Mosaico religioso mais plural desafia o avanço evangélico

Censo 2022 mostra queda do catolicismo, avanço mais lento dos evangélicos e crescimento de tradições afro e dos sem religião

*Matéria atualizada às 17:25h para correção de informações.

O Brasil continua movimentando as peças do seu mosaico religioso, como revela os dados preliminares do Censo Brasil de 2022 divulgados pelo IBGE, no último 6 de junho. O número de católicos segue em queda, os evangélicos ainda avançam, mas em ritmo mais lento do que se previa, e os brasileiros que se declaram sem religião continuam a crescer. Ao mesmo tempo, religiões de matriz africana registraram um salto expressivo de autodeclaração, um movimento com forte significado social e simbólico.

Para a editora-geral do Bereia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Magali Cunha, os números apontam para tendências de longa duração que agora se consolidam, com nuances importantes. “Precisaremos ainda discutir, estudar e refletir muito sobre esses dados, mas ao menos num primeiro olhar quatro aspectos chamam bastante a atenção”, analisou.

Tendências que se confirmam

O primeiro aspecto é a confirmação de tendências já observadas nos Censos anteriores: declínio do catolicismo, avanço dos evangélicos e crescimento dos sem religião.

Em 2022, 56,7% da população brasileira se declarou católica, uma queda em relação a 65,1% em 2010. Embora continue sendo a maior confissão religiosa do país, o catolicismo segue em declínio desde os anos 1950.

Os evangélicos chegaram a 26,9% da população (47,4 milhões de pessoas). É um crescimento expressivo, mas com um ritmo menor do que em décadas anteriores, frustrando previsões que indicavam que o segmento ultrapassaria rapidamente os 30% e superaria os católicos.

Já os brasileiros que se declaram sem religião somam 12% da população, grupo que cresce de forma constante desde os anos 2000 e que hoje se manifesta com mais liberdade, especialmente entre os jovens. “Há uma relação direta com o fim de uma pressão cultural para se declarar católico por tradição. Hoje, vemos um número expressivo de jovens, entre 15 e 29 anos, dizendo que não têm religião. Isso é muito significativo”, aponta Magali Cunha.

Afrorreligiosos ganham visibilidade

O segundo destaque é o crescimento da autodeclaração de pertencimento às religiões de matriz africana. No Censo 2022, esses grupos passaram de 0,3% para 1% da população, um aumento de mais de 200%.

Esse salto tem profundo significado simbólico e social. “Por muitas décadas era muito difícil que uma pessoa de religião de matriz africana manifestasse publicamente sua fé, por medo de intolerância, racismo religioso e perseguição”, afirma Magali Cunha.

Apesar de dados recentes apontarem o crescimento da intolerância religiosa no país, de acordo com a pesquisadora, políticas de afirmação da população negra, como as cotas raciais e o ensino da história da África nas escolas, contribuem para que as pessoas se sintam mais seguras e afirmem sua identidade religiosa. “Há um movimento crescente de afirmação tanto da cor quanto da fé. O aumento de 1% reflete isso.”

Crescimento evangélico desacelera

Entre os temas que mais chamaram atenção no debate público sobre os dados está a desaceleração no crescimento dos evangélicos, frustrando expectativas de alguns analistas. Embora tenham alcançado a marca de 26,9% da população brasileira, o ritmo de crescimento do segmento evangélico desacelerou em relação às décadas anteriores, contrariando expectativas de que o segmento se tornaria maioria no país em pouco tempo

“Houve uma superestimativa do crescimento evangélico, sem levar em conta a realidade complexa do campo religioso”, alerta Magali Cunha.

A “goleada” do crescimento evangélico – como se referiu o demógrafo José Eustáquio Alves em entrevista à Folha de S.Paulo – foi observada apenas no período entre os anos 1990 e 2000, quando o avanço chegou a 6,5% ao ano. A partir de 2010, no entanto, já era perceptível uma desaceleração, agora confirmada pelos dados mais recentes.

Segundo Cunha, vários fatores explicam o atual cenário, um deles é a própria fragmentação interna do campo evangélico, caracterizado por um forte denominacionalismo. “São grupos que ampliam seu número de templos e comunidades, mas com alto índice de divisão e instabilidade. Muitas igrejas novas se formam a partir de rupturas em comunidades já existentes, e nem todas se consolidam”, explica.

Dados recentes sobre registros em cartório de templos religiosos apontam para um aumento no número de igrejas evangélicas, mas isso não significa, necessariamente, um crescimento linear e sustentado da adesão. Muitas comunidades não chegam a se estabilizar, e o movimento de abertura e fechamento de igrejas é dinâmico e contínuo, segundo pesquisadores da Religião. O tema, inclusive, virou alvo de desinformação por parte da imprensa, conforme Bereia checou.

Outro elemento que pesa é o impacto da politização crescente nas igrejas evangélicas, especialmente após 2018, com a aliança explícita de lideranças do campo pentecostal e de parte do segmento tradicional com o então candidato Jair Bolsonaro. Segundo a diretora-executiva do ISER Ana Carolina Evangelista, essa politização foi marcada por campanhas intensas dentro dos templos e no ambiente digital, com uso sistemático de desinformação e pânico moral, fenômeno que, embora tenha mobilizado eleitores evangélicos, também gerou tensões internas e afastamento de fiéis. 

“Temos identificado, a partir de indícios em pesquisas qualitativas e observação empírica, que começa a existir uma espécie de desgaste de um tipo de cristianismo entre os próprios evangélicos”, afirma a diretora em entrevista a BBC Brasil.

Além do uso político dos templos evangélicos, com seu ápice nas eleições de 2022, “houve perseguição a membros com preferências políticas divergentes, o que provocou desligamento e esfriamento da relação de muitos com suas comunidades religiosas”, explica Magali Cunha.

Outro ponto que contribuiu para o desgaste da imagem das lideranças e comunidades religiosas é o frequente uso de grupos de WhatsApp de igrejas com o objetivo de mobilizar fiés para projetos políticos explícitos, além da flagrante circulação de desinformação como Bereia tem acompanhado.

Para a editora-geral do Bereia, o resultado do Censo mostra que o campo evangélico brasileiro permanece em expansão, mas enfrenta desafios estruturais e culturais que limitam o crescimento indefinido. “Não basta projetar crescimento linear com base em números. É preciso considerar as dinâmicas internas, os conflitos, as divisões e o impacto da politização. O Censo de 2022 nos lembra que números não falam sozinhos”, conclui.

Imagem de Capa: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Bereia participa de mesa-redonda sobre mitigação da desinformação

Como é possível enfrentar a desinformação, que provoca efeitos danosos à sociedade? Essa foi a tônica da mesa-redonda promovida pela Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência) realizada em 10 de dezembro e que teve a participação da editora-geral do Bereia Magali Cunha.

O debate fez parte da programação que marcou os cinco anos da organização e tratou do papel das associações de ciência, da checagem de fatos, da relação entre religião e ciência e da percepção pública de ciência.

Em sua apresentação, Magali Cunha destacou a importância do evento e lembrou que o Coletivo Bereia nasceu no contexto de uma pesquisa científica realizada no Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O estudo ‘Caminhos da desinformação’ foi o nosso ponto de partida e desde então temos a preocupação de sempre valorizar a pesquisa e ouvir especialistas, além de oferecer um diferencial em relação a outros projetos de checagem, que é dialogar com estudiosos em religião”.

A editora-geral explicou que o Bereia conta em sua equipe com especialistas nessa área e que busca ampliar o leque ao estreitar o contato com pesquisadores de ciências da religião, da sociologia da religião e da antropologia da religião. Há também a participação de pastores e pastoras, biblistas e pessoas que estão imersas no universo religioso, tanto no contexto cristão quanto em outros como Espiritismo e Islã, “que nos auxiliam a qualificar o conteúdo que é checado”.

Ela lembrou que o trabalho de fact-checking feito no coletivo inclui bibliografia científica e outros materiais que balizam aquilo que é analisado para além dos fatos e do caráter meramente informativo.

Preconceito e sensacionalismo

Outra preocupação da pesquisadora se refere ao preconceito e ao sensacionalismo em torno do protagonismo de grupos religiosos no momento atual, especialmente os evangélicos. “Infelizmente isso ocorre dentro do próprio ambiente acadêmico, e representa um grande desafio a ser superado”. Magali Cunha argumentou que há muita precipitação no trato de alguns temas, e dentro da academia não se valoriza o que é desenvolvido cientificamente sobre religião.

A editora-geral do Bereia destacou ainda que, além dos ambientes digitais religiosos, o trabalho do coletivo alcança a grande mídia, identificando seus equívocos, incorreções, exageros e o credenciamento de personagens do mundo religioso como se fossem porta-vozes da religião.

Mídia precisa conhecer mais sobre pluralidade religiosa, defende editora-geral do Bereia

Um dos grandes desafios da mídia é conhecer mais sobre a pluralidade religiosa que existe no país, compreender as particularidades de cada grupo, visando a uma divulgação mais adequada e correta. Ela não pode deixar de ser crítica, mas também ressaltar esses elementos que integram a vida cotidiana das pessoas. A opinião é da editora-geral do Bereia Magali Cunha, que foi entrevistada em 13 de março pelo Canal da Imprensa, revista eletrônica de crítica de mídia do curso de Jornalismo do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), campus Engenheiro Coelho.

Na conversa, que tratou da importância cultural da religião no Brasil e suas implicações na cobertura da imprensa de notícias sobre o tema, Magali explicou que as religiões dão sentido à vida de muitas pessoas. Segundo ela, há também o aspecto de resistência e sobrevivência, “como foi no período da escravidão, e também do ponto de vista indígena, a toda a opressão sofrida ao longo da história da colonização”.

De acordo com a pesquisadora, até hoje é possível observar “diversas experiências de periferias e de grupos excluídos socialmente que encontram na religião essa leitura e uma presença divina que marca a força, que marca a resistência”.

Magali Cunha destacou que a mídia tem um papel importante nas questões que envolvem o tema, até mesmo no sentido de enfrentar a intolerância religiosa, mas criticou a falta de preparo dos profissionais, a começar pela formação acadêmica oferecida a eles.

“Nós não temos nas escolas de jornalismo no Brasil suficiente formação para o jornalismo especializado [em religião]. Em várias áreas, dá-se muita ênfase em política, em economia, em cultura, mas na questão da religião é praticamente zero”, ressaltou a editora-geral de Bereia.

Confira no site do Canal da Imprensa a íntegra da entrevista.

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Foto de capa: Warpmike/Pixabay

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