Afeto e política na pós-verdade

* Publicado originalmente no site do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular

Nesse mundo de pós-verdade, toda mentira é palatável. Sem o menor constrangimento, chefes de Estado defendem que a Terra é plana e vacinas contêm chips chineses capazes de violar a intimidade dos vacinados…

Essa necropolítica dinamita toda a coerência lógica, desqualifica a consistência dos argumentos, ignora provas científicas e introduz a irracionalidade ao deslocar o conhecimento da cabeça para o coração. O que se sente passa a ter mais importância do que aquilo que se pensa. A intuição se sobrepõe à inteligência. O afeto, ao pensamento. 

Tal postura produz antinomias: diante da atitude violenta de um adversário tenho vontade de matá-lo; frente a quem ridiculariza minha fé religiosa, sinto ganas de queimá-lo vivo; aceito a diversidade desde que as bandeiras que defendo tenham hegemonia…

Sou ágil em criticar e denunciar as incongruências do outro, mas incapaz de autocrítica quando me equivoco. Não me dou conta de quanto o egocentrismo impregna minha subjetividade. Frente aos erros dos adversários reajo com intolerância. Mas diante dos erros de meus correligionários busco amenizar os fatos, botar panos quentes, suavizar as críticas. Porque também em mim o coração fala mais alto que a cabeça.

Assim, a era da pós-verdade é como casa em que não há pão, todos brigam e ninguém tem razão. 

O exemplo mais flagrante dessa irracionalidade é o discurso político de que a política não merece credibilidade, os políticos são todos corruptos, as funções políticas devem ser ocupadas por militares e empresários “que não são políticos”… Eis a subversão da semântica. 

Essa prevalência do afeto sobre a razão induz ao fanatismo. Veja o show de um astro da música, como é retratado no filme sobre a carreira de Elvis Presley, dirigido por Baz Luhrmann. As pessoas, inebriadas pelo artista, entram em transe; impregnadas do magnetismo que ele provoca, perdem a compostura, se levantam, aplaudem em delírio, tentam tocá-lo, soltam gritos onomatopaicos, e alguns até desfalecem. 

Quando se trata de um líder político, transformado em mito por seus admiradores, estes ficam totalmente desprovidos de senso crítico. Não agem pela razão, agem pela emoção. Por isso nenhum argumento os faz mudar de postura. Ficam todos reféns daquela figura que acolhem como um avatar caído dos céus. É o salvador, o messias, o grande guia. 

Essa relação de total submissão só encontra analogia na experiência religiosa. As pessoas não querem saber se o mito é ou não competente ou corrupto. Têm fé nele. E fé não se explica, transcende a razão, ultrapassa todo raciocínio lógico. E assegura ao mito, da parte dos adeptos, coesão e fidelidade, ainda que ele profira disparates e diga coisas absurdas e inconvenientes. Ainda que mate. Pode-se não saber a razão, mas ele, sim, terá suas razões para agir como age… 

Aliás, uma das características do fanatismo ou fundamentalismo é exatamente a supressão simbólica ou real do adversário. Não basta criticá-lo. É preciso eliminá-lo, extirpá-lo, exorcizá-lo da vida social, pois é considerado demoníaco. 

No exercício do voto, é a emotividade que conduz a decisão de quem venera o mito. Inútil querer demovê-lo por argumentos racionais. Ele está mobilizado por uma espécie de hipnose coletiva e nada é capaz de despertá-lo desse transe. 

É a naturalização do ódio em todas as suas manifestações – racismo, misoginia, homofobia etc. Naturalização que legitima, aos olhos dos que se submetem à “servidão voluntária”, todas as afrontas, injúrias e mentiras proferidas pelo líder como mera “liberdade de expressão”…

Mas além da naturalização de preconceitos e discriminações, além da “banalização do mal”, o que consolida o mito é a sua sacralização. Vide os faraós do Egito. Não contavam com exército suficiente para conter uma possível revolta da multidão de escravos. Mas haviam interiorizado no povo que o faraó era a encarnação do deus Rá. Essa divinização do poderoso, cuja palavra era voz de deus, revestia o Estado de caráter teocrático. Qualquer sublevação tinha duplo peso: de subversão e grave pecado. 

Vide as manifestações de massa do Terceiro Reich. Eram todas litúrgicas! Quanto mais a política se acoberta sob o manto da religião, tanto mais impregna a subjetividade daqueles que, de adeptos, se transformam em fiéis dispostos a qualquer sacrifício para que o líder reine.

Mas, de que vale adorar o Pai para quem padece da falta de pão? Eis aqui o calcanhar de Aquiles do mito. Seus partidários não se alimentam de palavras e promessas. E o flanco vulnerável dos fanáticos consiste exatamente em levá-los – já que abdicaram da razão – a dar um passo para abaixo do coração e, assim, se deslocarem da emoção e chegarem lá onde o instinto de sobrevivência fala mais alto: o estômago, as condições materiais de existência. Ao abrir os olhos diante da mesa vazia, a voz da razão soa altissonante. 

Daí a importância do trabalho político ser preferencialmente de base, centrado nas classes populares, cujas precárias condições de vida favorecem a consciência crítica. Discursos do mito não enchem panelas. Resta-nos tirar Paulo Freire das estantes e levá-lo de novo à prática.

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* Foto de capa: Pexels/Anton Belitskiy

A era da pós-verdade

O texto bíblico de João 8:32 foi usado pelo candidato do PSL de forma exaustiva nas eleições de 2018. O fim era capturar o voto do eleitorado evangélico para a “verdade” que, supostamente, o candidato estava encabeçando. O mesmo candidato que usou as fake news como principal arma de campanha e que até o momento o TSE ainda não julgou o mérito da ação, mesmo a CPI das “Fake News”, ainda em curso, está concluindo que o principal elemento que tornou possível a eleição do então candidato do PSL foram os conteúdos falsos disseminados nas redes sociais e principalmente em grupos de WhatsApp patrocinado por empresas para fazer os disparos diários.

Voltando ao texto bíblico usado de forma indevida pelo então candidato como um chavão diz que “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. É claro que o chavão em que se tornou o texto não tem nenhuma relação com a verdade do Evangelho de João, que tem como fundo exegético a percepção de que Jesus é a verdade, em virtude de nele residir a realidade divina do amor. Assim, com sua atividade em favor do outro, ele (Jesus) manifesta o amor de Deus. Portanto, para conhecer a verdade é preciso entrar em contato com ela, a verdade, que é Jesus. Assim, a discípula e o discípulo de Jesus experimenta os efeitos desse amor que é o encontro da realidade divina com a humana. Uma vez conhecendo a verdade (a mensagem de amor proclamada por Jesus), ela liberta da mentira na teologia joanina; mentira essa que tem um “pai” e trabalha para diminuir a vida do ser humano, tornando-o escravo da mentira (1). Essa percepção de verdade que está no Evangelho de João, não é compartilhada por uma parcela significativa de evangélicos no Brasil que preferiram o “pai da mentira”, aquele “chefe” que escraviza mentes e corações a partir da disseminação do falso.

Filosoficamente, a verdade é a adequação que o indivíduo faz entre o intelecto e a realidade, portanto a verdade é uma propriedade do juízo e este, o juízo, é capaz de diferenciar o falso do verdadeiro. Aprofundando um pouco mais essa noção de verdade no Ocidente, está se dá quando há um consenso ou acordo em sociedade quanto ao aceitável enquanto normas de conduta, algo estabelecido culturalmente para um determinado grupo social (2). No caso do Brasil, cultural e religiosamente cristão, a verdade se dá a partir de uma ordem vigente que tem na tradição judaico-cristã (cristandade) o seu consenso entre verdade e mentira. A verdade (real), nesse sentido, é contrária à mentira (falso), mas para dizer a verdade é preciso o juramento, pelo menos nos tribunais. Sendo o juramento algo tipicamente teológico.

Seguindo o raciocínio de Christian Dunker (3), o que ocorre hoje é o que está se chamando de “pós-verdade”. Para o autor, “a pós-verdade inaugura uma reflexão prática e política sobre o que devemos entender por verdade e sobre a autoridade que lhe é suposta”. A partir disso, a verdade enquanto pressuposição transcendental calcada na tradição judaico-cristã, não importa mais. A verdade passa por uma espécie de metamorfose quando diante de uma necessidade coletiva e/ou subjetiva que atenda os ideais de um segmento social com o intuito de obter poder. Nessa era de “pós-verdade”, o que conta mesmo é a “aptidão para a inversão”. É nesse espaço público que a aptidão para as inversões conceituais com a transmutação da realidade que as fake news inaugura uma prática de produzir, disseminar e assassinar reputações a partir de conteúdos que promovem um espectro do quadro político à direita (extrema), que julga ter autoridade para estabelecer a mentira como “verdade”, em nome de uma suposta moralidade que julga está decadente na civilização ocidental por conta, exatamente, de governos populares de esquerda. Dentro desse quadro maior que a ala evangélica, seja por ingenuidade, falta de pudor ou senso crítico, não apenas embarcou nas fake news como também divulgou por meios das redes sociais conteúdos falsos quando esse material estava condizente com a mentalidade político-moral do que se entende estar expurgando o “mal” e quem o representa.

Um caso que exemplifica o que estamos aqui tratando.

O padre Fábio de Melo foi vítima de fake news quando da tragédia que aconteceu na escola em Suzano/SP neste ano. O texto intitulado “Melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem” ganhou enorme proporção na internet. O texto foi atribuído ao padre e por isso viralizou nas redes e grupos de WhatsApp. Segue o texto:

Melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem

Autor: Padre Fábio de Melo

“Cansado e perplexo com tantas baboseiras e falsas justificativas para as atrocidades que ainda nos surpreendem todos os dias…

Os meninos não mataram porque o porte de arma é um projeto do atual governo. Os meninos não mataram porque jogavam jogos violentos. Os meninos não mataram porque a escola foi omissa. Os meninos não mataram porque sofreram Bullying…

Eles mataram porque as famílias estão desestruturadas e fracassadas, porque não se educa mais em casa, não se acompanha mais de perto, a tecnologia substitui o diálogo, presentes compram limites, direitos e deveres e não há o conhecimento e respeito a Deus.

Precisamos parar de nos omitir, de transferir culpas. A culpa é minha, é sua, de todos nós!

Quando Fábio de Melo soube da repercussão do texto atribuído, falsamente, à ele, foi ao Twitter e desmentiu o texto dizendo: “O texto que está viralizado sobre o atentado em Suzano, cujo título é ‘O melhor texto que já li sobre o acontecimento de ontem’, não foi escrito por mim” (4). Mesmo o padre desmentindo o texto e se posicionando contra o decreto das armas do governo, muitos evangélicos não pararam de divulgar o texto. As pessoas, mesmo depois de saberem que o texto não foi escrito e divulgado por Fábio de Melo, insistiram na mentira com a seguinte argumentação: “Não interessa quem escreveu, é uma verdade e pronto” (5). Os robôs da milícia digital do atual governo impulsionou essa fake news e a palavra do padre desmentindo ser o autor do falso texto já não tinha qualquer importância (6). Essa fake news é um típico caso de inversão da qual Dunker pontuou, ou seja, o texto só viralizou porque foi, supostamente, escrito por um padre conhecido, defendendo a política de armas do governo a partir de uma tragédia; quando o suposto autor desmente, ou seja, a verdade vem à tona, esta não tem mais validade porque o objetivo já foi alcançado, tornar o que é falso em verdadeiro.

Uma parcela significa de evangélicos participam imensamente desse processo de produção de fake news. Quando foram coniventes diante do uso político e descontextualizado do texto bíblico de João 8,32, mostraram que não conhecem a verdade de Jesus. Não obstante esse pecado, essa parcela de evangélicos no país vem demonstrando que não tem qualquer compromisso em pautar a realidade político-social com a verdade.

Notas:

* Alonso Gonçalves é graduado em Teologia e Filosofia. Mestre e doutorando em Ciências da Religião (Universidade Metodista de São Paulo). Pastor na Igreja Batista Central em Pariquera-Açu (São Paulo).

(1) MATEOS, Juan; BARRETO. Vocabulário teológico do evangelho de São João. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 277-283.

(2) JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 269.

(3) DUNKER, Christian. “Subjetividade em tempos de pós-verdade”. In: LITERCULTURA (Org.). Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017, p. 13.

(4) Disponível: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2019/03/15/e-fake-que-padre-fabio-de-melo-fez-texto-sobre-massacre-em-suzano-dizendo-que-armas-nao-matam.ghtml>.

(5) Li isso de uma internauta quando a questionei sobre a fake news que ela estava disseminando com o falso texto atribuído ao Pe. Fábio de Melo.

(6) Disponível: <https://revistaforum.com.br/politica/robos-de-bolsonaro-viralizam-texto-fake-de-padre-fabio-de-melo-sobre-massacre-em-suzano/>.