Vale sombrio do luto
A igreja precisa ser um espaço de acolhimento, de escuta, de consolo
Patrícia Regina Moreira Marques
Na história humana, o luto sempre foi um dos temas mais difíceis de serem abordados, ainda mais nesse tempo no qual milhões de vidas são ceifadas em decorrência da pandemia do coronavírus. É crucial o enfrentamento da morte. A dor se transforma em lamento, que resultam em pesares, tristezas, depressão, ansiedade e muitas outras situações que afetam famílas e diversos grupos na sociedade.
Famílias choram a perda de seus entes queridos vivenciando uma dura realidade jamais pensada. Não tiveram tempo de se despedir de seus queridos, ou até mesmo um funeral não foi possível de ser realizado. Chorar com as pessoas é algo que realizamos nessas situações, e nesse momento, tentamos chorar virtualmente. Ainda que sintamos a dor da perda, uma sensação de vazio, frieza, impotência, nos acomete imensamente.
O sentimento de um luto coletivo nos invade também quando somos sensibilizados com a dor de quem não conhecemos. Nesses momentos a dor do nosso próximo, mesmo que esse próximo esteja tão distante, passa a ser a nossa dor também. Nos meados da década de 1980, um grupo evangélico entoava um cântico formidável. Uma das estrofes reforçava a empatia: “… ame ao teu próximo como se fosse você, como se a dor que ele sente doesse mais em você…”
Provavelmente nessa época as dores eram bem diferentes das atuais, mas já haviam sinalizações de dificuldades e necessidades para que a igreja passasse a sair de si mesma e olhasse para a necessidade ao seu redor. Uma tentativa de enfatizar a prática das ações de Jesus: ajudar os necessitados, chorar com os que choram, levar amor e esperança; sinalizações do reino de Deus.
Igrejas e o luto na Pandemia
Importante lembrarmos que umas das ações da igreja é ser terapêutica (do grego, Therapeutikos que serve, que cuida). A igreja precisa ser um espaço de acolhimento, de escuta, de consolo. Um espaço que permita ao enlutado/a expresssar a sua dor. Essa dor pode estar atrelada ao sentimento de culpa pela decepção com Deus, pela raiva de Deus não ter interferido e salvar a pessoa querida.
Ser uma igreja terapêutica é um processo que necessita de empatia, de tempo, de dedicação e amor às pessoas. Ter acolhimento não só para os membros da igreja, mas para toda a comunidade que necessite. Ser uma comunidade terapêutica é também ter o conhecimento de que esse agrupamento é composto por pessoas que podem estar saudavéis ou doentes, mas que todos carecem da graça de Deus, assim nos afirma Josias Pereira, pastor com mais de meio século de experiencia pastoral e com formação em Psicologia, em seu texto “ A função terapêutica na comunidade cristã”.
Nesse sentido, entendemos que Deus nos ajuda a ajudarmos uns aos outros. No caso específico da pandemia do coronavírus, temos que aprender a sermos uma nova igreja, que realmente se preocupa com o ser humano, que deseja seguir o Cristo, amante das pessoas necessitadas, doentes, fragilizadas, marginalizadas, enlutadas.
As famílias que carregam a dor e os resultados da pandemia precisam ser cuidadas. A práxis desse cuidado é priorizar o encontro com essas pessoas e nesse diálogo construir novos saberes, para caminharem no meio da dor da ausência de quem partiu. Caminhar mesmo mediante ao luto, que inicialmente pode paralisar a (s) pessoa (s).
Felizmente algumas igrejas já sinalizam muitas ações concretas para intervirem em situações decorrentes da pandemia e de suas consequências. Não apenas oram, mas agem a favor daqueles e daquelas que sofrem. Mas há muitas coisas ainda para serem feitas. Outras igrejas precisam despertar pela necessidade atual e se encorajarem com as palavras de Jesus “… Tendem bom ânimo… eu venci o mundo, vocês também vencerão…”
Uma bom início, nesse tempo virtual, é aprendermos e exercitarmos a escuta. Assim podemos iniciar uma “ igreja terapêutica à distância”.
Escuta com Cristo
O Salmo 86:1 nos lembra a petição:
“Dá ouvidos, Senhor, à minha oração, e atende à voz das minhas súplicas.”
O versículo 7 afirma que Deus responde às nossas petições: “ No dia do perigo clamo a ti, porque tu me respondes.” Nesse mesmo sentido, encontramos a palavra do salmista no Salmo 120:1 “ Na minha angústia , clamei ao Senhor, e ele me ouviu.”
Escuta conosco
Esse tempo de distanciamento social, certamente nos ajuda a nos escutarmos e revermos tantas questões que desejamos mudar; o silêncio interior contribui positivamente nesse sentido. Encontrarmos desejos de mudanças talvez outrora já perdidos. O Evangelho de Mateus nos ensina: “ Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.” (cf Mateus 13:9)
Escuta com o outro
Ouvir com atenção requer sensibilidade e percepção do que a outra pessoa está a falar. Nos dias atuais, percebemos a necessidade que as pessoas têm de serem ouvidas. As mudanças atuais geraram um avanço positivo em nosso cotidiano, pois usufruirmos mais da tecnologia, que felizmente se tornou uma prática positiva para nosso exercício de ouvir as pessoas. Enquanto aguardamos nossos encontros presenciais, reaprendemos a ouvir. A escuta do outro tornou-se uma prática reaprendida. A Bíblia nos ensina que devemos estar pronto para ouvir (cf. Tiago 1:19).
A Igreja e os novos desafios
Enquanto escrevo esse artigo, me chega a notícia de índios da tribo Tremembé, ao norte do Brasil, que acometidos pelo coronavírus, não aceitam a ajuda “do homem branco”, ou quando aceitam com muita insistência de alguém próximo deles, acabam falecendo por uma intervenção tardia. Ou até mesmo os atendimentos são negligenciados. Suicídios ocorrem nas tribos indígenas por depressão e medo, e até mesmo impotência por parte da liderança da tribo. O que fazer quando situações como essas estão tão distantes de nossas mãos? A prática evangelical da oração nessas horas é uma saída que não apenas diminui nossa fraqueza e sentimento de impotência, mas que, conforme cremos, trabalha com a possibilidade da intervenção divina é possível, pois temos a esperança de que Deus nos ouve e que não deixará nossos irmãos à própria sorte. Ouço, nesse momento, um relato de uma igreja-irmã que inicia ajuda concreta a essa tribo. Confesso que choro silenciosamente agora…
Igrejas mercenárias e a Pandemia
Sabemos que algumas igrejas enfatizam um discurso triunfalista. Algumas até mesmo consideram o choro como sinônimo de fracasso ou falta de fé. Ações que estão muito longe dos valores do Reino de Deus. Infelizmente muitas pessoas se agarram a esse discurso triunfalista e acabam por adoecer. Atitudes inacreditáveis são realizadas por pseudopastores/as e líderes reconhecidos pela “comunidade” como homens e mulheres portadores da voz de Deus. Falsos profetas que, em nome de Deus, enriquecem até no momento em que seus membros estão fragilizados (ou melhor, principalmente em tais momentos). Para esses, o registro no livro do profeta Ezequiel 13, relata: “ Suas visões são falsas e suas adivinhações, mentira. Dizem ‘Palavra do Senhor’, quando o Senhor não os enviou; contudo, esperam que as suas palavras se cumpram. Acaso vocês não tiveram visões falsas e não pronunciaram adivinhações mentirosas quando disseram ‘Palavra do Senhor’, sendo que eu não falei?
A igreja e o vale sombrio
Quanto a nós, seguimos, no vale sombrio do luto, conhecendo novas maneiras de viver, nos recriando, aprendendo a ser igreja na pandemia e na pós-pandemia. Há muito caminho a ser percorrido. Estamos no início de tudo, mas não vamos parar. Se há dor no luto, também há o consolo. Assim como o salmista, afirmamos: “ Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo…’.
No vale sombrio, nosso querer se soma a tantos outros, e partimos para um exercício coletivo de escuta, de vozes que não soam sozinhas, de desejos e quereres que compartilham a esperança. Quem se sente sufocado por desaprender a ouvir, é convidado a participar. E assim, essa aprendizagem se torna mais real, mais forte, mais significativa. Nos encoraja a não desistimos.
Esse querer é refletido nas palavras da pastora Blanches de Paula:
Quero escutar as alegrias escondidas, as tristezas expostas, a esperança de outrora.
Quero escutar o esquecimento da vida, a lembrança do afago, a perseverança da lida.
Quero escutar a sensibilidade de alguém, a dureza do medo, o ombro em que posso reclinar minhas dores.
Quero escutar as despedidas impetuosas, a chegada do amigo, a alegria do encontro.
Quero escutar os passos do caminho, a solidão da estrada, alguém que está ao lado.
Quero escutar o silêncio que sufoca, as palavras nos gestos, a acolhida da minha história.
Quero escutar a voz divina , provoca dor…, liberta dor…
Quero escutar a mim mesma, me reconhecer, me escolher.
Quero escutar você, sua história, seus medos, suas coragens.
Quero escutar o diálogo, abrir a minha porta e cear com a Vida.
Entre lutas e lutos, sabemos que Deus conosco está!
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Patrícia Regina Moreira Marques é Pastora e Missionária da Junta Geral de Ministérios Globais, em Portugal.