ELEIÇÕES 2024 -“PL da Fome” em SP: método de extremistas nos Legislativos
* Matéria atualizada em 10/07/24 às 10:30 para ajuste de título
Consentido em apenas 24 segundos, o Projeto de Lei (PL) Municipal 445/2023 tornou-se assunto nas mídias digitais e na imprensa. Aprovado pela Câmara de Vereadores de São Paulo, em primeiro turno, em 27 de junho, sob autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o projeto visa estabelecer protocolos de segurança alimentar para doações de alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade social na capital paulista.
A proposta busca regulamentar as atividades de Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades assemelhadas e cidadãos que deverão seguir uma série de requisitos ao realizarem esse tipo de ação assistencial. O texto determina que as doações só podem ser realizadas em locais e horários agendados e autorizados pelas secretarias municipais, com a apresentação de um plano detalhado de distribuição. Caso não sejam cumpridas as determinações, o PL propõe uma multa superior a R$17.000 e a possibilidade de descredenciamento por três anos em caso de reincidência.
Imagem: Reprodução X (antigo Twitter)
O projeto, que necessitaria passar por uma segunda votação na Câmara e pela sanção do prefeito da cidade de São Paulo Ricardo Nunes para se tornar lei, depois da repercussão negativa, por conta de fortes críticas da sociedade civil e de autoridades públicas, foi retirado da pauta da casa legislativa pelo próprio autor, em 2 de julho.
Já com as primeiras manifestações de repúdio, o projeto havia sido suspenso por Rubinho Nunes, em 28 de junho. De acordo com o comunicado do parlamentar, a suspensão havia sido realizada para ouvir a sociedade civil e entidades, a fim de “melhorar o texto” para que o objetivo fosse alcançado. “Considerando a repercussão do PL 445/23, que estabelece protocolos e diretrizes de distribuição alimentar na cidade de São Paulo, informo que o projeto terá sua tramitação imediatamente suspensa”, informou o autor do projeto.
Porém, dias depois, o vereador optou pela retirada do PL da pauta da Câmara. No entanto, um levantamento do portal de notícias G1 mostra que, apesar da declaração da assessoria do político sobre a retirada da pauta, a pedido do autor, e que o PL não tramitará mais, tal encaminhamento não seguiu o protocolo da Câmara de Vereadores para que isto ocorra.
Para um PL deixar de tramitar, é preciso seguir um rito de arquivamento, o que não foi encaminhado pelo vereador. Portanto, o que existe é apenas um discurso de retirada e a votação para aprovação definitiva pode ser realizada a qualquer momento.
Entenda o PL 445/2023
O Projeto de Lei 445/2023 apresentado pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), em 10 de agosto de 2023, à Câmara Municipal dede São Paulo, prevê uma série de exigências para ONGs, entidades e cidadãos que desejam realizar doações de alimentos.
O PL estabelece requisitos para doação de alimentos por pessoas físicas, incluindo:
- Limpeza da área de distribuição e fornecimento de infraestrutura necessária;
- Obtenção de autorização da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) e da Secretaria Municipal de Subprefeituras;
- Cadastro de todos os voluntários junto à SMADS.
Para entidades e ONGs, os requisitos incluem:
- Registro e reconhecimento da razão social por órgãos competentes do município;
- Apresentação de documentação atualizada sobre o quadro administrativo;
- Cadastro e atualização de informações sobre pessoas em situação de vulnerabilidade social;
- Autenticação em cartório ou atestado de veracidade das documentações;
- Identificação dos voluntários com crachá da entidade.
O PL prevê multas em 500 UFESP (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo), aproximadamente R$17.680,00, e o descredenciamento do doador por três anos, em caso de reincidência. Estas medidas foram aprovadas em diversas comissões da Câmara Municipal, incluindo a Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ), com o vereador Thammy Miranda (PSD), na relatoria da matéria. Ele apresentou um substitutivo para adequar a redação do projeto à técnica legislativa e substituir a multa em UFESP por o valor fixo em reais.
Nessa tramitação, apenas o vereador Hélio Rodrigues (PT) registrou voto contrário na Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher, bem como o vereador Professor Toninho Vespoli (PSOL), na Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa .
O autor do PL, Rubinho Nunes (União Brasil), justificou que a proposta tem o objetivo de garantir segurança, qualidade e transparência nas ações assistenciais. Ele argumenta que o município tem a responsabilidade de fiscalizar e tentar reincluir a população em situação de rua na sociedade.
O Projeto de Lei foi aprovado em primeira votação, em 27 de junho, em um processo de apenas 24 segundos, devido a um acordo entre vereadores para desafogar a pauta de votações. Somente as bancadas do PT e do PSOL registraram o voto contrário à proposta.
A Frente Parlamentar Cristã da Câmara Municipal de São Paulo, foi unânime em aprovar o PL 445/2023. Seus membros incluem:
- André Santos (Republicanos)
- Atílio Francisco (Republicanos)
- Ely Teruel (Podemos)
- Fernando Holiday (Republicanos)
- Gilberto Nascimento (PSC)
- Isac Felix (PL)
- João Jorge (PSDB)
- Jorge Wilson Filho (Republicanos)
- Marcelo Messias (MDB)
- Marlon Luz (MDB)
- Rinaldi Digilio (União)
- Rute Costa (PSDB)
- Sansão Pereira (Republicanos)
Além desses, outros vereadores também aprovaram o PL, incluindo todos os membros dos partidos Novo, União Brasil, MDB, PL, PSD, PP e PV, com um total de 35 vereadores favoráveis à proposta.
Reações da sociedade civil e política
A aprovação, em primeiro turno, do PL 445/2023 gerou forte reação contrária da sociedade civil e de autoridades públicas especialmente em setores que atuam com a assistência social de pessoas em situação de vulnerabilidade.
A ativista, pré-candidata a vereadora de São Paulo e assessora da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), Amanda Paschoal, tomou medidas legais contra o projeto. Ela acionou o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo, com a alegação de que o projeto é inconstitucional, imoral, restringe o acesso a um direito básico à alimentação.
O Projeto Mãos na Massa, iniciativa sem fins lucrativos, que se dedica à assistência habitacional e também atua na distribuição de cestas básicas e alimentos, divulgou uma nota de repúdio em sua página no Instagram. A organização argumenta que as exigências burocráticas do PL inviabilizam a atuação de voluntários e colocam em risco a sobrevivência de milhares de pessoas que dependem dessas ações. O projeto defende que a solução da fome e da pobreza está em políticas públicas eficazes e não na penalização de quem ajuda.
Imagem: Reprodução Instagram
O padre Júlio Lancellotti, conhecido pelos atos de caridade e pela defesa de pessoas em situação de rua na capital paulista, publicou em sua página no Instagram um vídeo em que afirma que, assim como Jesus o fazia, a partilha do pão, do alimento, é um direito de todos e que essa ação “tem gosto de amor e não de multa”.
Imagem: Reprodução Instagram
Em 30 de junho, em uma entrevista, o líder religioso comentou sobre o PL 445/2023. Ele enfatizou a importância da caridade e da doação de alimentos como atos revolucionários e sugeriu que os vereadores que apoiaram o projeto leiam o capítulo 25 do Evangelho de Mateus, que fala sobre alimentar os famintos e cuidar dos necessitados. Ele os convida a participar da distribuição matinal de pão aos moradores de rua.
O prefeito de São Paulo Ricardo Nunes (MDB) , ao ser questionado sobre o PL, afirmou que os vereadores têm autonomia para apresentarem projetos de lei que acreditem ser corretos e que a aprovação do texto em primeiro turno, sem maiores discussões, são práticas comuns da Câmara Municipal. Ele deixou em aberto se vetaria a proposição caso seja definitivamente aprovada e submetida para sanção.
Em meio às críticas, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil) concedeu entrevista ao jornal Morning Show, da emissora de TV Jovem Pan, para repercutir o Projeto de Lei, em 28 de junho. O canal e seus jornalistas, conhecidos pelo apelo conservador e alinhados com as pautas da extrema direita, foram incisivos nos questionamentos ao político. Os membros da bancada do noticiário, enfatizaram a importância da caridade como um valor cristão, e questionaram se o projeto proposto era verdadeiramente cristão no sentido da caridade e do auxílio aos pobres. Os jornalistas também expressaram preocupação sobre como o PL poderia desestimular atos donativos devido à burocracia e às multas elevadas.
Diante da repercussão negativa, o vereador afirmou a necessidade de aperfeiçoar o texto do projeto, e alegou que houve uma “má interpretação” na sua redação inicial.
Imagem: Reprodução YouTube
Quem é o autor do projeto?
O vereador da cidade de São Paulo pelo União Brasil, Rubinho Nunes, tem se destacado por proposições legislativas controversas, como o PL 445/2023. Em seu em seu primeiro mandato, o parlamentar tem levantado suspeitas sobre a assistência aos necessitados na capital paulista, gerando polêmicas e destaque.
Imagem: Reprodução Câmara Municipal de São Paulo
Conhecido por ser um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), alinhado ao extremismo de direita no País, Nunes ganhou visibilidade nacional ao participar da convocação e da organização das manifestações ocorridas em 2016, em prol da aprovação do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT).
O parlamentar é advogado e protocolou petições judiciais polêmicas. Entre elas, em 2023, as tentativas de barrar as nomeações do governo federal de Jean Paul Prates, para a chefia da Petrobras, e de Aloizio Mercadante, para o BNDES. Em outros períodos, já solicitou que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) fosse classificado como organização criminosa e foi o primeiro a entrar com um pedido de impeachment contra um membro do Superior Tribunal Federal (STF), o ex-ministro Marco Aurélio Mello.
No final de 2023, Nunes protagonizou outra polêmica, já checada pelo Bereia. O vereador foi autor de um pedido para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação de ONGs na região da Cracolândia, em São Paulo. A iniciativa gerou ampla repercussão e foi fonte de desinformação sobre o trabalho das ONGs, especialmente, do padre Júlio Lancellotti, que atua na assistência a essa população e ideologicamente está mais próximo das esquerdas.
A articulação para a criação da CPI é investigada pela Polícia Civil de São Paulo, que abriu um inquérito contra Rubinho Nunes. A polícia investiga se o vereador cometeu abuso de autoridade para impedir o trabalho do padre Lancellotti por meio de uma CPI, sem indicativos claros de conduta ilegal por parte do líder religioso.
Extremismo nas casas legislativas
A polarização extremista que tem caracterizado o cenário político brasileiro na última década se intensifica com a aproximação das eleições municipais de 2024. Vereadores e seus aliados políticos, que atuam como cabos eleitorais no Congresso Nacional, têm intensificado a apresentação e a tramitação de projetos de lei controversos, que geram repercussão nas redes digitais e na imprensa nacionais.
Extremistas alinhados à direita política, têm utilizado propostas legislativas que atacam princípios dos direitos humanos e afetam grupos sociais vulneráveis. De acordo com o Instituto de Estudos e Religiões (ISER) em maio, questões relacionadas aos direitos humanos, como esse projeto que propõe estabelecer protocolos de segurança alimentar para doações de alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade social na capital paulista, estão se tornando alvo de projetos de lei. Estas iniciativas legislativas buscam regulamentar práticas que afetam diretamente a garantia de dignidade e acesso a recursos básicos para grupos vulneráveis da sociedade.
Nos últimos meses, Bereia abordou algumas delas, como é o caso do PL 1.904/2024, o PL do Aborto, que tramita na Câmara Federal, e da desinformação sobre as alterações nas regras de saídas temporárias de detentos em regime semiaberto, contidos no PL 2.253/2022, na mesma casa.
Além disso, outros projetos com o mesmo caráter estão em tramitação, como o 2.706/2024, da senadora Rosana Martinelli (PL-MT), que propõe a concessão de anistia aos acusados e condenados pelos atos golpistas ocorridos em 8 de janeiro de 2023 em Brasília; a retomada da análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) de dois projetos de lei que propõem a criação de um cadastro público de “invasores de propriedade privada” e a retirada de invasores sem mandato judicial, por conta própria do proprietário ou da polícia militar.
O método
O caso do PL 445/2023 em São Paulo ilustra uma estratégia cada vez mais comum entre políticos de extrema-direita, e também dos cristãos, nos legislativos brasileiros: a proposição de pautas polêmicas que afetam diretamente a agenda progressista e de direita, com o objetivo de gerar controvérsia e ocupar espaço na mídia.
A antropóloga e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER), em Religião e Política, Livia Reis, ouvida pelo Bereia, afirmou que é uma tática que vai além da simples aprovação de leis”. Mesmo quando projetos como o “PL da Fome” são retirados após forte reação negativa, o objetivo principal já foi alcançado, que é capturar a atenção do eleitorado, polarizar o debate, forçar seus opositores a adotarem uma postura defensiva e desviar o debate público para temas moralistas.
Reis considera que a retirada dos projetos do vereador Rubinho Nunes e em outras casas legislativas, não podem ser vistas apenas como fracasso dos conservadores ou vitória da pressão popular, pois fazem parte de uma metodologia mais abrangente. Ao proporem medidas extremistas e depois recuarem, diz a antropóloga, os políticos conseguem se apresentar como “abertos ao diálogo”, enquanto mantêm os temas em evidência e consolidam suas bases de apoio mais radicais.
A pesquisadora do ISER alerta que o padrão é claro e essa estratégia tem se repetido em diversos níveis legislativos. A escolha de temas sensíveis, propor medidas extremas, gerar reação nas redes e na mídia, e então modular o discurso conforme a reação pública. Livia Reis reconhece que o desafio para a esquerda e os movimentos progressistas é a resistência a esses projetos sem cair na armadilha de aumentar a visibilidade dos proponentes, e ao mesmo tempo ter espaço para apresentar suas alternativas e propostas.
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O episódio do “PL da fome” em São Paulo serve como alerta a leitores e leitoras do Bereia, para o uso de uma movimentação tática com temas controversos que ganhem espaço nas mídias, para campanha nas eleições municipais de 2024 e projeções para o pleito nacional de 2026.
Referências:
Câmara Municipal de São Paulo.
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https://splegisconsulta.saopaulo.sp.leg.br/Pesquisa/DetailsDetalhado?COD_MTRA_LEGL=1&COD_PCSS_CMSP=445&ANO_PCSS_CMSP=2023. Acesso em 1 de julho de 2024.
https://app-plpconsulta-prd.azurewebsites.net/Forms/MostrarArquivo?ID=17771&TipArq=1 Acesso em 3 de julho de 2024.
https://www.saopaulo.sp.leg.br/iah/fulltext/justificativa/JPL0445-2023.pdf. Acesso em 2 de julho de 2024.
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https://www.saopaulo.sp.leg.br/iah/fulltext/parecer/JUSTS0487-2024.pdf. Acesso em 2 de julho de 2024.
https://www.saopaulo.sp.leg.br/iah/fulltext/projeto/PL0445-2023.pdf. Acesso em 1º de julho de 2024.
G1.
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/06/28/pl-que-preve-multa-de-r-17-mil-e-restringe-doacao-de-comida-para-a-populacao-de-rua-em-sp-e-inconstitucional-aponta-oab.ghtml. Acesso em: 1 de julho de 2024.
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/07/03/mesmo-apos-promessa-vereador-que-propos-multa-de-r-17-mil-para-doacao-de-comida-nao-se-moveu-na-camara-para-arquivar-projeto.ghtml. Acesso em 6 de julho de 2024.
Poder 360. https://www.poder360.com.br/brasil/pl-preve-multa-de-r-17-680-a-quem-doar-comida-na-rua-em-sp/. Acesso em: 1 de julho de 2024.
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Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/politica/2024/6/28/avano-do-pl-da-fome-com-ajuda-da-base-aliada-de-ricardo-nunes-na-cmara-constrange-prefeito-de-sp-161321.html. Acesso em 4 de julho de 2024.
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Foto de capa: André Bueno/Câmara Municipal de São Paulo