Não é possível afirmar que contrato milionário da Secretaria de Educação do Rio, com instituto privado, envolva projeto evangélico

O Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) gerou polêmica ao denunciar a contratação de um instituto privado para desenvolver um projeto com viés religioso na rede estadual de ensino. De acordo com o sindicato, a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Seeduc) implementaria um projeto de matriz evangélica ao custo de R$1,45 milhão.

Após a crítica, encampada por figuras públicas como a deputada estadual Martha Rocha (PDT-RJ) e o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), a Seeduc reagiu à acusação e publicou uma nota de repúdio contra o sindicato. O Sepe-RJ excluiu as publicações “até o recebimento de novas informações”. Bereia recebeu indicação de checagem.

Imagem: reprodução/Instagram

Acusações do Sindicato e reação da Secretaria de Educação do Rio

De acordo com a publicação original do Sepe-RJ, além do desperdício de dinheiro público, “a iniciativa afronta os princípios da laicidade, com a introdução de conteúdos oriundos do pensamento religioso único”. A postagem foi compartilhada em redes sociais como Instagram e X (antigo Twitter), mas a Secretaria de Educação reagiu.

Em resposta às críticas, a Seeduc publicou uma nota de repúdio, em que rebate as acusações do Sepe-RJ. De acordo com a pasta, “é falsa a informação sobre a contratação do Instituto Anjos Maura de Oliveira para a implantação de projeto que visa a educação amorosa dos estudantes da rede”.

A Secretaria afirma, ainda, que “o contrato está inserido no programa Nota Zero para o Abuso, para a conscientização e o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. A ação faz parte da campanha nacional ‘Maio Laranja’”.

Imagem: reprodução/Portal Seeduc-RJ

Exclusão das publicações e explicações por parte do Sepe

Diante da reação da Seeduc, o sindicato acabou apagando as publicações que fez sobre o caso. Em nota, o Sepe-RJ disse que “se equivocou ao citar a vinculação entre os dois projetos (o do Instituto Anjos Maura de Oliveira e o projeto ‘Namoro Blindado’)” e, por isso, “resolveu excluir a postagem até o recebimento de novas informações”. “Namoro Blindado nas Escolas” é um projeto liderado pelo casal evangélico Cristiane e Renato Cardoso, líderes da Igreja Universal do Reino de Deus.

Embora tenha se retratado, o sindicato dos servidores da rede estadual de ensino afirmou manter a crítica aos gastos com uma instituição privada para a realização de um programa de conscientização. A nota diz, ainda, que o sindicato continuará sua atuação de fiscalização e zelo pela garantia da valorização da educação estadual fluminense.

Imagem: reprodução/Instagram

Contrato entre Seeduc e Instituto Anjos Maura de Oliveira

A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, por meio da Subsecretaria de Planejamento e Ações Estratégicas, assinou um contrato no valor de R$1,45 milhão com o Instituto Anjos Maura de Oliveira, para o treinamento de profissionais atuantes nas 1.233 escolas da Rede Estadual de Ensino. 

O acordo de prestação de serviços foi firmado sem um processo licitatório, formato previsto em lei, mas que deve ser acionado em casos específicos de urgência ou interesse público, com respeito a um protocolo específico. O documento da Secretaria de Educação do Estado do Rio, assinado em 13 de maio último, apresenta como objetivo a promoção de ações para o combate e prevenção ao “abuso sexual infantil, pedofilia, ciberpedofilia e exploração sexual infantil”, por meio de “palestras com ênfase nas técnicas de ‘Escuta Especializada’ e ‘Aprender para se Defender’.

Além das equipes técnico-pedagógicas, os treinamentos também devem alcançar estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, da modalidade Normal, ou seja, que se tornarão, em breve, profissionais de educação.  

Imagem: reprodução/Compras Públicas

Além do posicionamento do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), os deputados estaduais Delegada Martha Rocha (PDT-RJ) e Carlos Minc (PSB-RJ) questionaram a ausência de licitação no processo de contratação e da comprovação de especialização do Instituto Anjos. 

Minc afirmou, em publicação em seu perfil no X (antigo Twitter), que irá acionar o Tribunal de Contas do Estado (TCE), enquanto Rocha solicitou ao Ministério Público a abertura de um inquérito civil e apontou o vínculo evangélico do instituto em um vídeo publicado em seu perfil no Instagram.

Imagem: reprodução/Instagram

Instituto Anjos Maura de Oliveira

O Instituto Anjos Maura de Oliveira é uma associação privada, registrada em 2021, que tem como atividade principal atividades de associações de defesa de direitos sociais. A organização não tem um site oficial e as informações sobre os projetos desenvolvidos são divulgadas no perfil da presidente do instituto no Instagram, a escritora e educadora Maura de Oliveira.

Oliveira lançou seu primeiro livro em 2007, uma autobiografia, que conta sua trajetória, de criança em situação de rua, os abusos sofridos em uma casa de família para onde foi levada para trabalhar ainda criança até a superação dos traumas pessoais.  À época, Maura de Oliveira fundou a Organização Não Governamental (ONG) Life. Mesmo antes do Instituto Anjos, a educadora já ministrava palestras pelo Brasil em parcerias com órgãos públicos e outras instituições. Em fevereiro de 2014, ela ganhou destaque quando foi entrevistada pelo Programa do Jô [Soares], na Rede Globo de TV.

No ano de criação do Instituto Anjos, foi sancionada a Lei Estadual 9.234/21, conhecida como Lei Maura de Oliveira, que determina a obrigatoriedade de afixação de cartazes ou letreiros digitais de combate a pedofilia e ciberpedofilia em escolas da rede pública e privada, unidades de assistência social, transportes coletivos e escolares, motéis, hotéis, restaurantes, clubes sociais, associações recreativas ou desportivas e outros locais de uso coletivo.

Dentre os programas oferecidos pelo Instituto Anjos, como descrito no contrato firmado com a Seeduc-RJ, estão as técnicas de Aprender para se Defender e Escuta Especializada, aplicada pelo instrutor do instituto Emerson Brant, inspetor que atua na Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Dcav). Brant também é psicólogo porém teve o registro cassado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).

Imagem: reprodução Jornal do CRP-RJ

Bereia não conseguiu contato direto com o Instituto Anjos Maura de Oliveira nem conseguiu acesso a fontes sobre a ONG. O que foi acessível para esta checagem foram o perfil no Instagram de Maura Oliveira (@anjosmauradeoliveira) e uma série de vídeos e de registros em sites sobre as palestras, cursos e entrevistas da educadora. Nenhum destes materiais oferece marcas de identidade religiosa na atividade de Maura de Oliveira e do Instituto Anjos. Também não é possível identificar, por estas fontes, a metodologia da educação “para a conscientização e o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes”.

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Bereia considera o conteúdo checado como inconclusivo. Embora o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Sepe-RJ) tenha retirado a publicação acusatória das redes, não é possível afirmar que o programa contratado pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ) se utiliza ou não de apologia cristã em suas atividades. 

É fato, reconhecido pelo próprio Sepe-RJ, que o programa objeto da contratação não mantém correlação com o programa “Namoro Blindado nas Escolas”, este sim, de conhecido cunho evangélico. O contrato com o Instituto Anjos Maura de Oliveira, entretanto, é verdadeiro, assim como o valor reportado: R$1,45 milhão. O que tem sido questionada, no âmbito da Assembleia Legislativa, é a ausência de licitação diante de um valor tão significativo e do objeto que não representa urgência.

O conteúdo que circulou em redes sociais nas últimas semanas, produzido a partir da acusação do Sepe-RJ, contém alguma substância informativa, mas não apresenta todos os elementos para serem classificados como verdadeiros. Mais do que isso, apresenta alegações desmentidas pela Seeduc, fato reconhecido, em nota, pelo sindicato.

A possibilidade de efetivação de um discurso religioso – nas escolas fluminenses – viabilizado com verba pública, porém, não se esgota com a inexistência de vínculo com o programa citado pelo sindicato.

Referências de checagem:

Portal da Transparência
https://sites.google.com/educa.rj.gov.br/portaldatransparencia/in%C3%ADcio/licita%C3%A7%C3%B5es-e-contratos?authuser=0 Acesso em: 24 mai 2024

Sepe-RJ
https://seperj.org.br/seeduc-quer-implementar-projeto-de-matriz-evangelica-nas-escolas-ao-custo-de-r-1455-milhao/ Acesso em: 24 mai 2024

https://seperj.org.br/nota-do-sepe-sobre-a-retirada-de-publicacao-a-respeito-de-convenio-da-seeduc-com-o-projeto-anjos/ Acesso em: 24 mai 2024

Diário do Rio https://diariodorio.com/sindicato-diz-que-secretaria-estadual-de-educacao-contratou-projeto-evangelico-para-as-escolas-no-valor-de-r-1455-milhao/ Acesso em: 24 mai 2024

Namoro Blindado
https://www.namoroblindado.com/escolas/ Acesso em: 24 mai 2024

Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro
https://www.seeduc.rj.gov.br/not%C3%ADcias Acesso em: 24 mai 2024

Instagram
https://www.instagram.com/anjosmauradeoliveira/ Acesso em: 24 mai 2024

https://www.instagram.com/p/C7MhxY3OEVN/ Acesso em: 25 mai 2024

https://www.instagram.com/p/C7UfixUsmvV/ Acesso em: 25 mai 2024

Lei Estadual 9.234/21 – RJ
https://leisestaduais.com.br/rj/lei-ordinaria-n-9234-2021-rio-de-janeiro-dispoe-sobre-a-obrigatoriedade-de-afixacao-de-cartaz-informativo-de-combate-ao-abuso-e-a-exploracao-sexual-de-criancas-e-adolescentes-no-ambito-do-estado-do-rio-de-janeiro-e-cria-espaco-de-acolhimento-a-vitimas-e-formacao-de-profissionais Acesso em: 25 mai 2024

Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
https://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/50343 Acesso em: 25 mai 2024

Sistema Integrado de Gestão de Aquisições – Rio de Janeiro
https://www.compras.rj.gov.br/Contrato/listarArquivosAnexos.action?idContrato=113666 Acesso em: 25 mai 2024

https://arquivossiga.proderj.rj.gov.br/siga_imagens//documentos/113666/0/CONTRATO%20ANJOS.pdf Acesso em: 25 mai 2024

https://arquivossiga.proderj.rj.gov.br/siga_imagens//documentos/113666/0/NE%20ANJOS.pdf Acesso em: 25 mai 2024

https://arquivossiga.proderj.rj.gov.br/siga_imagens//documentos/113666/0/CONTRATO%20ANJOS.pdf Acesso em: 25 mai 2024

https://arquivossiga.proderj.rj.gov.br/siga_imagens//documentos/113666/0/NE%20ANJOS.pdf Acesso em: 25 mai 2024

https://arquivossiga.proderj.rj.gov.br/siga_imagens//documentos/113666/0/SEI_74439396_Contrato_16.pdf Acesso em: 25 mai 2024

Portal Balneário Camboriú
https://www.bc.sc.gov.br/arquivos/conteudo_downloads/AS4KX5MK.pdf Acesso em: 25 mai 2024

Cisama
https://cisama.sc.gov.br/assets/uploads/3d5e8-projeto-anjos-na-escola-v03.02-.pdf Acesso em: 25 mai 2024

O Dia
https://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-21/laudos-psicologicos-com-falhas-levam-homem-a-ser-preso-e-torturado.html Acesso em: 25 mai 2024

https://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-23/investigacoes-sobre-abuso-sexual-infantil-separam-pais-e-filhos.html Acesso em: 25 mai 2024

X (Twitter)
https://x.com/minc_rj/status/1793056747344527530 Acesso em: 25 mai 2024

Jusbrasil
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/dispensa-de-licitacao-na-nova-lei-de-licitacoes-e-contratos-administrativos-lei-n-14133-2021/1193733849 Acesso em: 27 mai 2024

Globo
https://globoplay.globo.com/v/1576216/ Acesso em: 27 mai 2024

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Foto de capa: Pexels/Dids

Pastor Felippe Valadão promove intolerância religiosa em evento público

Circulou em várias mídias a notícia de que o pastor da Igreja Batista Lagoinha Felippe Valadão atacou religiões de matriz africana em um evento oficial promovido pela Prefeitura de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, em 19 de maio passado. O prefeito da cidade é Marcelo Delaroli, filiado ao Partido Liberal (PL) e membro da 1ª Igreja Batista.

Imagem: reprodução do G1

O município comemora o aniversário de 189 anos de emancipação político-administrativa com uma série de shows,  na qual se apresentaram artistas gospel. Segundo os relatos, no intervalo de uma das apresentações , Felippe Valadão subiu ao palco e discursou: 

Queira o diabo ou não, você sabe o que fizeram aqui de ontem para hoje? O pessoal acordou aqui e de ontem para hoje tinham quatro despachos aqui na frente do palco!

Avisa aí pra esses endemoniados de Itaboraí, o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!!

E ainda digo mais: prepara para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade! Eu declaro, vem um tempo aí ó, Deus vai começar a salvar esses pais de santo que tem aqui na cidade.

Você vai ver coisas que você nunca viu na vida. Chegou o tempo Itaboraí! Aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou! Eu vou repetir: o tempo de bagunça e roubalheira nessa cidade acabou!

Repúdio e medidas legais 

No dia seguinte, a Comissão de Matrizes Afro-Brasileiras de Itaboraí (Comabi), publicou nota de repúdio ao discurso do pastor e exigiu retratação pública do prefeito, responsável pelo evento.

NOTA DE REPÚDIO

Ao Ilmo Sr. Prefeito de Itaboraí Marcelo Delarolli.

Itaboraí, 20 de maio de 2022.

A Comissão de Povos Tradicionais de Terreiros de Itaboraí, COMABI, vem por meio desta nota, repudiar as infelizes palavras do pastor Felippe Valadão na noite desta quinta-feira, dia 19 de maio de 2022, por ocasião da abertura das festividades em comemoração aos 189 anos do Município de Itaboraí.

Em sua fala, o pastor agride de maneira vil, desrespeitosa e ameaçadora a comunidade religiosa do Candomblé e da Umbanda desta cidade que tem sancionada a lei 2603/2016 que Institui o DIA MUNICIPAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA OS POVOS TRADICIONAIS DE MATRIZES AFRICANAS no dia 24 de Julho, que no então, não corrobora com o acontecido na Cidade no citado evento.

Queremos antes de tudo, questionar o motivo de uma manifestação festiva, popular e laica, ter em sua programação, discursos de cunho religioso, quando na verdade, se houve a intenção de manifestar alguma religiosidade, haveria de ter representantes de todas as matrizes, e não tão somente evangélicas por não representar a diversidade e a pluralidade dos cidadãos e cidadãs do município 

O Pastor começa chamando-nos de ‘ENDEMONIADOS’, e que o tempo da bagunça religiosa acabou na cidade.

Que se pode matar galinha, fazer o que quiser os terreiros serão fechados e os ‘Pais e Mães de santo’ serão salvos pelo ‘deus’ que ele professa. Sim, “deus” com letra minúscula, porque o Deus com maiúsculo que conhecemos não compactua com sua megalomania, loucura e arrogância.

Perguntamos; com qual autoridade, seja ela política ou religiosa esta insana figura foi outorgada, para desferir tamanhas agressões contra uma comunidade que vive a fazer o bem, cuidando das pessoas e contribuir com sua comunidade, onde muitas das vezes o poder público não a alcança.

Desta forma, exigimos urgente retratação pública do Sr. prefeito, organizador do evento, para que no poder de suas atribuições, venha a restaurar, a ordem, igualdade, laicidade e o respeito a todo o povo religioso de Itaboraí, aviltado por esta figura desequilibrada, que certamente irá responder nos autos por sua infração e crime de intolerância religiosa, como confere a legislação brasileira. O Brasil tem normas jurídicas que visam punir a intolerância religiosa.

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

Exigimos aqui que seja feito um T.A.C – Termo de Ajuste de condutas – ajustando no calendário festivo um espaço para a manifestação cultural dos povos de Terreiro que em sua jornada de “reXistência” foi duplamente atacado pelo citado ”líder” e pela instituição majoritária que deveria defender a constituição em seu capítulo 5°.

Certo de sua sensibilidade com tal fato assinamos.

COMABI.

Em 20 de maio de 2022.

O Estado do Rio de Janeiro tem observado diversos avanços no combate à intolerância religiosa, dentre eles a criação  da Comissão Parlamentar de Inquérito Contra a Intolerância Religiosa, criada em maio de 2021. O relator da CPI da Intolerância Religiosa, na Assembleia Legislativa do Rio, deputado Átila Nunes (PSD) preparou uma representação ao Ministério Público contra o pastor Felippe Valadão e contra o prefeito de Itaboraí e também apresentou denúncia pessoalmente à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI,  pela promoção ao ódio religioso em evento patrocinado com dinheiro público. 

Além destas representações legais, o deputado Átila Nunes afirmou que  “os terreiros de Itaboraí precisam de segurança”. Vou pedir ao governador para reforçar o policiamento na região, considerando as ameaças feitas pelo autointitulado pastor Felippe Valadão numa festa patrocinada pela prefeitura contra os religiosos da Umbanda e do Candomblé”.

Racismo religioso

A socióloga Carolina Rocha aponta, em artigo, que: “Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’”. 

De acordo com a abordagem de Carolina Rocha, o caso de Itaboraí pode ser classificado ainda como racismo religioso. “O termo ‘racismo religioso’ tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. […] Quem defende o termo argumenta que, no caso das violências que atingem as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear é o racismo. Nesse caso, parte-se do entendimento de que o objeto do racismo não é uma pessoa em particular, mas certa forma de existir. Um racismo que está, portanto, incidindo além do genótipo ou do fenótipo, mas na própria cultura (tradições de origem negro-africana). […] O que a maioria desses autores ressalta é que existe um amplo histórico de perseguição à cultura afro-brasileira no Brasil, do período colonial até os dias atuais”. 

Segundo o professor de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto e do Ibmec-BH Alexandre Bahia, ouvido pelo Bereia, o pastor Felippe Valadão pode ter praticado o crime de discriminação religiosa, de acordo com os dispositivos da Lei nº 7.716  – Art. 1º:  “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Ainda seria enquadrado no  “Art. 20: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, ao afirmar que os centros de Umbanda seriam fechados na cidade e chamando de “endemoniados” os praticantes de religiões de matriz africana.

Além disso, segundo o professor Bahia, o pastor parece atentar contra os princípios da laicidade estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 que assegura liberdade de crença aos cidadãos – “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alexandre Bahia acrescenta que a liberdade de crença  “é inviolável (…) sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 

O professor de Direito orienta que, ao relacionar o fechamento dos centros de Umbanda e a  chegada de um tempo em que “aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou”, Felippe Valadão, aparentemente, tenta estabelecer uma ligação entre as religiões de matriz africana e uma suposta corrupção política. 

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Bereia classifica as notícias que afirmam que o pastor Felippe Valadão praticou intolerância religiosa em discurso durante show em Itaboraí (RJ) como verdadeiras. Os registros em vídeo da fala do pastor correspondem ao conteúdo reproduzido nas matérias que noticiaram o episódio e os especialistas consultados pelo Bereia confirmam que o tom do discurso de Valadão é marcado pelo que, social e juridicamente, é qualificado como intolerância e violência com motivação religiosa.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/20/pastor-felippe-valadao-ataca-religioes-afro-em-evento-oficial-de-itaborai.ghtml Acesso em: 23 MAI 2022

UOL. https://www.youtube.com/watch?v=MYG5eRk755k Acesso em: 23 MAI 2022

Instagram.

https://www.instagram.com/p/CdyVP_NgLjd/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://www.instagram.com/p/Cd584EzgwIi/ Acesso em: 23 MAI 2022

Religião e Poder.

https://religiaoepoder.org.br/artigo/racismo-religioso/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://religiaoepoder.org.br/artigo/avancos-no-combate-a-intolerancia-religiosa-no-rio-de-janeiro/ Acesso em: 23 MAI 2022

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm Acesso em: 23 MAI 2022

Governo Federal.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm  Acesso em: 23 MAI 2022

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm Acesso em: 23 MAI 2022O Dia https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2022/05/6405654-religiosos-denunciam-pastor-felippe-valadao-apos-incitacao-de-odio-contra-religioes-africanas-em-evento-de-itaborai.html Acesso em: 23 MAI 2022

Foto de capa: frame de vídeo do canal UOL no YouTube

Tamanho da arrogância

No início de julho, um fiscal da Vigilância Sanitária exigiu que um casal do Rio seguisse os protocolos de prevenção à Covid-19. Disse “Cidadão…”. A mulher reagiu: “Cidadão não, engenheiro civil, melhor do que você!” E se recusaram a adotar os procedimentos exigidos.

A arrogante senhora foi demitida, no dia seguinte, da empresa na qual trabalhava. Se o fiscal Flávio Graça, que ali cumpria o seu dever, retrucasse no mesmo tom, diria com autoridade que é formado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense, doutorado pela Universidade Federal Rural do RJ, coordenador de cursos de pós-graduação e superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da Prefeitura do Rio.

Poucos dias depois, em Santos (SP), o desembargador Eduardo Almeida Prado Siqueira foi multado por caminhar na praia sem máscara, contrariando decreto da prefeitura. Chamou o guarda municipal de “analfabeto”, ligou para o secretário de segurança do município para intimidar o responsável pela multa, rasgou-a e jogou-a no chão.

Em Catalão (GO), no final de junho, um comerciante de 76 anos foi agredido ao alertar um cliente da exigência de usar máscara na loja. Fraturou o fêmur e ficará seis meses em cadeira de rodas.

Em abril, em Araucária (PR), um homem foi impedido pelo segurança de entrar sem máscara no supermercado. Discutiram e houve o disparo de um tiro, que matou uma funcionária do estabelecimento.

Essa arrogância entranhada em muitos brasileiros tem raízes históricas. Foram 380 anos de escravatura em nosso país, durante os quais os brancos tratavam os negros com um desrespeito que jamais repetem ao lidar com seus animais de estimação. E, hoje, temos um presidente da República que viola todos os protocolos de prevenção sanitária, dando péssimo exemplo à nação.

Entre os vários sintomas do complexo de superioridade, segundo o psicólogo Alfred Adler, criador da Psicologia do Desenvolvimento Individual, manifestam-se o autoconvencimento, a atitude de considerar os outros inferiores e apontar defeitos, a inveja, a busca de reconhecimento, a excessiva preocupação com a opinião alheia, a falsa autossegurança.

“Educação vem do berço”, dizia minha avó. Uma criança que dá ordens à faxineira, humilha a cozinheira por não gostar de uma comida, desrespeita a professora, está fadada a ser infeliz e fazer os outros infelizes. Porque todo prepotente é amargo, irascível, preconceituoso.

Uma senhora branca saía do supermercado em Brasília (DF) e, ao avistar um negro, pediu que ele empurrasse o carrinho de compras até o estacionamento. Ele aquiesceu. Colocado tudo no porta-malas, ela lhe estendeu uma gorjeta. Ele rejeitou com um sorriso: “Agradeço, senhora. Fiz por gentileza.” Aconteceu com Vicentinho, deputado federal (PT-SP).

Quando eu me encontrava na Inglaterra, em 1987, um sobrinho da rainha Elizabeth II foi parado pela polícia rodoviária ao dirigir em alta velocidade. “Sabe com quem você está falando?”, disse ao guarda. “Quem você pensa que é?”, retrucou o policial. Por não trazer carteira de habilitação, foi multado, e o carro, apreendido. Mais tarde, o juiz exigiu que ele pedisse desculpas ao guarda.

Para Jesus, poder é servir: “O maior seja como o mais novo, e quem governa, como aquele que serve” (Lucas 22,24). Mas estamos longe de nos impregnar dessa cultura. Em um país com abissais desigualdades sociais, os privilegiados tendem a se considerar muito superiores aos marginalizados. As pessoas não importam. Importam os bens materiais que as emolduram.

Em 2007, o violinista Joshua Bell deu um concerto no Teatro de Boston, lotado de apreciadores que pagaram, no mínimo, 100 dólares por ingresso. Dias depois, o jornal Washington Post decidiu testar a cultura artística do público. Levou o violinista para a estação de metrô da capital americana. Durante 45 minutos, ele tocou Bach, Schubert, Ponce e Massenet.

Eram oito horas de uma manhã fria. Milhares de pessoas circulavam pelo metrô. Quatro minutos após iniciar o concerto subterrâneo, o músico viu cair a seus pés seu primeiro dólar, atirado por uma mulher que não parou. Quem mais lhe deu atenção foi um menino. Porém, a mãe o arrastou, embora ele mantivesse o rosto virado para o violinista enquanto se distanciava.

Durante todo o tempo do concerto, apenas sete pessoas pararam um instante para escutar. Cerca de vinte jogaram dinheiro sem deter o passo. Ao todo, 32 dólares e 17 centavos a seus pés. Quando cessou a música, ninguém aplaudiu.

Bell é considerado um dos melhores violinistas do mundo. Mas nessa sociedade neoliberal hegemonizada pelo paradigma do mercado, ele ali era um “produto” colocado na prateleira errada. Como se o fato de estar em local público tornasse sua música de menos qualidade. Estivesse um músico medíocre no palco do Teatro de Boston com certeza teria sido ovacionado.

Como disse Molière, “devemos olhar demoradamente para nós próprios antes de pensar em julgar os outros.”

Foto de Capa: TV Globo/Reprodução