Vale da sombra da arte: tensão como potência comunicadora
A arte, um tema bastante teorizado mas pouco discutido em suas interrelações com outras áreas, alimenta a imaginação de quem desconhece seus procedimentos. Na fantasia atual é comum que os personagens artistas assumam a posição clichê da loucura e idealização, em que suas produções não visam o ganho monetário. A arte contemporânea costuma ser, no período em que ocorre, tão malvista pelo público leigo (e conservador) que poucos se esforçam por compreender seus motivos. No entanto, este cenário pessimista que envolveu o fazer artístico apenas reflete o quanto a arte, por si, não recebe o seu devido mérito enquanto prática humana.
Ao visualizarmos a “Noite estrelada” pintada pelo holandês Vincent Van Gogh, ou a tela “Operários” de Tarsila do Amaral, e até mesmo quando escutamos a Nona Sonata de Beethoven, dificilmente associamos tais obras a pessoas ordinárias. Tampouco imaginamos que a arte, como potencial criativo e criador, esteja presente em todos e todas, não se reduzindo ao seu espectro habitual.
Fayga Ostrower, artista e teórica da arte, escreveu em sua obra Criatividade e Processos de Criação (2014) que “a criatividade, como a entendemos, implica uma força crescente” (p. 27). Presente na humanidade, esta força serve como uma energia propulsora consciente que conduz à ação, logo, à criação.
Do ponto de vista teológico poderíamos questionar se este processo não seria, na realidade, uma subcriação, dado que só a Deus podemos conferir o poder verdadeiramente criador. No entanto, deixemos esta dúvida na mente de nossa leitora e de nosso leitor.
No horizonte psíquico temos uma tensão constante que nos impede de parar de fazer algo, de produzir, de agir. A humanidade, desde sua natureza, é um ser produtor: de ideias, de família, de pinturas, de textos, de trabalho, de sociedade… Esse “fazimento” é um processo criativo portador de arte. Se transformássemos a história humana em uma grande obra artística (pintura, escultura, música, livro, ilustração, filme ou outra produção), não veríamos outra coisa além da arte em si, traduzida na obra humana.
Essa mesma tensão psíquica pode estimular processos não-criativos que fundamentam a raiva, por exemplo, gerando em muitos casos a violência. Com isso, queremos dizer que a força-motriz que os artistas utilizam para pintar, esculpir, escrever, compor, filmar, arquitetar, construir, projetar, cozinhar etc., é também a mesma energia que muitos e muitas se servem para fertilizar a raiva, ciúme, orgulho e impiedade.
Diante deste desafio existencial a questão que nos surge é: o que os artistas utilizam para transformar essa tensão psíquica em um potencial criador? A resposta reside na sensibilidade. Logo, o que implica se abrir para a vulnerabilidade do si mesmo?
Fayga Ostrower explica que a tensão psíquica pode e deve ser elaborada.
Nos processos criativos o essencial é poder concentrar-se e manter a tensão psíquica, e não simplesmente descarregá-la. Embora exista no ato criador uma descarga emocional, ela representa um momento de libertação de energias que é necessário, mas de somenos importância do que certos teóricos talvez o acreditem ser. Mais fundamental e gratificante, sobretudo para o indivíduo que está criando, é o sentimento concomitante de reestruturação, de enriquecimento da própria produtividade, de maior amplitude do ser, que se libera no ato de criar (2014, p. 28).
O que a autora esclarece é que qualquer processo criativo exige uma força interna que move o indivíduo àquela ação e, mais do que isso, nenhum processo se reduz a uma mera vazão de emoções. Ele possui dois movimentos, de ida e de volta. Ao mesmo tempo em que criamos algo, também aprendemos, também sentimos, como se o produto de nossas intenções, naquele instante, se comunicasse conosco.
Fazer arte não é apenas um recurso expressivo, mas comunicativo em vários níveis: artista-espectador; artista-produto; artista-produto-espectador. Estes três planos se reorganizam continuamente enquanto a comunicação ocorre e a tensão psíquica se converte em linguagem, em beleza, em criação, em expressão humana. Contudo, a autora também alerta que a possível descarga emocional que possa aparecer no processo criativo é menos relevante que o valor humano que a obra gera nesta articulação artística, que é criativa e recursiva, além de promotora da amplitude do próprio indivíduo que cria, bem como daquela ou daquele que assiste o processo criativo ou vê o produto acabado.
Retornando à questão maior acerca da sensibilidade, algumas pistas já foram apresentadas. Qualquer criação humana envolve abertura de si. É preciso entender, de antemão, que algumas concepções podem ser desconstruídas para que novas ideias sejam formadas. Um processo criativo que não transforma o criador deixa de ser arte para ser terapia, isto é, uma vazão de sentimentos sem o menor controle deles. O valor da arte consiste, precisamente, na “intensificação do viver” (OSTROWER, 2014, p. 28), sem a qual, nos tornamos meros autômatos, talvez marionetes de nossos conflitos mentais. O conflito não é o problema, ele é um recurso para o próprio crescimento durante o processo, e a sensibilidade requer uma consciência disposta a perceber os fenômenos que se tornam aparentes no criar. Muitas vezes o conflito se torna uma predisposição para a abertura, requisito para a ação do plano sensível da criação.
Essa sensibilidade é a condição maior do fazer artístico que tem como efeito colateral o se tornar vulnerável ao próprio mundo por meio de sua obra. Não é possível se abrir sem ser afetada ou afetado pelo que se produz. Esta situação nos conduz a uma outra perspectiva, inclusive, do próprio fazer teológico, por meio do qual percebemos o pensar sobre Deus como uma via racional e de mão única. Contudo, analisando do ponto de vista do ser humano que também cria (ou subcria?), a Teologia requer uma enorme sensibilidade para se permitir ser transformada pela própria fé do indivíduo que crê, portanto, que pensa e sente. Caso contrário, ela também se reduzirá a uma vazão de pensamentos desconexos sobre uma compreensão equivocada do que seria o próprio Deus.
Dessa maneira, a arte também dialoga intimamente com a Teologia desde a base existencial de uma humanidade que, inserida no mundo, é responsabilizada por transformá-lo e nomear este processo criativo de “viver”.