), a Seeduc reagiu à acusação e publicou uma nota de repúdio contra o sindicato. O Sepe-RJ excluiu as publicações “até o recebimento de novas informações”. Bereia recebeu indicação de checagem.
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Acusações do Sindicato e reação da Secretaria de Educação do Rio
De acordo com a publicação original do Sepe-RJ, além do desperdício de dinheiro público, “a iniciativa afronta os princípios da laicidade, com a introdução de conteúdos oriundos do pensamento religioso único”. A postagem foi compartilhada em redes sociais como Instagram e X (antigo Twitter), mas a Secretaria de Educação reagiu.
Em resposta às críticas, a Seeduc publicou uma nota de repúdio, em que rebate as acusações do Sepe-RJ. De acordo com a pasta, “é falsa a informação sobre a contratação do Instituto Anjos Maura de Oliveira para a implantação de projeto que visa a educação amorosa dos estudantes da rede”.
A Secretaria afirma, ainda, que “o contrato está inserido no programa Nota Zero para o Abuso, para a conscientização e o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. A ação faz parte da campanha nacional ‘Maio Laranja’”.
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Exclusão das publicações e explicações por parte do Sepe
Diante da reação da Seeduc, o sindicato acabou apagando as publicações que fez sobre o caso. Em nota, o Sepe-RJ disse que “se equivocou ao citar a vinculação entre os dois projetos (o do Instituto Anjos Maura de Oliveira e o projeto ‘Namoro Blindado’)” e, por isso, “resolveu excluir a postagem até o recebimento de novas informações”. “Namoro Blindado nas Escolas” é um projeto liderado pelo casal evangélico Cristiane e Renato Cardoso, líderes da Igreja Universal do Reino de Deus.
Embora tenha se retratado, o sindicato dos servidores da rede estadual de ensino afirmou manter a crítica aos gastos com uma instituição privada para a realização de um programa de conscientização. A nota diz, ainda, que o sindicato continuará sua atuação de fiscalização e zelo pela garantia da valorização da educação estadual fluminense.
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Contrato entre Seeduc e Instituto Anjos Maura de Oliveira
A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, por meio da Subsecretaria de Planejamento e Ações Estratégicas, assinou um contrato no valor de R$1,45 milhão com o Instituto Anjos Maura de Oliveira, para o treinamento de profissionais atuantes nas 1.233 escolas da Rede Estadual de Ensino.
O acordo de prestação de serviços foi firmado sem um processo licitatório, formato previsto em lei, mas que deve ser acionado em casos específicos de urgência ou interesse público, com respeito a um protocolo específico. O documento da Secretaria de Educação do Estado do Rio, assinado em 13 de maio último, apresenta como objetivo a promoção de ações para o combate e prevenção ao “abuso sexual infantil, pedofilia, ciberpedofilia e exploração sexual infantil”, por meio de “palestras com ênfase nas técnicas de ‘Escuta Especializada’ e ‘Aprender para se Defender’.
Além das equipes técnico-pedagógicas, os treinamentos também devem alcançar estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, da modalidade Normal, ou seja, que se tornarão, em breve, profissionais de educação.
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Além do posicionamento do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), os deputados estaduais Delegada Martha Rocha (PDT-RJ) e Carlos Minc (PSB-RJ) questionaram a ausência de licitação no processo de contratação e da comprovação de especialização do Instituto Anjos.
Minc afirmou, em publicação em seu perfil no X (antigo Twitter), que irá acionar o Tribunal de Contas do Estado (TCE), enquanto Rocha solicitou ao Ministério Público a abertura de um inquérito civil e apontou o vínculo evangélico do instituto em um vídeo publicado em seu perfil no Instagram.
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Instituto Anjos Maura de Oliveira
O Instituto Anjos Maura de Oliveira é uma associação privada, registrada em 2021, que tem como atividade principal atividades de associações de defesa de direitos sociais. A organização não tem um site oficial e as informações sobre os projetos desenvolvidos são divulgadas no perfil da presidente do instituto no Instagram, a escritora e educadora Maura de Oliveira.
No ano de criação do Instituto Anjos, foi sancionada a Lei Estadual 9.234/21, conhecida como Lei Maura de Oliveira, que determina a obrigatoriedade de afixação de cartazes ou letreiros digitais de combate a pedofilia e ciberpedofilia em escolas da rede pública e privada, unidades de assistência social, transportes coletivos e escolares, motéis, hotéis, restaurantes, clubes sociais, associações recreativas ou desportivas e outros locais de uso coletivo.
Bereia não conseguiu contato direto com o Instituto Anjos Maura de Oliveira nem conseguiu acesso a fontes sobre a ONG. O que foi acessível para esta checagem foram o perfil no Instagram de Maura Oliveira (@anjosmauradeoliveira) e uma série de vídeos e de registros em sites sobre as palestras, cursos e entrevistas da educadora. Nenhum destes materiais oferece marcas de identidade religiosa na atividade de Maura de Oliveira e do Instituto Anjos. Também não é possível identificar, por estas fontes, a metodologia da educação “para a conscientização e o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes”.
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Bereia considera o conteúdo checado como inconclusivo. Embora o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) tenha retirado a publicação acusatória das redes, não é possível afirmar que o programa contratado pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) se utiliza ou não de apologia cristã em suas atividades.
É fato, reconhecido pelo próprio Sepe-RJ, que o programa objeto da contratação não mantém correlação com o programa “Namoro Blindado nas Escolas”, este sim, de conhecido cunho evangélico. O contrato com o Instituto Anjos Maura de Oliveira, entretanto, é verdadeiro, assim como o valor reportado: R$1,45 milhão. O que tem sido questionada, no âmbito da Assembleia Legislativa, é a ausência de licitação diante de um valor tão significativo e do objeto que não representa urgência.
O conteúdo que circulou em redes sociais nas últimas semanas, produzido a partir da acusação do Sepe-RJ, contém alguma substância informativa, mas não apresenta todos os elementos para serem classificados como verdadeiros. Mais do que isso, apresenta alegações desmentidas pela Seeduc, fato reconhecido, em nota, pelo sindicato.
A possibilidade de efetivação de um discurso religioso – nas escolas fluminenses – viabilizado com verba pública, porém, não se esgota com a inexistência de vínculo com o programa citado pelo sindicato.
Bereia recebeu o pedido de verificação do conteúdo que tem sido divulgado em mídias do Nordeste sobre o filho de Margarida Alves, José de Arimatéia Alves, e tem circulado em ambientes digitais católicos.
Durante um evento realizado em um shopping em João Pessoa, pelo Dia Internacional da Mulher, o filho de Margarida Alves declarou: “Após 20 anos de espera para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer a negligência da elucidação do assassinato de minha mãe, foi preciso que um paraibano, um servo de Deus, chegasse à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do governo federal, o Dr. Sérgio Queiroz, então Secretário Nacional de Proteção Global para resolver o caso e a indenização a mim e a minha família. Sérgio Queiroz teve sensibilidade para tomar para si esse processo e só descansou quando foi encerrado em 2019”, afirmou o candidato.
Uma fonte ligada às Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica avalia a situação: “De fato, o filho de Margarida Alves foi para um partido de direita, sob influência da igreja que ele participa e todos nós ficamos bem assustados. Eu participei muito tempo com o Arimatéia na Pastoral de Juventude [Católica] aqui em João Pessoa, por isso é meio assustadora esta decisão dele.”. A fonte conta que Margarida participou de muitos encontros de base, com Nequinho, que é o atual presidente do Sindicato em Alagoa Nova e outros ligados à luta da CPT pela terra. “Por isso é assustador. A gente fica com pena do que ele está fazendo, usando a história da mãe para legitimar este governo, não é nada libertador. Saber o que Margarida sofreu do latifúndio e ver o filho dela neste rumo aí. Ele nunca mais me mandou notícias, mas acho que é porque ele sabe a minha posição”, lamenta a fonte.
A marcante história de Margarida Alves
Margarida Maria Alves nasceu e cresceu em Alagoa Grande, no Brejo Paraibano, em 5 de agosto de 1933. De acordo com sua biografia, registrada no site da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Alves (FDDHMA), “foi a primeira mulher presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em sua cidade, por 12 anos. Lá, fundou o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural, uma iniciativa que, até hoje, contribui para o desenvolvimento rural e urbano sustentável, fortalecendo a agricultura familiar”.
A líder agricultora lutou pela defesa dos direitos dos trabalhadores sem terra, buscando e incentivando todos a buscarem o registro em carteira de trabalho, a jornada diária de trabalho de oito horas, 13° salário, férias e demais direitos, para que as condições de trabalho no campo pudessem ser equiparadas ao modelo urbano. “Durante sua gestão, o Sindicato moveu mais de 600 ações trabalhistas e fez diversas denúncias, como a endereçada diretamente ao Presidente do Brasil, em 1982, João Batista Figueiredo”.
Margarida Alves não viveu para ver o resultado de sua luta. “Por causa do surgimento do Plano Nacional de Reforma Agrária, a violência no campo foi intensificada por parte dos latifundiários, que não queriam perder suas terras, mesmo as improdutivas”. E desde então, “o trabalho de Margarida na defesa dos direitos dos trabalhadores entrou em conflito com os interesses dos latifundiários, tornando-a uma ameaça para eles”.
Durante a comemoração do 1° de maio de 1983, na cidade de Sapé, na Paraíba, Margarida Alves fez um discurso no qual afirmou: “Eles não querem que vocês venham à sede porque eles estão com medo, estão com medo da nossa organização, estão com medo da nossa união, porque eles sabem que podem cair oito ou dez pessoas, mas jamais cairão todos diante da luta por aquilo que é de direito devido ao trabalhador rural, que vive marginalizado debaixo dos pés deles”.
A trabalhadora rural e presidente do Sindicato foi assassinada três meses depois dessa declaração. “O principal acusado é Agnaldo Veloso Borges, então proprietário da usina de açúcar local, a Usina Tanques, e seu genro, José Buarque de Gusmão Neto, mais conhecido como Zito Buarque. Seu sogro era o líder do Chamado Grupo da Várzea, composto por 60 fazendeiros, três deputados e 50 prefeitos. O crime ocorreu no dia 12 de agosto de 1983, quando um pistoleiro de aluguel, (…) disparou um tiro (…) em seu rosto, quando ela estava na frente de sua casa”. O marido de Margarida, Severino Alves e seu filho, na ocasião da tragédia com oito anos de idade, José de Arimatéia Alves viram tudo.
O soldado da Polícia Militar Betâneo Carneiro dos Santos, os irmãos pistoleiros Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e Biu Genésio foram acusados do crime.
O assassinato de Margarida Alves teve repercussão internacional, com denúncia encaminhada à Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH) e várias outras entidades. “Criada, pela Arquidiocese da Paraíba, a Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, em 2002, recebeu a Medalha Chico Mendes de Resistência, oferecida pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. O dia de seu assassinato, 12 de agosto, é conhecido como o Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária”.
Quem fez a reparação histórica?
De fato a reparação histórica do assassinato da mãe do atual candidato a deputado estadual pelo PRTB ocorreu, mas ao contrário do que ele e o governista Sérgio Queiroz afirmam, essa reparação não foi uma iniciativa do governo Bolsonaro, mas um esforço sistemático durante décadas da parte de pessoas, movimentos e instituições, que foi concluído durante o atual governo.
No entanto, apesar da ação em favor desse reconhecimento, “o direito à devida reparação pecuniária pelos danos causados em decorrência da perseguição política” foi negado pela União em 24 de janeiro de 2017. Posteriormente, quando da decisão pelo TRF5 pelo pagamento da indenização ao filho de Margarida Alves, o relator do processo, desembargador federal Cid Marconi Gurgel de Souza registrou nos autos que “a União é a responsável direta nas ações em que se postula o pagamento da aposentadoria ou pensão excepcional de anistiados”. O desembargador decretou ainda que “cabe ao Tesouro Nacional arcar com o pagamento de indenizações decorrentes de anistia política Estas decisões explicitam que, no Brasil, a luta por indenização a anistiados perseguidos pela ditadura, obteve resultado na forma de lei a ser cumprida pela União. Portanto, a reparação e a indenização à família de Margarida Alves foi uma decisão judicial , não uma ação do governo Bolsonaro. Ela foi um desdobramento do caso desde a decisão de anistia em 2016 e das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que também recebeu petição sobre o caso de Margarida Alves, em 2000.
A cerimônia simbólica de reparação realizada pelo governo brasileiro e a participação de lideranças governistas em reunião sobre o caso na CIDH, em 2019, não foram iniciativas do governo, mas o cumprimento de um protocolo resultante de um processo que se desenrolou desde o final da ditadura militar e que o atual governo teve que cumprir, por recomendação da CIDH registrada em 31 de março de 2008.
Os encaminhamentos históricos pela justiça a Margarida Alves
O “Relatório do Mérito Margarida Maria Alves e Familiares”, n. 31/20, foi publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 26 de abril de 2020, especifica que a CIDH “recebeu petição do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares, da Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, de outras instituições ligadas à defesa dos direitos humanos e a pastoral da terra, por violações de direitos humanos cometidas em prejuízo de Margarida Maria Alves e seus familiares”.
O relatório registra que a petição foi recebida em 17 de outubro de 2000, com aprovação do relatório de admissibilidade (n. 9/08) em 5 de março de 2002. Em 31 de março de 2008, a Comissão notificou esse relatório às partes e se colocou à sua disposição para mediar o alcance de uma solução amistosa. Todas as informações foram devidamente transmitidas entre as partes, que tiveram prazo para apresentarem considerações sobre o mérito.
O documento oferece provas suficientes de que a luta pelos direitos de reparação e de indenização de Margarida Alves e seus familiares faz parte de um processo longo de luta de organizações de defesa de direitos humanos, instituições católicas e assessorias jurídicas às organizações populares no Brasil, que no ano de 2000 buscaram a ajuda da CIDH para que justiça fosse feita nesse caso. Ou seja, a luta das instituições com o apoio da CIDH, foi que levou o governo brasileiro, presidido por Fernando Henrique Cardoso, em 2002, a criar a Lei n. 10.559 que rege a “indenização a anistiados políticos”.
O processo também levou a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça do governo Dilma Rousseff, a aprovar em sua 12a Sessão de Julgamento realizada em 6 de julho de 2016, a condição de anistiada política post-mortem a Margarida Maria Alves. Finalmente, em 25 de outubro de 2019, foi concluído o longo processo, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, quando houve a cerimônia de Reparação Simbólica à Memória de Margarida Maria Alves pelo Estado brasileiro, no auditório da Justiça Federal, em João Pessoa. O evento marcou, publicamente, o encerramento do Caso 12.332, como ficou conhecido internacionalmente o assassinato da sindicalista paraibana na CIDH. A reparação ocorreu 36 anos após a sua morte, depois de 20 anos de tramitação na corte internacional. Estiveram presentes na cerimônia, além do filho de Margarida Alves, José Arimateia Alves, a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos Damares Alves e seu secretário nacional de Proteção Global Sérgio Queiroz.
Antropóloga que conheceu a agricultora relata a sua luta
Bereia ouviu a antropóloga e pesquisadora das religiões Dra. Regina Novaes, que foi professora durante dez anos da Universidade Federal da Paraíba. Ela relatou sua experiência e conhecimento da história de Margarida Alves: “Fiz minha tese de doutorado sobre movimentos sociais rurais e fiz parte de um Grupo de Assessoria Sindical através do qual conheci e tive bastante contato com Margarida Maria Alves. Ela integrava um grupo de sindicalistas apoiado pelas pastorais católicas, sobretudo pelo Centro de Educação Popular, que era coordenado pela irmã Valéria Rezende em Guarabira. O bispo na cidade era D. Marcelo Carvalheira, que junto com D. José Maria Pires, fundou a ‘igreja da libertação’ na Paraíba. Com esses apoios, Margarida Alves se destacou na luta pelos direitos dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande, sindicato da qual era Presidente (concorreu depois que seu marido Casemiro adoeceu e não pode participar da disputa)”, relata a antropóloga.
Novaes conta que a atuação de Margarida Alves “incomodou usineiros e senhores de engenho e seu assassinato ocorreu no dia 12 de agosto de 1983. Seu filho único tinha oito anos de idade. O assassinato teve grande repercussão na sociedade civil e nos movimentos sociais”. No Brasil surgiram movimentos importantes como a “Marcha das Margaridas”, que se tornou um símbolo nacional.
A apropriação do caso para campanha
A profa. Regina Novaes esclarece ainda: “Depois de muito trabalho pelo reconhecimento do assassinato como crime político, no âmbito da Comissão da Anistia, em 6 de julho de 2016 o resultado foi alcançado. Ou seja, o que foi ‘conseguido’ por Sergio Queiroz, no governo Bolsonaro, foi finalizar (e se apropriar de) um processo que por décadas contou com o empenho de organizações da sociedade civil e – em decorrência disso – com o reconhecimento do poder público”.
Em relação a José de Arimatéia Alves, ela afirma que “pelas informações que circulam publicamente, não foi uma vida fácil. Assistiu ao assassinato da mãe, perdeu o pai, saiu da Paraíba, foi viver no Rio de Janeiro, teve problemas com alcoolismo. Como acontece com parte significativa dos filhos das classes trabalhadoras no Brasil de hoje, o filho de Margarida Alves parece ter encontrado em igrejas evangélicas uma rede de apoio espiritual e material para se reerguer. Tornou-se pastor. Até aí, vemos repetida uma história conhecida”. A antropóloga ainda explica: “A novidade vem em 2019, quando a imprensa anuncia o recebimento da indenização com o empenho governista de Sérgio Queiroz. Começava-se assim a construção de uma narrativa de apropriação da história de Margarida Alves. Em 2021, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves e a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos da Paraíba também se fazem presentes quando o pastor Arimatéia diz trocar ‘desejo de vingança e alcoolismo’ pela defesa do legado da mãe’”.
Regina Novaes relata que “finalmente, em 2022, já pastor e candidato, Arimatéia Alves insiste em lembrar o ‘feito’ de Sérgio Queiroz (agora pré-candidato ao Senado) e agradece ao presidente Jair Bolsonaro pela indenização recebida”. Sobre a questão que surge – se há mentiras nessa narrativa – a antropóloga responde: “Certamente há manipulação da verdade por meio de esquecimento de tudo que foi feito antes pelos movimentos sociais e pelas instâncias governamentais do governo Dilma Rousseff para que o Sérgio Queiroz pudesse fazer algo que concluísse na indenização da família de Margarida Alves; e exagero no peso das ‘cortes internacionais’ na resolução do caso com o objetivo de valorizar a trajetória pessoal de Sérgio Queiroz, que tinha uma ligação com alguma agência internacional; e a introdução do protagonismo de Damares Alves e Bolsonaro de maneira a justificar as candidaturas políticas”, explica Novaes.
A pesquisadora ouvida pelo Bereia acrescenta: “Ao meu ver, não se trata de pegar esse caso como exemplar das consequências nefastas do crescimento das ‘igrejas neo-pentecostais’ em uma região onde as pastorais progressistas católicas tiveram um papel importante na época de Margarida. Isso é pouco e faz economizar reflexão. Acho que se trata de um caso exemplar de: a) conjugação de fatores do pertencimento religioso e de reprodução da cultura política local e, b) de como são construídas fake news: produzindo parciais esquecimentos de fatos e de pessoas e maximizando eventos e personagens que se tornam centrais na narrativa”.
A antropóloga conclui: “Por isso vale voltar ao caso e se contrapor ao agradecimento de Arimatéia para Bolsonaro (interessante esse agradecimento a alguém que tantas vezes se colocou contra medidas de Justiça e Reparação). A aposta é que o eleitor nem vá observar essa contradição pois: a) já estaria predisposto a apoiar quem apoia Bolsonaro ou b) já tem relações prévias com Arimatéia e sua redenção”. A profa. Regina Novaes avalia que essa estratégia dos candidatos pelo PRTB até pode gerar vantagem, mas tem dúvidas.
Leis da Anistia e de Indenização
A Lei da Anistia é como ficou conhecida a Lei n° 6.683 sancionada pelo presidente João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, após grande mobilização social, ainda durante a ditadura militar.
O lema da campanha pela anistia no final da década de 70 era: “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” e mobilizou o Congresso e a nação, levando o último presidente da Ditadura Militar, general João Batista Figueiredo a escrever texto da lei que foi avaliada pelo Congresso e recebeu alterações feitas pelos parlamentares naquela ocasião para a aprovação do presidente. A anistia, da forma como foi acordada no Brasil, deu perdão a perseguidos, a exilados e a presos políticos, mas impediu a punição aos agentes perpetradores das violações de direitos, entre elas a tortura e os assassinatos.
O técnico em eletrônica Edson Benigno, hoje com 72 anos, ouvido pelo jornal O Globo, “foi detido {e torturado} aos 26 anos pela ação política do pai, antigo militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas mesmo com o histórico de perseguição, prisão e tortura, não conseguiu ser anistiado. Seu processo chegou a ser aprovado na Comissão de Anistia, no governo de Michel Temer, mas não teve a portaria publicada até hoje. Ao longo do governo de Jair Bolsonaro, o caso segue parado na comissão, sem previsão de aprovação da anistia e reparação econômica”. Edson Benigno diz não ter “qualquer expectativa de que esse governo, que elogia a ditadura, irá reconhecer que fui vítima daquele período”.
De acordo com a reportagem, “o governo revisa e reconta a história para negar a ditadura militar. Nas duas comissões instituídas durante o governo Bolsonaro, em curso há mais de vinte anos para tratar e julgar as violações cometidas naquele período — de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos — os conselheiros, escolhidos a dedo (incluindo militares), ignoram os fatos, negam a perseguição política, ‘desanistiam’ militantes já anistiados e abandonam a busca por desaparecidos”.
Em abril de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu para realizar uma missão no Brasil e investigar como estava a gestão do governo federal em relação aos mecanismos de reparação de vítimas da ditadura militar. Segundo a matéria do jornalista que cobre a pauta internacional de direitos humanos, Jamil Chade, a ONU estaria preocupada com o desmonte promovido pelo governo e, por isso, pediu para investigar a situação no Brasil. A requisição foi feita pelo Grupo de Trabalho de Desaparecimentos Forçados da organização”. Já naquele momento, eram objeto de preocupação do GT da ONU as muitas falas públicas de membros do governo federal que estavam “negando a existência de uma ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985, ou avaliando positivamente os eventos ocorridos durante este período. Além disso, há um alerta sobre interferências no trabalho dos mecanismos de já existem para recompensar as vítimas do período”.
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Bereia classifica o conteúdo disseminado pelo filho de Margarida Alves, pastor Arimatéia Alves, que atribui ao governo de Jair Bolsonaro a responsabilidade pela reparação da memória de sua mãe como anistiada política e a indenização alcançada por ele como vítima do processo, como enganoso. A reparação simbólica e a indenização foram alcançadas no primeiro ano do governo Bolsonaro, de fato, mas foram a culminância de ações de organizações de direitos humanos, juntamente com a Pastoral da Terra da Igreja Católica, que duraram mais de 20 anos. As comissões de anistia e de indenizações em ação durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva, de Dilma Rousseff e de Michel Temer e a mediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tornaram possível este ato de justiça, cumprido em protocolo pelo governo Bolsonaro.
Ao contrário do que o filho da agricultora morta durante a ditadura militar propaga, o governo Bolsonaro tem agido para impedir novos processos de reparação e atua para negar os efeitos nefastos produzidos pelos governos militares na vida de centenas de pessoas, diretamente atingidas, e de todo o país.