Pastor Felippe Valadão promove intolerância religiosa em evento público

Circulou em várias mídias a notícia de que o pastor da Igreja Batista Lagoinha Felippe Valadão atacou religiões de matriz africana em um evento oficial promovido pela Prefeitura de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, em 19 de maio passado. O prefeito da cidade é Marcelo Delaroli, filiado ao Partido Liberal (PL) e membro da 1ª Igreja Batista.

Imagem: reprodução do G1

O município comemora o aniversário de 189 anos de emancipação político-administrativa com uma série de shows,  na qual se apresentaram artistas gospel. Segundo os relatos, no intervalo de uma das apresentações , Felippe Valadão subiu ao palco e discursou: 

Queira o diabo ou não, você sabe o que fizeram aqui de ontem para hoje? O pessoal acordou aqui e de ontem para hoje tinham quatro despachos aqui na frente do palco!

Avisa aí pra esses endemoniados de Itaboraí, o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!!

E ainda digo mais: prepara para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade! Eu declaro, vem um tempo aí ó, Deus vai começar a salvar esses pais de santo que tem aqui na cidade.

Você vai ver coisas que você nunca viu na vida. Chegou o tempo Itaboraí! Aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou! Eu vou repetir: o tempo de bagunça e roubalheira nessa cidade acabou!

Repúdio e medidas legais 

No dia seguinte, a Comissão de Matrizes Afro-Brasileiras de Itaboraí (Comabi), publicou nota de repúdio ao discurso do pastor e exigiu retratação pública do prefeito, responsável pelo evento.

NOTA DE REPÚDIO

Ao Ilmo Sr. Prefeito de Itaboraí Marcelo Delarolli.

Itaboraí, 20 de maio de 2022.

A Comissão de Povos Tradicionais de Terreiros de Itaboraí, COMABI, vem por meio desta nota, repudiar as infelizes palavras do pastor Felippe Valadão na noite desta quinta-feira, dia 19 de maio de 2022, por ocasião da abertura das festividades em comemoração aos 189 anos do Município de Itaboraí.

Em sua fala, o pastor agride de maneira vil, desrespeitosa e ameaçadora a comunidade religiosa do Candomblé e da Umbanda desta cidade que tem sancionada a lei 2603/2016 que Institui o DIA MUNICIPAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA OS POVOS TRADICIONAIS DE MATRIZES AFRICANAS no dia 24 de Julho, que no então, não corrobora com o acontecido na Cidade no citado evento.

Queremos antes de tudo, questionar o motivo de uma manifestação festiva, popular e laica, ter em sua programação, discursos de cunho religioso, quando na verdade, se houve a intenção de manifestar alguma religiosidade, haveria de ter representantes de todas as matrizes, e não tão somente evangélicas por não representar a diversidade e a pluralidade dos cidadãos e cidadãs do município 

O Pastor começa chamando-nos de ‘ENDEMONIADOS’, e que o tempo da bagunça religiosa acabou na cidade.

Que se pode matar galinha, fazer o que quiser os terreiros serão fechados e os ‘Pais e Mães de santo’ serão salvos pelo ‘deus’ que ele professa. Sim, “deus” com letra minúscula, porque o Deus com maiúsculo que conhecemos não compactua com sua megalomania, loucura e arrogância.

Perguntamos; com qual autoridade, seja ela política ou religiosa esta insana figura foi outorgada, para desferir tamanhas agressões contra uma comunidade que vive a fazer o bem, cuidando das pessoas e contribuir com sua comunidade, onde muitas das vezes o poder público não a alcança.

Desta forma, exigimos urgente retratação pública do Sr. prefeito, organizador do evento, para que no poder de suas atribuições, venha a restaurar, a ordem, igualdade, laicidade e o respeito a todo o povo religioso de Itaboraí, aviltado por esta figura desequilibrada, que certamente irá responder nos autos por sua infração e crime de intolerância religiosa, como confere a legislação brasileira. O Brasil tem normas jurídicas que visam punir a intolerância religiosa.

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

Exigimos aqui que seja feito um T.A.C – Termo de Ajuste de condutas – ajustando no calendário festivo um espaço para a manifestação cultural dos povos de Terreiro que em sua jornada de “reXistência” foi duplamente atacado pelo citado ”líder” e pela instituição majoritária que deveria defender a constituição em seu capítulo 5°.

Certo de sua sensibilidade com tal fato assinamos.

COMABI.

Em 20 de maio de 2022.

O Estado do Rio de Janeiro tem observado diversos avanços no combate à intolerância religiosa, dentre eles a criação  da Comissão Parlamentar de Inquérito Contra a Intolerância Religiosa, criada em maio de 2021. O relator da CPI da Intolerância Religiosa, na Assembleia Legislativa do Rio, deputado Átila Nunes (PSD) preparou uma representação ao Ministério Público contra o pastor Felippe Valadão e contra o prefeito de Itaboraí e também apresentou denúncia pessoalmente à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI,  pela promoção ao ódio religioso em evento patrocinado com dinheiro público. 

Além destas representações legais, o deputado Átila Nunes afirmou que  “os terreiros de Itaboraí precisam de segurança”. Vou pedir ao governador para reforçar o policiamento na região, considerando as ameaças feitas pelo autointitulado pastor Felippe Valadão numa festa patrocinada pela prefeitura contra os religiosos da Umbanda e do Candomblé”.

Racismo religioso

A socióloga Carolina Rocha aponta, em artigo, que: “Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’”. 

De acordo com a abordagem de Carolina Rocha, o caso de Itaboraí pode ser classificado ainda como racismo religioso. “O termo ‘racismo religioso’ tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. […] Quem defende o termo argumenta que, no caso das violências que atingem as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear é o racismo. Nesse caso, parte-se do entendimento de que o objeto do racismo não é uma pessoa em particular, mas certa forma de existir. Um racismo que está, portanto, incidindo além do genótipo ou do fenótipo, mas na própria cultura (tradições de origem negro-africana). […] O que a maioria desses autores ressalta é que existe um amplo histórico de perseguição à cultura afro-brasileira no Brasil, do período colonial até os dias atuais”. 

Segundo o professor de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto e do Ibmec-BH Alexandre Bahia, ouvido pelo Bereia, o pastor Felippe Valadão pode ter praticado o crime de discriminação religiosa, de acordo com os dispositivos da Lei nº 7.716  – Art. 1º:  “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Ainda seria enquadrado no  “Art. 20: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, ao afirmar que os centros de Umbanda seriam fechados na cidade e chamando de “endemoniados” os praticantes de religiões de matriz africana.

Além disso, segundo o professor Bahia, o pastor parece atentar contra os princípios da laicidade estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 que assegura liberdade de crença aos cidadãos – “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alexandre Bahia acrescenta que a liberdade de crença  “é inviolável (…) sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 

O professor de Direito orienta que, ao relacionar o fechamento dos centros de Umbanda e a  chegada de um tempo em que “aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou”, Felippe Valadão, aparentemente, tenta estabelecer uma ligação entre as religiões de matriz africana e uma suposta corrupção política. 

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Bereia classifica as notícias que afirmam que o pastor Felippe Valadão praticou intolerância religiosa em discurso durante show em Itaboraí (RJ) como verdadeiras. Os registros em vídeo da fala do pastor correspondem ao conteúdo reproduzido nas matérias que noticiaram o episódio e os especialistas consultados pelo Bereia confirmam que o tom do discurso de Valadão é marcado pelo que, social e juridicamente, é qualificado como intolerância e violência com motivação religiosa.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/20/pastor-felippe-valadao-ataca-religioes-afro-em-evento-oficial-de-itaborai.ghtml Acesso em: 23 MAI 2022

UOL. https://www.youtube.com/watch?v=MYG5eRk755k Acesso em: 23 MAI 2022

Instagram.

https://www.instagram.com/p/CdyVP_NgLjd/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://www.instagram.com/p/Cd584EzgwIi/ Acesso em: 23 MAI 2022

Religião e Poder.

https://religiaoepoder.org.br/artigo/racismo-religioso/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://religiaoepoder.org.br/artigo/avancos-no-combate-a-intolerancia-religiosa-no-rio-de-janeiro/ Acesso em: 23 MAI 2022

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm Acesso em: 23 MAI 2022

Governo Federal.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm  Acesso em: 23 MAI 2022

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm Acesso em: 23 MAI 2022O Dia https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2022/05/6405654-religiosos-denunciam-pastor-felippe-valadao-apos-incitacao-de-odio-contra-religioes-africanas-em-evento-de-itaborai.html Acesso em: 23 MAI 2022

Foto de capa: frame de vídeo do canal UOL no YouTube

Tamanho da arrogância

No início de julho, um fiscal da Vigilância Sanitária exigiu que um casal do Rio seguisse os protocolos de prevenção à Covid-19. Disse “Cidadão…”. A mulher reagiu: “Cidadão não, engenheiro civil, melhor do que você!” E se recusaram a adotar os procedimentos exigidos.

A arrogante senhora foi demitida, no dia seguinte, da empresa na qual trabalhava. Se o fiscal Flávio Graça, que ali cumpria o seu dever, retrucasse no mesmo tom, diria com autoridade que é formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, doutorado pela Universidade Federal Rural do RJ, coordenador de cursos de pós-graduação e superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da Prefeitura do Rio.

Poucos dias depois, em Santos (SP), o desembargador Eduardo Almeida Prado Siqueira foi multado por caminhar na praia sem máscara, contrariando decreto da prefeitura. Chamou o guarda municipal de “analfabeto”, ligou para o secretário de segurança do município para intimidar o responsável pela multa, rasgou-a e jogou-a no chão.

Em Catalão (GO), no final de junho, um comerciante de 76 anos foi agredido ao alertar um cliente da exigência de usar máscara na loja. Fraturou o fêmur e ficará seis meses em cadeira de rodas.

Em abril, em Araucária (PR), um homem foi impedido pelo segurança de entrar sem máscara no supermercado. Discutiram e houve o disparo de um tiro, que matou uma funcionária do estabelecimento.

Essa arrogância entranhada em muitos brasileiros tem raízes históricas. Foram 380 anos de escravatura em nosso país, durante os quais os brancos tratavam os negros com um desrespeito que jamais repetem ao lidar com seus animais de estimação. E, hoje, temos um presidente da República que viola todos os protocolos de prevenção sanitária, dando péssimo exemplo à nação.

Entre os vários sintomas do complexo de superioridade, segundo o psicólogo Alfred Adler, criador da Psicologia do Desenvolvimento Individual, manifestam-se o autoconvencimento, a atitude de considerar os outros inferiores e apontar defeitos, a inveja, a busca de reconhecimento, a excessiva preocupação com a opinião alheia, a falsa autossegurança.

“Educação vem do berço”, dizia minha avó. Uma criança que dá ordens à faxineira, humilha a cozinheira por não gostar de uma comida, desrespeita a professora, está fadada a ser infeliz e fazer os outros infelizes. Porque todo prepotente é amargo, irascível, preconceituoso.

Uma senhora branca saía do supermercado em Brasília (DF) e, ao avistar um negro, pediu que ele empurrasse o carrinho de compras até o estacionamento. Ele aquiesceu. Colocado tudo no porta-malas, ela lhe estendeu uma gorjeta. Ele rejeitou com um sorriso: “Agradeço, senhora. Fiz por gentileza.” Aconteceu com Vicentinho, deputado federal (PT-SP).

Quando eu me encontrava na Inglaterra, em 1987, um sobrinho da rainha Elizabeth II foi parado pela polícia rodoviária ao dirigir em alta velocidade. “Sabe com quem você está falando?”, disse ao guarda. “Quem você pensa que é?”, retrucou o policial. Por não trazer carteira de habilitação, foi multado, e o carro, apreendido. Mais tarde, o juiz exigiu que ele pedisse desculpas ao guarda.

Para Jesus, poder é servir: “O maior seja como o mais novo, e quem governa, como aquele que serve” (Lucas 22,24). Mas estamos longe de nos impregnar dessa cultura. Em um país com abissais desigualdades sociais, os privilegiados tendem a se considerar muito superiores aos marginalizados. As pessoas não importam. Importam os bens materiais que as emolduram.

Em 2007, o violinista Joshua Bell deu um concerto no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram, no mínimo, 100 dólares por ingresso. Dias depois, o jornal Washington Post decidiu testar a cultura artística do público. Levou o violinista para a estação de metrô da capital americana. Durante 45 minutos, ele tocou Bach, Schubert, Ponce e Massenet.

Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino. Porém, a mãe o arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se distanciava.

Durante todo o tempo do concerto, apenas sete pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte jogaram dinheiro sem deter o passo. Ao todo, 32 dólares e 17 centavos a seus pés. Quando cessou a música, ninguém aplaudiu.

Bell é considerado um dos melhores violinistas do mundo. Mas nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado, ele ali era um “produto” colocado na prateleira errada. Como se o fato de estar em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.

Como disse Molière, “devemos olhar demoradamente para nós próprios antes de pensar em julgar os outros.”

Foto de Capa: TV Globo/Reprodução