Antipsicologia e o fenômeno da Psicologia Cristã no Brasil

*A reportagem foi atualizada em 4.out.2024 para incluir posicionamento do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC).

As relações entre Psicologia e Religião têm ganhado cada vez mais notoriedade. A presença crescente dessa temática nas redes sociais e em diversos ambientes, como igrejas e consultórios, reflete não apenas a busca por uma compreensão mais profunda da experiência humana, mas também um espaço de disputa.

A Psicologia, por vezes, é invocada como um aliado para justificar práticas religiosas, enquanto em outros contextos é vista como uma rival a ser combatida. Essa relação ambivalente, marcada por aproximações e distanciamentos, tem raízes históricas profundas, mas continua a suscitar discussões, promover desinformação e a apresentar novas abordagens, como é possível perceber nos espaços digitais.

Livro PsicoBaboseira

No último 27 de agosto, a editora Éden Publicações divulgou, em seu perfil no Instagram, uma ação promocional do livro “Psicobaboseira”. Em vídeo, a mensagem é clara: “você não precisa de terapia”. O autor Richard Ganz mostraria, no livro anunciado, um suposto “perigo de incorporar técnicas seculares” de aconselhamento, conforme descrição no site da editora.

No site da editora, o livro é apresentado por figuras do meio religioso, que comentam a obra. “O Dr. Ganz fez um excelente trabalho em mostrar o caminho ilusório das teorias humanistas e nos chamar de volta para o lugar de que nunca deveríamos ter saído: a Bíblia”, diz Larissa Ferraro, apresentada como coordenadora de Aconselhamento Bíblico em Fortaleza (CE).

A descrição feita pela própria editora é ainda mais clara: “À medida que o preconceito anticristão se torna cada vez mais difundido na psicologia secular, a igreja cristã deve olhar para a definitiva e verdadeira fonte de toda a cura: as Escrituras Sagradas”.

Imagem: reprodução/Instagram

Para o doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) Denis Barros de Carvalho, o livro não é uma novidade, mas um exemplo concreto do que ele chama de “antipsicologia religiosa”. De acordo com Carvalho, trata-se de “um amontoado de frases feitas, que desonestamente apela para uma suposta visão bíblica sobre aconselhamento como contraponto às Psicologias Seculares”.

O professor relembra que, na década de 1990, autores, como o pastor estadunidense Jay Adams, publicaram livros parecidos (como “Manual do Conselheiro Cristão”, 2006). Não por acaso, Adams é um dos comentam “Psicobaboseira”, no site da editora Éden, ao explicitar a clara a dicotomia entre “psicoterapia secular” e “revelações de Deus na Bíblia”. “Eu leio sandices assim desde meu tempo de graduação”, conta Carvalho.

Antipsicologia x Antipsicologia religiosa

No ramo da Psicologia, há uma vertente teórica – uma “escola”, por assim dizer – chamada de “Antipsicologia”. Nomes como Ian Parker, que é membro da sociedade de Psicologia britânica, e Georges Politzer, autor de “Crítica aos fundamentos da Psicologia”, constituem uma vertente que busca refletir sobre como a Psicologia é feita na prática e como os profissionais da área moldam comportamentos e diferentes modos de pensar.

Na “Antipsicologia religiosa” a que o professor Carvalho se refere, não há a mesma reflexão. Segundo o professor da UFPI, a prática é adotada por alguns religiosos evangélicos e católicos e consiste na adoção de técnicas da Psicologia para negá-la enquanto área do conhecimento e contrapô-la às crenças e práticas religiosas.

Mais do que o próprio livro, o anúncio promocional, em tempos de redes digitais, é bastante didático ao sugerir, sem rodeios, que o possível leitor “não precisa de terapia”, ou convidá-lo a “descobrir a verdade sobre a psicologia”.

Imagem: reprodução/Instagram

Um exemplo recente desta contraposição da Psicologia pela religião e de sua contraposição às práticas religiosas pode ser observado na entrevista do jogador de futebol Endrick – que atualmente joga pelo clube espanhol Real Madrid – à Revista Placar, em fevereiro de 2024. O jogador, hoje com 18 anos, tem se destacado por sua serenidade e nível de maturidade, mas, indagado sobre o papel dos psicólogos em sua carreira profissional, disse aos repórteres: “Meu psicólogo, primeiramente, é Deus. Eu não preciso abrir meu coração para mais ninguém”.

À época, a fala do jogador evangélico repercutiu nas redes digitais, e o blog Trivela, especializado em futebol, entrevistou psicólogos do esporte que comentaram as afirmações dele. Para o professor da pós-graduação de Medicina do Esporte na Faculdade Uniguaçu Rodrigo bravim, “a fala de Endrick pode incentivar que muitos jovens deixem de buscar ajuda profissional acreditando que são autossuficientes para resolver os próprios problemas ou buscando apenas um suporte religioso/espiritual que é, de inúmeras formas, diferente de um trabalho terapêutico profissional direcionado a cada transtorno ou doença de forma específica”.

Porém, o fenômeno que mescla o campo da psicologia e o campo religioso – mesmo que para afastá-los – não é produto do mundo massivamente conectado como se observa hoje. A doutora em Ciências da Religião Blanches de Paula explica que, até a Idade Média, as perguntas e inquietações humanas eram tratadas pela religião, e o surgimento das áreas que se pretendiam científicas originou relações diversas, com maior ou menor nível de diálogo e aceitação.

Embora não seja a regra em todos os casos, “o campo religioso cristão tem percebido o quanto isso tem contribuído com os processos de cuidado no mundo religioso”, explica a pesquisadora.

Para a psicóloga e doutora em Psicologia Social Rebecca Maciel há, pelo menos, dois polos na igreja evangélica, um de oposição e outro de aliança com a Psicologia. “Um lado coloca a Psicologia como um conhecimento maléfico, trazendo como referência o fato de Freud ser ateu e a Psicologia ser um campo sem moral. Outro lado quer que a Psicologia seja aliada da igreja, então vai manipular o conhecimento para entrar no que a igreja prega”.

Psicologia como aliada do Cristianismo

Rebecca Maciel destaca que o fenômeno da Psicologia Cristã é algo antigo, que já existia no Catolicismo. “O pesquisador e psicólogo da Religião Jakob A. van Belzen diz que é a tentativa da Psicologia se tornar serva da religião”.

O professor Denis Carvalho lembra que alguns psicólogos evangélicos e católicos estão envolvidos nessa empreitada. Segundo ele, no Brasil, essa perspectiva é representada pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, uma instituição antiga, que defendeu, na década de 1990, a terapia de reversão, conhecida como cura gay. “Isso forçou o Conselho Federal de Psicologia (CFP) a publicar a Resolução 01/99, que interditava o tratamento da homossexualidade aos psicólogos”, explica Carvalho.

Blanches de Paula pontua que a proposta de diálogo com uma ciência como a Psicologia leva pessoas a buscarem serviços oferecidos por “psicólogos cristãos”. “Muitas pessoas dentro de igrejas cristãs, mais especificamente evangélicas, procuram o que eles chamam de psicólogo cristão, por acreditar que por ser cristão, este profissional não tocará em alguns temas que talvez sejam mais tabus no Cristianismo, ou que terá uma compreensão mais ampla desses temas, a partir de um valor”. 

Caso Marisa Lobo e “cura gay”

De 2014 a 2017, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), o CFP e a psicóloga, teóloga e política evangélica Marisa Lobo protagonizaram um embate, em torno de um processo disciplinar ético e judicial. Ele emergiu por conta das declarações da psicóloga durante audiências públicas no Congresso Nacional acerca de tratamento para a homossexualidade de pacientes e da exposição do caso que a psicóloga promoveu  

O CRP-PR chegou a cassar o registro profissional de Marisa Lobo, em 2014, mas a psicóloga recorreu à Justiça com a alegação de desrespeito a dispositivos constitucionais, antes que o CFP julgasse a cassação, e com acusação ao organismo de perseguição à fé cristã. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal indeferiu o pedido dela e afirmou a legalidade dos procedimentos adotados pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR). O CFP, ao julgar o caso,  reformou a penalidade do órgão regional de cassação do exercício profissional para a penalidade de Censura Pública.

Imagem: Agência Câmara

Fenômeno da Psicologia Cristã

Para o professor Denis Carvalho a ‘Psicologia Cristã’ é uma tentativa de aproximação entre a fé cristã e a Psicologia enquanto ciência e prática, defendida por alguns psicólogos evangélicos e católicos. “É um intento fadado ao fracasso, mas representa uma tentativa de construir um saber e uma prática psicoterápicas, a partir de uma episteme e de uma ética supostamente cristãs”.  

Apesar de institucionalmente consolidada no Brasil, na visão do pesquisador da UFPI, ele reforça que a ‘Psicologia Cristã’ não é aceita por todos os psicólogos evangélicos. “Ninguém fala em uma Física Cristã, em uma Cardiologia Cristã. Da mesma forma, Psicologia Cristã não é ciência, é ideologia”.

O CFP não reconhece a “Psicologia Cristã” como uma das 12 especialidades validadas técnica e cientificamente, conforme a Resolução CFP 13/2007. Em 2023, o órgão publicou a Resolução CFP 7/2023, que estabelece normas sobre o caráter laico do exercício da Psicologia e reforça diretrizes já instituídas pelo Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP).  

Em relação ao que se convencionou chamar de Psicologia Cristã, Blanches de Paula é enfática: “Não existe uma Psicologia Cristã. Existe Psicologia que pode estudar os fenômenos religiosos. A Psicologia estuda o fenômeno humano como ser humano, esse ser humano religioso ou não”, conclui. 

Marisa lobo e narrativa de perseguição religiosa

Marisa Lobo publicou, em 28 de agosto deste ano, um vídeo em seu perfil no Instagram para comunicar sua participação em uma audiência com o Conselho Federal de Psicologia (CFP), que seria realizada em 30 de agosto passado. 

Imagem: reprodução/Instagram

Lobo, que também é, mais uma vez, candidata a vereadora em Curitiba, desta vez pelo PL (foi derrotada para diferentes cargos nos cinco pleitos anteriores, por partidos diferentes), publicou outros três vídeos sobre o caso. 

Imagem: reprodução/TSE

Segundo a psicóloga, a nova audiência julgará a cassação de seu registro profissional, e a medida seria resultado de uma iniciativa do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG).

O CFP não divulgou informações sobre o processo ou a audiência citada por Lobo, pois, seguindo as disposições legais, tais casos devem ser tratados em sigilo. Nas palavras da psicóloga, ela tem sofrido perseguição religiosa por se declarar cristã e a autarquia busca cassar seu registro porque outras pessoas se referem a ela como psicóloga cristã. Lobo afirmou ainda que seu trabalho abriu caminho para diálogos sobre saúde mental dentro das igrejas.

O uso da falsa noção de perseguição sistemática a cristãos no Brasil é temática recorrente em abordagens públicas de Marisa Lobo, também sobre outras situações, como Bereia já checou

CPPC envia nota de esclarecimento

Após a publicação desta reportagem, Bereia foi procurado pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC). A entidade enviou uma nota de esclarecimento na qual afirma não aceitar “a imputação discriminatória embutida no termo ‘cura gay’”, e defende que “o comportamento humano é passível de mudanças, dentro de seus limites”. O CPPC alega, ainda, que incentiva “o atendimento terapêutico, profissional e ético, sempre centrado na demanda da pessoa que busca ajuda, sem nenhum tipo de preconceito ou imposição”. 

Referências da checagem:

UOL

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/04/23/burnout-e-suicidio-assombram-igrejas-a-dor-silenciosa-de-padres-e-pastores.htm Acesso em: 10 set 2024

Editora Realize

https://editorarealize.com.br/editora/anais/desfazendo-genero/2021/TRABALHO_COMPLETO_EV168_MD_SA_ID_06122021123810.pdf Acesso em: 9 set 2024

Beer-laai-roi – “eu vi aquele que me vê”: relação entre mulheres evangélicas e seus processos psicoterápicos

https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/20845/2/Tese%20-%20Rebecca%20Ferreira%20Lobo%20Andrade%20Maciel%20-%202023%20-%20Completa.pdf Acesso em: 10 set 2024

Editora Éden

https://www.editoraeden.com.br/autores/richard-ganz/psicobaboseira?srsltid=AfmBOopRhuTJKqqfWeocP68qICI7OHZyuNO3-QqdzXdB0faTxG15wZmC Acesso em 30 ago 2024

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=E3Fxm8E5TKM Acesso em 2 set 2024

https://www.youtube.com/watch?v=_uJGnXQFmz4 Acesso em 2 set 2024

https://www.youtube.com/watch?v=7VwAXrTEnJA Acesso em 30 ago 2024

https://www.youtube.com/watch?v=xdV-DYheaV0 Acesso em 2 set 2024

Pleno News

https://pleno.news/brasil/cidades/marisa-lobo-pode-ter-registro-cassado-pelo-cfp-novamente.html Acesso em: 2 set 2024

https://pleno.news/brasil/marisa-lobo-relata-audiencia-sobre-a-cassacao-de-seu-registro.html Acesso em: 2 set 2024

GuiaMe

https://guiame.com.br/gospel/noticias/marisa-lobo-enfrenta-nova-ameaca-de-cassacao-do-registro-de-psicologa-perseguicao-religiosa Acesso em: 2 set 2024

O Globo

https://oglobo.globo.com/saude/especialistas-discutem-influencia-de-ciencia-religiao-na-psicologia-crista-20946077 Acesso em 2 set 2024

Conselho Regional de Psicologia do Paraná

https://crppr.org.br/stf-indefere-pedido-da-psicologa-marisa-lobo-e-confirma-a-legalidade-das-acoes-do-crp-pr/ Acesso em 2 set 2024

Instagram

https://www.instagram.com/reel/C_MJb_UuJ8T/?igsh=MXY1bHpxdzc2bXJrcw%3D%3D Acesso em 28 ago 2024

Instituto Melodia

https://institutomelodia.com.br/vendas/psicanalise/ Acesso em 30 ago 2024 

Conselho Federal de Psicologia

https://site.cfp.org.br/servicos/orientacao-e-etica/processos-eticos/ Acesso em 17 set 2024

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Foto de capa: reprodução do Instagram

Quem tem medo da laicidade na psicologia?

A Psicologia é uma grande área de disputa para o campo religioso. Devido à sua interligação com os estudos da mente e a tradição da confissão (FOUCAULT, 1988), a área veio com uma raiz religiosa que, ao longo do tempo, os autores clássicos tentaram romper – como Freud, Skinner etc. – e que formulou, ao lado da Modernidade, uma profissão laica. Contudo, esse vínculo com a religião fez com que desde muito cedo a Psicologia caminhasse em um lugar ambíguo entre uma ala que queria que a Psicologia fosse uma técnica apropriada pelo campo religioso e outra, defendendo uma autonomia do campo (BELZEN, 2009). 

Essa disputa, que assinalei como histórica, ganha contornos muito específicos no Brasil. A entrada das disciplinas de Psicologia pelos seminários e instituições católicas ou protestantes fizeram esse contorno ser muito presente desde o início da profissão no Brasil. O catolicismo, inicialmente já interessado na área, teve um novo concorrente: os evangélicos, segmento na casa dos 9% em 1990 (dados do IBGE) que dá um salto vertiginoso para 31% da população brasileira em 2020, segundo o Datafolha.

Nesse território marcadamente afetado pela religião, a área da Psicologia se organizou e se regulamentou em 1977. Houve a criação dos Sistemas-Conselhos a partir da Lei 5766/1971, com uma organização em nível federal (Conselho Federal de Psicologia) e os conselhos regionais (Conselhos Regionais de Psicologia), divididos por áreas do país, não necessariamente estados. Cada conselho com eixos de trabalho e instâncias de debate para dois objetivos – orientar e fiscalizar a profissão. 

Nesse processo foi criado o primeiro Código de Ética do Psicólogo ainda em 1975, contudo, em função dos avanços profissionais e sociais – principalmente marcados pela Constituição Cidadã de 1988 e as Declarações Internacionais de Direitos Humanos – foi formulada a nossa última versão do código, em 2005. Nesta, tornou-se mais explícito o compromisso da área com a laicidade e a luta contra qualquer forma de violação dos direitos humanos. 

Em paralelo a esse processo, o CFP criou resoluções que, de modo diferente, já apontavam para a necessidade da laicidade, como a resolução 01/1999 – que proíbe a cura de homossexualidades e que, diversas vezes, foi objeto de grupos religiosos tentando retirar essa normativa; a 01/2000, que fala sobre a laicidade das práticas psicoterápicas; a 18/2002,  que versa sobre racismo e repudia todas as formas de discriminações raciais; a 01/2018,  que proíbe a cura de pessoas transgênero e a 08/22,  que proíbe a cura de pessoas não-monossexuais como bissexuais e pansexuais. Assim, a resolução 07/2023, criada para abarcar a temática sobre laicidade, apenas reforça aquilo que já está construído na profissão desde sua criação e no seu desenvolvimento. 

Além disso, os Sistemas-Conselhos, como citado anteriormente, trabalham com Eixos e grupos de trabalhos, dentre eles alguns específicos sobre Laicidade. Logo, a criação desta última resolução advém de um amplo debate de profissionais – muitas vezes que professam fé religiosa ou que já sofreram com as faltas éticas. Um dos grandes exemplos é um dos presidentes do Eixo de Laicidade do CRP-RJ, Héder Bello, que passou por tentativa de cura de sua sexualidade pela Rozângela Justino, que se autointitulava “psicóloga cristã”. Esta ex-psicóloga foi cassada e perdeu o seu registro profissional. Nesse processo, Bello produz, ao lado do CFP, o documento “Tentativa de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs” (2019), acumulando relatos de dezenas de outros pacientes que passaram por violações similares. Isso ocorreu anos antes da resolução 07/2023. 

Assim, a tentativa de se retirar uma norma do CFP não é uma movimentação nova e incomum na área, da mesma forma que o impulso de organizações para permanecerem usando terminologias que são antiéticas – como “Psicólogo Cristão”. Quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7426 surgiu de modo a barrar a Resolução 07/23, se retomou um mesmo movimento que já ocorrera no passado: “mas o psicólogo não tem “liberdade” de curar uma pessoa de sua sexualidade? E de expressar sua religião como profissional?” O uso do termo “liberdade de expressão” aparece como um opositor aos limites dados pelos Direitos Humanos. 

A resposta para as perguntas acima é “Não!” O psicólogo não tem liberdade para tudo. Por isso somos uma ciência e profissão. A laicidade é uma forma de proteger grupos minoritários de violências como as relatadas no documento “Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs” de 2019, na fala de três mulheres lésbicas:

1: A psicóloga começou invocar alguns trechos da Bíblia, falando sobre o mito da Criação, sobre o papel da mulher, sobre as convicções. 

2: Minha mãe disse que o pastor conhecia uma psicanalista que era uma irmã, ela era da igreja, sei lá o quê, e que tratava de casos assim. (…) Ela conversou comigo que talvez fosse isso que Deus queria, sei lá o quê. Antes da sessão, a gente fez uma oração, claro. 

3: Ao buscar ajuda psicológica, a psicóloga veio interpor uma questão de religião. […] Ela começou dizendo que era uma fase, depois ela entrou muito em religião, começou a falar que Deus tinha um plano para mim e que isso eram “atormentações”, que eu não podia me deixar cair nessas atormentações. Ela passava orações para eu fazer, orações, hinos para eu ouvir, e ficava falando versos bíblicos, nada a ver. (CFP, 2019, p.102.)

Em oposição a esta ADI 7426, organizada pelo Partido Novo e o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) – duas organizações que não são de psicólogos – o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Pedro Paulo Bicalho, decidiu mobilizar respostas que estão em processo. No caso do Rio de Janeiro, a presidente do Conselho, Céu Cavalcanti – uma mulher trans e que possui uma experiência religiosa – fez questão de realizar um evento chamado I Seminário sobre Psicologia, Religião e Espiritualidade, onde estava presente o Eixo de Laicidade do CRPRJ e a Comissão de Estudantes. O evento foi realizado no Instituto Teológico Franciscano, que apoiou firmemente a luta pela laicidade. Houve cerca de 400 pessoas presenciais e 500 online, ouvindo claramente o posicionamento e recebendo em mãos a resolução, a fim de lerem e entenderem a luta pela laicidade. A área continua em luta a fim de reafirmar seu lugar ao lado dos Direitos Humanos.

Referência:

BELZEN, Jacob A. Psicologia Cultural da Religião: Perspectivas, Desafios, Possibilidades. REVER: Revista de Estudos da Religião, v. 9, 2009.

CFP – Conselho Federal de Psicologia. Link: https://site.cfp.org.br/multimidia/projeto-memorias-da-psicologia-brasileira/. Acesso em 04 out. 2023. 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Rio de janeiro: Graal, 1988.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Aaron Burden/Unsplash

Somos feitos de sombra

Por mais desconfortável que pareça, a alma humana não é somente um espaço de luz. Ao contrário, tateia em sua própria sombra em seu caminho para o que poderia chamar de luz.

O conceito de Sombra é apresentado por Jung em sua Psicologia Analítica e trata dos conteúdos afetivos e cognitivos que compõem a personalidade, mas que foram transferidos de alguma forma para o Inconsciente por serem considerados pelo Ego como inaceitáveis e impróprios. Em outras palavras, é aquilo que temos na alma, mas que por não gostar, reprimimos ou recalcamos.

Todos somos formados de luz e sombra. Entretanto, não vemos – ou não queremos ver – a própria Sombra, preferindo a luz que acreditamos ter e ser.

Deepak Chopra, médico indiano radicado nos Estados Unidos, alerta que “Se você não pode enxergar a própria sombra, precisa procurá-la. A sombra se esconde na vergonha, nos becos escuros, nas passagens secretas e nos sótãos fantasmagóricos de sua consciência. Ter um lado sombrio não é possuir uma falha, mas ser completo.”

Paulo de Tarso avançou em profundidade na compreensão da própria Sombra. Em sua epístola aos Romanos ele apresenta sua obscura realidade interior ao dizer que “Eu não entendo o que faço, pois não faço o que gostaria de fazer. Pelo contrário, faço justamente aquilo que odeio. […] Pois eu sei que aquilo que é bom não vive em mim, isto é, na minha natureza humana. Porque, mesmo tendo dentro de mim a vontade de fazer o bem, eu não consigo fazê-lo. Pois não faço o bem que quero, mas justamente o mal que não quero fazer é que eu faço. […] Assim eu sei que o que acontece comigo é isto: quando quero fazer o que é bom, só consigo fazer o que é mau. Dentro de mim eu sei que gosto da lei de Deus. Mas vejo uma lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que a minha mente aprova. […] Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte? (Bíblia na Linguagem de Hoje – Epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 7, versículos de 15 a 24).

Mas seria a Sombra um mal em si? A resposta é não, se levarmos em conta que somos formados de dualidades e entre elas estão a sombra e luz. Na verdade, citando novamente o médico indiano, “O conflito entre quem somos e quem queremos ser encontra-se no âmago da luta humana. A dualidade, na verdade, está no centro da experiência humana. A vida e a morte, o bem e o mal, a esperança e a resignação coexistem em todas as pessoas e manifestam sua força em todas as facetas da vida.”

O mesmo Chopra nos diz que “Ter um lado sombrio não é possuir uma falha, mas ser completo.” Também não podemos pensar na Sombra como algo exclusivamente ruim, pois nada na vida e em nós é plenamente correto ou totalmente errado.

Para a psicoterapeuta analítica e escritora alemã Marie-Louise von Franz, “podemos dizer que a Sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa, mas que ela desconhece” e não podemos pensar que tudo o que há em nós e que não conhecemos seja do mal.

Essa reflexão serve para, ao menos, TRÊS coisas. Primeiramente nos fazer descer do pedestal da arrogância, enxergando que não somos melhor que ninguém. Tem uma frase atribuída a Freud de que “visto de perto, ninguém é normal” e Paulo de Tarso disse que “Se alguém julga estar em pé, cuide para que não caia.” (1ª Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 10, versículo 12).

Em segundo lugar, saber isso ajuda a nos vermos como um ser humano igual aos demais, nos compreendendo, nos aceitando e nos perdoando. Esse conhecimento nos abre um caminho de diálogo com a própria Sombra, visto que ela – assim como a sombra física – é uma projeção da Luz que trazemos em nosso interior.

Por último, pararmos de projetar nos outros a Sombra que é nossa, lembrando que comumente detestamos no outro aquilo que está em nós e que insistimos em não ver. Como disse Jung, “O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”.

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Artigo apresentado voluntariamente pelo autor para publicação. Aprovado pela coordenação editorial em 15 de abril de 2021.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Vale sombrio do luto

A igreja precisa ser um espaço de acolhimento, de escuta, de consolo

Patrícia Regina Moreira Marques

Na história humana, o luto sempre foi um dos temas mais difíceis de serem abordados, ainda mais nesse tempo no qual milhões de vidas são ceifadas em decorrência da pandemia do coronavírus.  É  crucial  o enfrentamento da morte. A dor se transforma em lamento, que resultam em  pesares, tristezas, depressão, ansiedade e muitas outras situações que afetam famílas  e diversos grupos na sociedade. 

 Famílias choram a perda de seus entes queridos vivenciando uma dura realidade jamais pensada. Não tiveram tempo de se despedir de seus queridos, ou até mesmo um funeral não foi possível de ser realizado. Chorar com as pessoas é algo que realizamos nessas situações,  e nesse momento, tentamos chorar virtualmente. Ainda que sintamos a dor da perda, uma sensação de vazio, frieza, impotência, nos acomete imensamente. 

O sentimento de um luto coletivo nos invade também  quando somos sensibilizados com a dor de quem não conhecemos. Nesses momentos a dor do nosso próximo, mesmo que esse próximo esteja tão distante, passa a ser a nossa dor também. Nos meados da década de 1980, um grupo evangélico entoava um cântico formidável.  Uma das estrofes reforçava a empatia: “… ame ao teu próximo como se fosse você, como se a dor que ele sente doesse mais em você…”

Provavelmente  nessa época as dores eram bem  diferentes das atuais, mas já haviam sinalizações de dificuldades  e necessidades para que a igreja passasse a sair de si mesma e olhasse para a necessidade ao seu redor. Uma tentativa de enfatizar a prática das ações de Jesus: ajudar os necessitados, chorar com os que choram, levar amor  e esperança; sinalizações do reino de Deus. 

Igrejas e o luto na Pandemia

Importante lembrarmos que  umas das ações da igreja é ser  terapêutica (do grego, Therapeutikos que serve, que cuida). A igreja precisa ser um espaço de acolhimento, de escuta, de consolo. Um espaço que permita ao enlutado/a expresssar a sua  dor. Essa dor pode estar atrelada ao sentimento de culpa pela decepção com Deus, pela raiva de Deus não ter interferido e salvar  a  pessoa querida.

Ser uma igreja terapêutica é um processo que necessita de empatia, de  tempo, de dedicação e  amor às pessoas.  Ter acolhimento não só para  os membros da igreja, mas para toda a comunidade que necessite.  Ser uma comunidade terapêutica é também ter o conhecimento  de que esse agrupamento é composto por pessoas que podem estar saudavéis ou doentes, mas que todos carecem da graça de Deus, assim nos afirma  Josias Pereira, pastor com  mais de meio século de experiencia pastoral e com formação em Psicologia, em seu texto “ A função terapêutica na comunidade cristã”.

Nesse sentido, entendemos que Deus nos ajuda a ajudarmos uns aos outros. No caso específico da pandemia do coronavírus, temos que aprender a sermos uma nova igreja, que realmente  se preocupa com o ser humano, que deseja seguir o Cristo, amante das pessoas necessitadas, doentes, fragilizadas, marginalizadas, enlutadas. 

As famílias que carregam a dor e os resultados da pandemia precisam ser cuidadas. A práxis desse cuidado é priorizar o encontro com essas pessoas e nesse diálogo construir novos saberes, para caminharem no meio da dor da ausência de quem partiu. Caminhar mesmo mediante ao luto, que inicialmente pode paralisar a (s) pessoa (s). 

Felizmente algumas igrejas já sinalizam muitas ações concretas para intervirem em situações decorrentes da pandemia e de suas consequências. Não apenas oram, mas agem a favor daqueles e daquelas que sofrem. Mas há muitas coisas ainda para serem feitas. Outras igrejas precisam despertar pela necessidade atual e se encorajarem com as palavras de Jesus “… Tendem bom  ânimo… eu venci o mundo, vocês também vencerão…” 

Uma bom início, nesse tempo virtual, é aprendermos e exercitarmos a escuta. Assim podemos iniciar uma “ igreja terapêutica à distância”.

Escuta com Cristo

 O Salmo 86:1 nos lembra a petição:

Dá ouvidos, Senhor, à minha oração, e atende à voz das minhas súplicas.

O versículo 7 afirma que Deus responde às nossas petições: “ No dia do perigo clamo a ti, porque tu me respondes.” Nesse mesmo sentido, encontramos a palavra do salmista no Salmo 120:1 “ Na minha angústia , clamei ao Senhor,  e ele me ouviu.”

 Escuta conosco

Esse tempo de distanciamento social, certamente nos ajuda a nos escutarmos e revermos tantas questões que desejamos mudar; o silêncio interior contribui positivamente nesse sentido. Encontrarmos desejos de mudanças talvez outrora já perdidos.  O Evangelho de Mateus nos ensina: “ Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.”  (cf Mateus 13:9)

Escuta com o  outro 

Ouvir com atenção requer sensibilidade e percepção do que a outra pessoa está a falar.  Nos dias atuais, percebemos a necessidade que as  pessoas têm  de serem ouvidas. As mudanças atuais geraram um avanço positivo em nosso cotidiano, pois usufruirmos mais da tecnologia, que felizmente se tornou uma prática positiva para nosso exercício de ouvir as pessoas. Enquanto aguardamos nossos encontros presenciais, reaprendemos a ouvir. A escuta do outro tornou-se uma prática  reaprendida. A Bíblia nos ensina que devemos estar pronto para ouvir (cf. Tiago 1:19). 

A Igreja e os novos desafios 

Enquanto escrevo esse artigo, me chega a notícia de índios da tribo Tremembé, ao norte do Brasil, que acometidos pelo coronavírus, não aceitam a ajuda “do homem branco”, ou quando aceitam com muita insistência de alguém próximo deles, acabam falecendo por uma intervenção tardia. Ou até mesmo os atendimentos são negligenciados. Suicídios ocorrem nas tribos indígenas por depressão e medo, e até mesmo impotência por parte da liderança da tribo. O que fazer quando situações como essas estão tão distantes de nossas mãos? A prática evangelical da oração nessas horas é uma saída que não apenas diminui nossa fraqueza e sentimento de impotência, mas que, conforme cremos, trabalha com a possibilidade  da intervenção divina é possível, pois temos a esperança de que Deus nos ouve e que não deixará nossos irmãos à própria sorte. Ouço, nesse momento, um relato de uma igreja-irmã que inicia ajuda concreta a essa tribo. Confesso que choro silenciosamente agora… 

Igrejas mercenárias e a Pandemia 

Sabemos que algumas igrejas enfatizam um discurso triunfalista. Algumas até mesmo consideram o choro como sinônimo de fracasso ou falta de fé. Ações que estão muito longe dos valores do Reino de Deus. Infelizmente muitas pessoas se agarram a esse discurso triunfalista e acabam por adoecer.  Atitudes inacreditáveis são realizadas por pseudopastores/as e líderes reconhecidos pela “comunidade” como homens e mulheres portadores da voz de Deus. Falsos profetas que, em nome de Deus, enriquecem até no momento em que seus membros estão fragilizados (ou melhor, principalmente em tais momentos). Para esses, o registro no livro do profeta Ezequiel 13, relata: “ Suas visões são falsas e suas adivinhações, mentira. Dizem ‘Palavra do Senhor’, quando o Senhor não os enviou; contudo, esperam que as suas palavras se cumpram. Acaso vocês não tiveram visões falsas e não pronunciaram adivinhações mentirosas quando disseram ‘Palavra do Senhor’, sendo que eu não falei?

A igreja e o vale sombrio 

Quanto  a nós, seguimos, no vale sombrio do luto, conhecendo  novas maneiras de viver, nos recriando, aprendendo a ser  igreja na pandemia e na pós-pandemia.  Há muito caminho a ser percorrido. Estamos no início de tudo, mas não vamos parar. Se há dor no luto, também há o consolo.  Assim como o salmista, afirmamos: “ Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo…’.

No vale sombrio, nosso querer se soma a tantos outros, e partimos para um exercício coletivo de escuta, de vozes que não soam sozinhas, de desejos e quereres que compartilham a esperança. Quem se sente sufocado por desaprender a ouvir, é convidado a participar. E assim, essa aprendizagem se torna mais real, mais forte, mais significativa. Nos encoraja a não desistimos. 

Esse querer é refletido nas palavras da pastora Blanches de Paula:

Quero escutar as alegrias escondidas, as tristezas expostas, a esperança de outrora.

Quero escutar o esquecimento da vida, a lembrança do afago, a perseverança da lida.

Quero escutar a sensibilidade de alguém, a dureza do medo, o ombro em que posso reclinar minhas dores.

Quero escutar as despedidas impetuosas, a chegada do amigo, a alegria do encontro.

Quero escutar os passos do caminho, a solidão da estrada, alguém que está ao lado.

Quero escutar o silêncio que sufoca, as palavras  nos gestos, a acolhida da minha história.

Quero escutar a voz divina , provoca dor…, liberta dor…

Quero escutar a mim mesma, me reconhecer, me escolher.

Quero escutar você, sua história, seus medos, suas coragens.

Quero escutar o diálogo, abrir a minha porta e cear com a Vida

Entre lutas e lutos, sabemos que Deus conosco está!

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Patrícia Regina Moreira Marques é Pastora e Missionária da Junta Geral de Ministérios Globais, em Portugal.