Extremismo religioso na política: STF recebe mensagem com ameaça ilustrada com símbolos católicos

* Matéria atualizada em 27/11/2024 às 22:28 para acréscimo de informações

O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu oito e-mails com ameaças, em 14 de novembro, um dia após o atentado a bomba em Brasília, contra o STF, que resultou na morte do autor, Francisco Luiz, caso ainda sob investigação das Polícias Civil e Federal. 

Entre as mensagens ao STF, posteriores ao atentado, uma, enviada por remetentes anônimos, contém uma fotografia que mostra uma arma de fogo ao lado de livros de temática católica, acompanhada de ameaças explícitas de futuros ataques ao tribunal. 

A informação foi divulgada pela jornalista Daniela Lima e confirmada pelo diretor-geral da Polícia Federal Andrei Passos Rodrigues.

Bereia verificou que Os dois livros que aparecem na imagem  junto a uma arma de fogo são: o ‘Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem’, de São Luís Maria Grignion de Montfort, e o ‘Catecismo da Igreja Católica’, compilado durante o pontificado do Papa João Paulo II. 

O texto associado à fotografia afirma: “Esclarecemos-vos que Francisco Luiz, agora no céu junto com o Pai, foi apenas um dos inúmeros mártires de nossa luta contra vós, a escória satânica do STF. Não descansaremos até acabar com a escória de Satanás.”

Imagem: Reprodução de e-mail enviado em forma de ameaça ao STF. Divulgação à imprensa

​​Bereia checou a possibilidade deste conteúdo ter sido produzido por um ou mais ultraconservadores católicos.

Raízes históricas do extremismo católico

Segundo pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), o conservadorismo católico no Brasil tem raízes profundas que remontam a 1922, com a fundação do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo. De acordo com o estudo desenvolvido pelo doutor em Ciências da Religião Victor Almeida Gama para o ISER, esse centro foi o irradiador de um pensamento católico autoritário, antiliberal e antissocialista, que postulava uma revolução espiritual.

Desta tradição nasceram movimentos como a Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada por Plinio Corrêa de Oliveira, que manteve forte influência na mídia brasileira através de colunas na Folha de São Paulo. Com a morte de Corrêa de Oliveira em 1995, o movimento passou por um período de adormecimento até a emergência do astrólogo católico,  conhecido como filósofo da direita radical, Olavo de Carvalho. Ele passou a ser tomado como nova referência do conservadorismo católico no Brasil.

Extremismo contemporâneo

A doutoranda em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco Ana Carolina de Oliveira Marsicano, em artigo para o ISER-Nexo Políticas Públicas-, identifica que essa tradição conservadora católica persiste hoje por meio de novos movimentos, como o Centro Dom Bosco (sediado na cidade do Rio de Janeiro), que remasterizou ideias e práticas de penetração no espaço público existentes há mais de 60 anos.

Uma personagem emblemática dessa articulação é o padre da Arquidiocese de Cuiabá Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, que representa a convergência entre o Catolicismo conservador e a Renovação Carismática Católica (RCC). 

Formado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, o religioso mantém forte influência nas mídias digitais e tem sido uma referência para grupos extremistas. Em seus posicionamentos, defende pautas como a liberação de armas e dissemina teorias conspiratórias sobre a educação brasileira.

Imagem: reprodução/Arquivo Pessoal

O Catolicismo radical também tem expressão no meio jurídico, como exemplifica o caso do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, ligado à instituição conservadora católica Opus Dei. Em 2017, ele recebeu apoio tanto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) quanto de lideranças evangélicas para ocupar uma vaga no STF, defendendo posições ultraconservadoras sobre família e direitos trabalhistas.

Especialistas comentam sobre o extremismo conservador católico

Bereia conversou com três especialistas em Catolicismo ultraconservador, Manuela Mayrink, Andrea Brasilio e Rodrigo Toniol, que abordaram o tema do extremismo católico na política. A doutoranda em Comunicação da Universidade Federal Fluminense Manuela Mayrink aponta que nomes como Brasil Paralelo, Olavo de Carvalho, padre Paulo Ricardo e os influenciadores digitais Bernardo Küster, Deia e Tiba têm algo em comum: além de serem produtores de conteúdo na internet, são católicos e transmitem suas ideias com base na proposta de construção de uma intelectualidade conservadora. 

“Não apenas propagam seus ensinamentos, como reforçam a importância de que seu público engaje na construção de uma intelectualidade de direita, tendo seus conteúdos como porta de entrada e base cientifica para a construção do conhecimento. Um discurso que se mostra muito forte neste grupo de pensadores conservadores é o da chamada ‘perda das virtudes’ que o mundo contemporâneo viveria. E é aí que se encaixa a forte presença católica nos movimentos conservadores atuais: a busca incessante pelas tradições e virtudes perdidas diante da ‘invasão comunista’”, avalia Mayrink.

A pesquisadora também observa que a ação de conservadores católicos, no entanto, muitas vezes é deixada em segundo plano, sufocada pela profusão de análises – importantes e necessárias, ela destaca – sobre o crescimento exponencial no número de evangélicos no país e sua presença na política.

Além disso, a doutoranda em Comunicação pontua que, embora mais discretos e menos presentes na mídia, os católicos, historicamente, mantiveram uma estreita relação com a alta cúpula da política nacional, e conquistaram fiéis ao longo das décadas do século 20. 

A pesquisadora ainda ressalta que as plataformas de redes sociais ajudam a potencializar discursos que sempre estiveram presentes na história do Brasil, o que faz com que sejam acessados não só por integrantes da elite intelectual e política brasileira, como por cidadãos comuns, criados a partir dessa construção conservadora em suas paróquias por todo o país. 

“Este histórico – e a análise recente do Catolicismo nos últimos anos – faz com que não seja exatamente surpreendente que a primeira ameaça recebida pelo STF pós homem-bomba em Brasília tenha sido um e-mail cujo anexo consistia em uma foto de um catecismo da Igreja Católica, um devocional mariano e uma pistola. Para os católicos radicais, o  Catecismo da Igreja Católica tem tanta ou mais relevância quanto a própria Bíblia. É algo como uma Constituição com todas as regras a serem seguidas por um bom católico. E um bom católico precisaria, em última instância, lutar pela existência de uma sociedade católica”,  finaliza Manuela Mayrink.

A doutora em Estudos da Cultura Contemporânea e professora da Universidade Federal do Mato Grosso  Andrea Basilio explica que esse fenômeno não é restrito a um único grupo religioso, mas se manifesta tanto entre católicos quanto entre evangélicos, sendo mais pronunciado entre os católicos conservadores.

Basilio menciona que a extrema direita tem utilizado de maneira intensa esse discurso político-religioso, e apropriou-se de símbolos e valores cristãos para criar um “discurso cívico-religioso” que busca mesclar pautas religiosas com pautas partidárias. 

A professora da UFMT alerta para os perigos desse fenômeno, principalmente no que diz respeito à radicalização. “Quando as pessoas começam a ver o adversário político não apenas como um adversário, mas como um inimigo, algo demoníaco, que precisa ser eliminado, isso configura um risco enorme para a sociedade”.

Outro ponto destacado por Basilio é a maneira como essa mistura entre religião e política torna muito difícil a contestação das ideias defendidas pelos membros da extrema direita religiosa. Como as pautas políticas passam a ser encaradas como parte de uma missão religiosa, questionar essas ideias se torna algo visto quase como um pecado, o que cria uma blindagem em torno dos membros desse espectro. 

Em resposta ao Bereia o doutor em Antropologia Social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rodrigo Toniol também destaca a presença significativa do Catolicismo no campo do conservadorismo religioso no Brasil, uma presença que frequentemente é ofuscada pelas análises que se concentram mais na influência dos evangélicos, na linha do que disse Manuela Mayrink. 

Para Toniol, é crucial reconhecer que os católicos têm atuado de maneira muito ativa nesse debate, pois utilizam suas próprias redes e estratégias, muitas das quais se assemelham às dos evangélicos, principalmente naos espaços digitais. Entre essas estratégias, ele aponta a disseminação de informações falsas e a construção de uma narrativa antidemocrática.

Toniol ressalta que algumas dessas ações se manifestaram em estruturas de comunicação voltadas para a propagação de desinformação, que geraram um clima de apoio a atitudes anti-democráticas no país. “É importante lembrar que, no contexto dos recentes inquéritos sobre o golpe, um dos indiciados foi o padre José Eduardo Oliveira Silva, um padre de Osasco, que teria participado de reuniões no Palácio do Planalto e ajudado a formatar a minuta do golpe”, comenta Toniol. O caso, segundo ele, é emblemático da atuação de figuras católicas no cenário político atual, e serve como um lembrete de como certos membros da Igreja Católica podem estar envolvidos em ações profundamente antidemocráticas.

O professor também faz questão de enfatizar que, embora não se deva fazer uma associação direta entre Catolicismo e conservadorismo evangélico, é inegável que há redes católicas ativas na disseminação de informações falsas e na promoção de uma agenda política alinhada a práticas antidemocráticas. Mesmo após o fim do governo Bolsonaro, essas redes continuam a operar e, como exemplificado pelo indiciamento do padre José Eduardo, essas atividades continuam a ganhar materialidade nas investigações em curso.

Padres citados no inquérito sobre atos golpistas

A divulgação do conteúdo do inquérito das investigações da Polícia Federal (PF), sobre a tentativa de golpe de Estado que culminou com os atos violentos de 8 de janeiro de 2023. trouxeram novos elementos sobre a atuação de lideranças católicas conservadoras. O padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, citado anteriormente como figura do  Catolicismo conservador, aparece em dois momentos cruciais no relatório final do inquérito.

A PF identificou trocas de mensagens entre o padre da paróquia Cristo Rei, em Várzea Grande (Mato Grosso), Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, da Diocese de Osasco. Enquanto Paulo Ricardo é um padre midiático, lançado pela TV Canção Nova, Oliveira é outro expoente do conservadorismo católico radical que mantém mais de 500 mil assinantes em suas páginas nas mídias digitais. 

Em uma das comunicações levantadas pela investigação, datada de 4 de dezembro de 2022, Paulo Ricardo confirma manter contato com o então assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins. De acordo com o relatório da PF, “os investigados ainda nutriam a esperança de consumação do golpe de Estado”.

Em correspondência eletrônica anterior enviada a Filipe Martins, o padre José Eduardo solicita audiência com o então presidente Jair Bolsonaro e menciona a participação de Paulo Ricardo. Os religiosos manifestam interesse em discutir “iniciativas que podem ser tomadas imediatamente pelo Poder Executivo” sobre a pauta contra o aborto.

O envolvimento do padre José Eduardo com as articulações antidemocráticas teve início ainda em 2018, quando prestou atendimento espiritual a Bolsonaro após o atentado sofrido durante a campanha eleitoral. A PF aponta o sacerdote como integrante do Núcleo Jurídico do esquema golpista, tendo participado de reunião no Palácio do Planalto para discutir planos de impedimento da posse do presidente eleito. O religioso chegou a elaborar uma “oração do golpe”, pedindo a Deus que “desse coragem” a generais para “salvar o Brasil”.

Histórico de ameaças e medidas de segurança 

O recebimento de ameaças tornou-se uma ocorrência constante no STF. A Corte tem enfrentado uma crescente onda de ataques verbais e digitais. De acordo com a assessoria do Tribunal, a maioria das ameaças é feita por e-mail, que utilizam tecnologias para garantir o anonimato dos remetentes. Também há registros de ameaças via ouvidoria e correspondências postais.

Desde do atentado à democracia de 8 de janeiro de 2023, o STF tem registrado uma média de três ameaças diárias, o que totaliza aproximadamente mil ocorrências até o momento, o que tem gerado preocupações sobre a segurança e a integridade da Corte.

Em resposta ao atentado, o STF intensificou suas medidas de segurança, e suspendeu as visitas públicas, além de realizar varreduras no edifício-sede e nas residências dos ministros. A administração também determinou a reinstalação de grades de proteção e o reforço no controle de acesso às dependências.

O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, em entrevista à imprensa, destacou que o responsável pelo atentado com explosivos afirmou em suas publicações nas redes que havia uma “luta contra o Supremo” e que não haveria descanso até que a Suprema Corte fosse eliminada. 

Rodrigues também comentou sobre a radicalização dos envolvidos, e destacou que havia uma preparação para o ataque e uma forte vinculação com grupos extremistas. O diretor-geral ressaltou ainda que as redes sociais, atualmente, se tornaram “território de ninguém”, onde publicações extremistas são feitas com a sensação de impunidade.

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Bereia confirma, portanto, que a notícia sobre um e-mail com discurso de ódio dirigido ao STF ser baseado em símbolos católicos, é verdadeira. O extremismo de direita também envolve pessoas e grupos com identidade católica. O ultraconservadorismo católico tem longa história no Brasil e hoje se encontra reavivado, em especial por ações nas midias sociais.

Referências de checagem:

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Nexo. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2024/03/06/direitas-catolicas-no-brasil-um-projeto-de-longa-duracao. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

Foto de capa: Agência Senado