Padre usa morte da cantora Preta Gil para discursar contra religiões de matriz africana

O padre católico Danilo César, da Paróquia de Areial, na Diocese de Campina Grande (PB), é investigado por intolerância religiosa após declarações feitas durante uma homilia em missa, em 27 de julho passado. Ao comentar pedidos de oração, o sacerdote usou a morte da cantora Preta Gil, vítima de câncer, para relacionar a crença em tradições afro-indígenas à morte e ao sofrimento.

Durante a missa, transmitida ao vivo pelo YouTube, o padre afirmou: “[O pai da cantora] Gilberto Gil fez uma oração aos orixás, cadê esses orixás que não ressuscitaram Preta Gil? Já enterraram?”. O vídeo foi retirado do ar após repercussão negativa do público.

Imagem: Padre Danilo César durante missa na Paróquia de Areial, Diocese de Campina Grande (PB), em 27 de julho. Fonte: G1

A declaração do padre Danilo César  foi alvo de denúncia da Associação Cultural de Umbanda, Candomblé e Jurema Mãe Anália Maria , que resultou em inquérito policial. O cantor Gilberto Gil também notificou extrajudicialmente o padre e a Diocese, e exigiu retratação pública e responsabilização eclesiástica. Para a família, as declarações desrespeitaram a memória da artista e configuraram crime de intolerância.

Em nota, a Diocese de Campina Grande afirmou que o sacerdote prestará esclarecimentos às autoridades. 

Bereia ouviu o professor do Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) Dr. Gilbraz Aragão, que comentou o episódio. Segundo ele, declarações como essa revelam desconhecimento e intolerância. “Na religião do Candomblé não existe a crença na ressurreição, tampouco no diabo. É um ato de insensibilidade humana e ausência de fineza espiritual não respeitar nem mesmo os mortos”, destacou.

O professor lembrou que muito se fala sobre uma “guerra santa” promovida por setores evangélicos contra religiões afro-indígenas, mas ressaltou que alguns padres também acabam reproduzindo esse discurso. “A intolerância religiosa, em grande parte, é atravessada pelo racismo. A perseguição recai sobretudo sobre os santos e tradições de matriz africana”, afirmou.

Para Aragão, essa postura reflete uma visão instrumental da espiritualidade, marcada pela ideia de que Jesus realiza milagres para atender pedidos de prosperidade e riqueza. O professor também vê uma leitura mítica, que coloca o Cristianismo como detentor da verdade absoluta contra todos os que não compartilham da mesma fé.

Apesar disso, Aragão observa mudanças positivas em setores cristãos. Ele aponta o surgimento de crenças mais abertas, que reconhecem diferentes caminhos espirituais, além de visões mais pluralistas, que entendem haver manifestações da consciência de Cristo em todas as culturas e tradições religiosas.

O docente acrescenta que experiências integrais e transreligiosas vêm ganhando espaço, considerando a espiritualidade também presente na ciência, na profundidade das relações humanas e até em propostas como a ideia de uma “missa sobre o mundo”, para além dos rituais estritamente eclesiais.

Diante do episódio na Paraíba, Gilbraz Aragão sugeriu que a Igreja Católica devesse encaminhar o padre para uma reciclagem teológica. 

Processos judiciais recentes por intolerância religiosa

Bereia verificou outros casos recentes de intolerância religiosa que envolvem lideranças católicas e evangélicas e ganharam repercussão nacional, impulsionados pelas redes digitais. Eles revisitam debates sobre os limites da liberdade de expressão, ao se tornar ofensa, a responsabilidade de líderes religiosos e a proteção constitucional ao livre exercício da fé. 

Entre os episódios, destacam-se: 1) a condenação do pastor evangélico Aijalon Heleno Berto Florêncio, de Recife (PE), por transmissões de 2021 em que associou religiões de matriz africana ao “demônio” e à “feitiçaria”, além de ofensas a uma mulher trans e a um artista; 2) o caso do pastor Felippe Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, acusado de intolerância religiosa em um show realizado em Itaboraí (RJ), em 2022. 

O caso do pastor Aijalon Florêncio (PE)

O pastor do Ministério Dunamis Aijalon Heleno Berto Florêncio, que atua em Igarassu, no Grande Recife (PE), acumula quatro condenações por intolerância religiosa e transfobia, todas movidas pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE). As penas totalizam 12 anos de prisão em regimes aberto e semiaberto, além de indenizações e multas que somam R$ 133 mil.

Imagem: Pastor Aijalon Heleno Berto Florêncio, do Ministério Dunamis. Fonte: JM Notícia. 

As decisões, proferidas entre setembro de 2023 e agosto de 2025, apontam que o pastor utilizou redes digitais para associar religiões de matriz africana ao “demônio” e à “feitiçaria”, além de proferir ofensas contra uma mulher trans e um artista.

A mais recente condenação foi proferida em 6 de agosto de 2025, e refere-se a uma transmissão ao vivo,  em 2021, na qual chamou uma mulher trans de “feiticeiro” e “filho do demônio”. A Justiça fixou pena de seis anos e três meses em regime semiaberto, além de indenização de R$ 16,5 mil.

Em outra sentença, Florêncio chamou um dançarino de “feiticeiro” em comentário no Instagram, dizendo não aceitar “macumbeiros entregarem a cidade aos demônios”. O pastor também foi condenado por atacar o orixá Ogum em postagem nas redes digitais, e por vídeo em que descrevia religiões afro-brasileiras como “animais abomináveis” e “satânicos”.

Em nota, o MPPE destacou que a liberdade religiosa não pode ser utilizada como justificativa para incitar ódio. O promotor José da Costa Soares afirmou: “É um contrassenso invocar-se a liberdade religiosa para pregar a intolerância”.

O Caso do Pastor Felippe Valadão (RJ)

O pastor da Igreja Batista da Lagoinha Felippe Valadão responde na Justiça por intolerância religiosa após declarações feitas em 2022, durante evento oficial da Prefeitura de Itaboraí (RJ), conforme Bereia checou. No palco, chamou praticantes de religiões afro-brasileiras de “endemoniados” e afirmou que centros de umbanda seriam fechados.

“Avisa para esses endemoniados de Itaboraí que o tempo da bagunça espiritual acabou. Pode matar galinha, pode fazer farofa, prepara para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade”, disse Valadão diante do público.

Imagem: Pastor Felippe Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha

A denúncia partiu do deputado Carlos Minc (PSB-RJ), por meio da Comissão contra a Intolerância Religiosa da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O caso resultou em uma Ação Civil Pública por dano moral coletivo no valor de R$ 300 mil, que tramita na 2ª Vara Cível de Itaboraí.

A Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) confirmou a autenticidade do vídeo e concluiu pela prática de intolerância religiosa. Em depoimento, o pastor afirmou que suas falas foram descontextualizadas e que não incitou violência, apenas defendeu a conversão religiosa.

A Prefeitura de Itaboraí reconheceu a responsabilidade pelo episódio, já que o evento teve recursos públicos, mas declarou que as falas dos convidados eram de inteira responsabilidade deles.

Exercício da fé tem limites constitucionais 

Os três episódios analisados revelam a persistência da intolerância religiosa no Brasil, que envolve tanto lideranças católicas quanto evangélicas. Em comum, os casos expõem discursos que desqualificam religiões de matriz africana, e reforça estigmas e preconceitos históricos.

Ouvida pelo Bereia, a presidente da Comissão Especial de Liberdade Religiosa da OAB-SP Paula Moutinho, a liberdade de crença e de não crença constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro, assegurada como direito fundamental pela Constituição Federal e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Esse direito garante não apenas o livre exercício da expressão religiosa, em seus ritos e manifestações, mas também a opção de não professar qualquer fé, preservando a pluralidade de convicções filosóficas e espirituais no país.

A base normativa da liberdade religiosa está prevista no artigo 5º da Constituição, que estabelece a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o pleno exercício dos atos de fé, sem restrições aos ritos legítimos. Já o artigo 19 veda a intervenção do Estado em assuntos religiosos, reforçando a laicidade e a autonomia das instituições de caráter dogmático.

Apesar de ampla, a liberdade religiosa não é absoluta. O exercício da fé encontra limites quando entra em conflito com outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, especialmente diante de situações de discriminação ou discurso de ódio. A jurisprudência brasileira tem sido firme ao considerar que manifestações religiosas que extrapolam o âmbito do culto, convertendo-se em ataques a tradições alheias, incitação à violência ou discriminação, não estão protegidas constitucionalmente.

De acordo com Paula Moutinho, o discurso de ódio religioso é uma das formas mais graves de violação desse direito. Ele se manifesta na demonização de religiões minoritárias, na incitação à exclusão ou violência contra grupos de fé e na propagação de estigmas, tanto em comunidades religiosas quanto em mídias e redes sociais.

As punições para casos de intolerância se dão em diferentes esferas. No campo civil, é possível pleitear indenizações por danos morais decorrentes de ofensas ao sentimento religioso. No âmbito criminal, a Lei nº 7.716/1989 prevê pena de reclusão de dois a cinco anos para quem praticar discriminação ou preconceito por motivo religioso. 

Além disso, o artigo 140, § 3º, do Código Penal, alterado pela Lei nº 14.532/2023 , passou a equiparar a injúria racial com motivação religiosa ao crime de racismo, tornando-a imprescritível e inafiançável.

No Estado de São Paulo, a Lei nº 17.346/2021 prevê punições administrativas e pecuniárias a agentes públicos e privados que pratiquem atos de intolerância religiosa, sem prejuízo das sanções judiciais cabíveis.

Para a presidente da comissão da OAB-SP, o arcabouço jurídico existente é suficiente para coibir práticas de intolerância, desde que acompanhado por denúncias. “A liberdade de crença e de não crença exige constante vigilância e ponderação. Em uma sociedade plural e multicultural como a brasileira, o desafio está em garantir que todas as manifestações religiosas, ou a ausência delas, coexistam em respeito mútuo, sem que o exercício da fé se converta em instrumento de exclusão, violência ou opressão”, afirmou Moutinho.

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Bereia classifica a notícia sobre o caso do padre que usou a morte da cantora Preta Gil para atacar religiões de matriz africana como verdadeira. 

Além daquele caso, outros dois verificados apresentam registros oficiais, investigações conduzidas por órgãos competentes e ampla repercussão pública, e confirma a prática de intolerância religiosa em diferentes contextos. As situações que envolvem o padre católico Danilo César e os pastores evangélicos Aijalon Heleno Berto Florêncio e Felippe Valadão, expõem como o discurso discriminatório, quando proferido por lideranças religiosas, alcança visibilidade e impacto social, reforça estigmas contra religiões de matriz africana e minorias. 

Referências: 

Diário do Nordeste. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/ultima-hora/pb/policia-civil-abre-inquerito-para-investigar-intolerancia-religiosa-de-padre-contra-preta-gil-1.3675452. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

Diário do Nordeste. https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/entretenimento/zoeira/gilberto-gil-notifica-diocese-por-intolerancia-religiosa-de-padre-contra-preta-gil-1.3680735?utm_source=twitter. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2025/08/7226690-gilberto-gil-notifica-padre-que-fez-comentarios-preconceituosos-contra-preta-gil.html#google_vignette. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

G1. https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2025/08/14/gilberto-gil-notifica-padre-investigado-por-intolerancia-religiosa-apos-fala-sobre-preta-gil.ghtml. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

G1. https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2025/08/16/pastor-e-condenado-pela-quarta-vez-apos-ofender-mulher-trans-e-associar-religioes-de-matriz-africana-a-demonio-e-feiticaria.ghtml. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

Alma Preta. https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/pastor-e-condenado-pela-4a-vez-por-falas-discriminatorias-e-transfobicas/. Acesso em: 20 de agosto de 2025. 

MPPE. https://portal.mppe.mp.br/w/l%C3%ADder-religioso-%C3%A9-condenado-pela-quarta-vez-por-crimes-de-racismo-e-transfobia. Acesso em: 20 de agosto de 2025.

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-04/pastor-evangelico-e-indiciado-por-ofender-religiao-de-matriz-africana. Acesso em: 20 de agosto de 2025.

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-07/vitima-de-cancer-preta-gil-morre-aos-50-anos. Acesso em: 20 de agosto de 2025.

Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/justica/justica-condena-pastor-que-relacionou-religioes-africanas-a-satanismo/. Acesso em: 20 de agosto de 2025.