Publicações que exaltam desempenho positivo economia da Argentina escondem grave crise social no país

“A Argentina hoje tem inflação controlada e a moeda que mais se valoriza no mundo. Já o real é a moeda que mais se desvaloriza. Como é bom ter um presidente”. Esta foi a afirmação do deputado federal de identidade evangélica Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em publicação de 2 de dezembro no seu perfil no X. A declaração foi feita no compartilhamento de uma publicação que apresenta um ranking de variação cambial das moedas em 2024.

Imagem: Reprodução/X

O mesmo ranking foi divulgado pelo presidente da Argentina Javier Milei, em seu perfil no Instagram. A informação sugere uma valorização de 40,1% do peso argentino entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, com dados atribuídos à GMA Capital baseados no BIS (Bank for International Settlements). 

O conteúdo divulgado pelo deputado faz parte de um conjunto de publicações que circulam no Brasil em exaltação da condução da economia pelo governo da direita extremista argentina Javier Milei, não só em mídias sociais mas também na grande imprensa. Essas postagens e matérias jornalísticas têm servido como material crítico ao governo Lula com forte circulação em ambientes digitais religiosos.

Imagem: Reprodução Estadão e O Globo

O levantamento utilizou como fonte o GMA Capital, com base em dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), e mostrou que entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, o peso argentino valorizou, enquanto o real apresentou desvalorização. 

Ao compartilhar os dados no Instagram, o presidente Milei afirmou que, embora ainda não tenha encerrado as atividades do Banco Central da Argentina, como planeja, conseguiu proporcionar aos argentinos “a melhor moeda do mundo”.

Imagem: Reprodução/Instagram

Bereia analisou as informações e verificou a veracidade das informações. 

O que dizem os dados

Os dados divulgados por Milei e Bolsonaro foram produzidos pela GMA Capital, consultoria financeira argentina, com base em informações do Bank for International Settlements (BIS). O BIS é uma organização internacional que atua como banco central dos bancos centrais, estabelecendo metodologias padronizadas para análise de dados financeiros globais.

Bereia fez uma verificação dos dados do  BIS, entre os meses de dezembro de 2023 e outubro de 2024,  que revela algumas discrepâncias em relação ao ranking divulgado, entretanto não foi possível determinar a metodologia utilizada pela GMA Capital. 

Imagem: Gráfico do Bank for International Settlements – entre dezembro 2023 e outubro 2024 

Segundo os dados oficiais, o real brasileiro e o peso argentino, assim como demonstra o gráfico acima e o compartilhado pelo deputado, foram as moedas que mais se desvalorizaram e se valorizaram, respectivamente. O BIS utiliza o conceito de taxa de câmbio real efetiva, que considera não apenas a variação nominal da moeda, mas também outros fatores econômicos como inflação e fluxos comerciais entre países. 

A inflação na Argentina está controlada mas…

Em outubro de 2024, a inflação na Argentina atingiu 2,7%, o menor valor desde novembro de 2021, conforme o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) divulgado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) daquele país. O resultado ocorre em meio a um ajuste econômico conduzido pelo presidente Javier Milei, que assumiu o cargo em dezembro de 2023, nas bases ultraliberais anunciadas por ele desde a campanha eleitoral. 

Entre as medidas, o governo Milei paralisou obras federais, suspendeu os repasses financeiros para os estados e retirou subsídios para serviços essenciais, incluindo água, gás, luz e transporte público. A justificativa é a contenção da recessão e a redução dos gastos públicos.

Como resultado dos cortes, no primeiro trimestre de 2024, o governo Milei alcançou o primeiro superávit fiscal desde 2008. Ele alega que o objetivo é atingir o “déficit zero” até o final do ano. Porém,  a retirada dos incentivos provocou um aumento expressivo nos preços ao consumidor e a consequente redução na capacidade de consumo da população.

Outro resultado é que a inflação na Argentina também desacelerou significativamente, tendo passado de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,7% em outubro de 2024. Essa redução é atribuída à queda no potencial de consumo da população e às medidas que restringiram a emissão de moeda pelo governo.

A desaceleração da inflação na Argentina ainda não trouxe alívio significativo para a vida da população. Os preços de serviços públicos, transporte e alimentos permanecem elevados, enquanto o salário mínimo, de 271,5 mil pesos (equivalente a 1.600 reais), não acompanha a inflação de três dígitos.  

Por outro lado, a economia enfrenta retração. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo trimestre de 2024, em relação ao mesmo período do ano anterior, resultados piores do que o esperado por analistas. Enquanto isso, cortes de subsídios e o aumento no custo de produtos básicos pressionam ainda mais os argentinos, em um cenário de salários estagnados e perda de poder de compra.

Dados positivos para quem?

Apesar de apoiadores do presidente argentino e o mercado financeiro aclamarem os resultados do dólar e  da queda da inflação argentina, os custos têm sido altos para a qualidade de vida da população. Bereia levantou os principais pontos críticos resultantes dessa política econômica conforme análises publicadas por diferentes fontes.

1. Aumento da Pobreza

Em setembro de 2024, um levantamento do Indec revelou que o número de argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou no primeiro semestre de 2024, e alcançou 15,7 milhões de pessoas, o que corresponde a 52,9% da população, ou 4,3 milhões de famílias. O Indec considera abaixo da linha da pobreza os cidadãos cujo rendimento familiar não cobre necessidades básicas como alimentação, vestuário, transporte, educação e saúde.  

Durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei, 3,4 milhões de pessoas ingressaram nessa faixa, o que representa um aumento de 11,2 pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023. Naquele período, 41,7% da população (12,3 milhões) viviam na pobreza. 

A pesquisa também apontou que 5,4 milhões de pessoas (18,1% da população) vivem em situação de indigência, um aumento em relação ao fim de 2023, quando esse grupo somava 3,5 milhões (11,9%). Entre as famílias, 1,4 milhão foram classificadas como indigentes, ante 870 mil no segundo semestre de 2023.  Indigentes são definidos pelo Indec como aqueles sem acesso a alimentos suficientes para atender às necessidades diárias de energia e proteínas. Esse aumento representa o maior crescimento da pobreza nos últimos 20 anos na Argentina.

2. Vulnerabilidade de crianças 

    Com quase 25 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza na Argentina, segundo o relatório recente do Indec, mais da metade da população, aproximadamente 53%, é pobre. A situação mais alarmante, no entanto, é a das crianças: mais de 66% dos menores de 14 anos estão na pobreza, o que significa que duas em cada três crianças vivem em condições precárias.

    Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), publicado em agosto passado, destacou que, diariamente, um milhão de crianças na Argentina vão dormir sem jantar, enquanto 1,5 milhão pulam refeições ao longo do dia. Para aqueles que ainda têm acesso à comida, o aumento nos preços dos alimentos mais nutritivos tem dificultado a alimentação saudável. A desnutrição infantil pode afetar gravemente a saúde das crianças, e comprometer o futuro do país.

    3. Queda na renda e no emprego

      Embora o desemprego na Argentina esteja relativamente baixo, com taxa de 7,6% após um aumento de 1,9 ponto no primeiro semestre de 2024, o aumento da pobreza é atribuído a outros fatores. Embora os mais vulneráveis recebam “planos sociais”, que surgiram após a crise de 2001-2002, a explicação para o crescimento da pobreza está na queda do poder de compra. Os salários não acompanharam a inflação, e isso resulta em um fenômeno novo no país: o aumento do número de trabalhadores pobres.

      Esse problema é ainda mais agravado pelo crescimento do emprego informal, que hoje representa cerca de 47% dos trabalhadores. De acordo com o Instituto Gino Germani, da Universidade de Buenos Aires, 70% dos trabalhadores informais vivem abaixo da linha da pobreza. Além disso, 30% dos trabalhadores formais, ou mais de 2 milhões de pessoas, também estão em situação de pobreza. 

      Esta crise social tem gerado protestos da população em manifestações de rua, como as realizadas nos primeiros dias de dezembro de 2024. 

      Imagem: Reprodução Veja e Clarín

      Uso dos dados positivos argentinos para criticar o governo do Brasil

      Classificado como um bom presidente pelos aliados do Brasil, como na postagem do deputado Eduardo Bolsonaro checada pelo Bereia, Milei e seus números positivos têm sido usados em contraposição ao governo Lula e a alta taxa do dólar em relação ao real nas últimas semanas.

      A desvalorização do real, que já acumula cerca de 15% desde o início de 2024, revela um cenário complexo onde os fundamentos econômicos contrastam com as movimentações do mercado financeiro. Os dados econômicos apresentados pelo ministro da Casa Civil Rui Costa, mostram um país com crescimento do PIB de 3,2% em 2023, projeção de 3,5% para 2024 e o menor índice de desemprego da série histórica, atingindo 6,2% segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

      O movimento especulativo contra o real que coloca o dólar em patamares bem superiores, ocorre em um momento em que o país mantém reservas internacionais superiores a 350 bilhões de dólares e apresenta superávit na balança comercial de US$ 1,13 bilhão e registra IPCA acumulado de 2,27% até maio de 2024, dentro da meta estabelecida.

      A pressão sobre a moeda brasileira tem características específicas do chamado “mercado”. Na prática, este se resume a cerca de 160 pessoas, principalmente executivos de bancos e instituições financeiras que participam da pesquisa Focus do Banco Central. São estes atores que dominam as operações cambiais, representando grandes conglomerados financeiros.

      A movimentação do mercado financeiro representa, no Brasil,   oposição às políticas econômicas desenvolvidas pelo atual governo,  que alega ter como prioridade garantir direitos e reduzir a pobreza e a fome. Para os atores do mercado, isto representa peso aos gastos públicos.

      Os gastos governamentais atuais são criticados por estarem em níveis elevados, conforme o discurso do mercado financeiro que pressiona por cortes no orçamento federal, ainda que o governo busque aumentar a arrecadação para atingir o déficit zero. No entanto, foi enviado ao Congresso um projeto econômico pelo governo, com foco na redução de privilégios e manutenção de direitos. Contudo, essa abordagem não atendeu às expectativas do mercado financeiro, o que resultou na alta do dólar.

      De acordo com a jornalista especializada em economia Miriam Leitão, a principal preocupação do mercado financeiro está no aumento da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) para os bancos, com o objetivo de financiar a desoneração da folha salarial de 17 setores e dos municípios com até 156 mil habitantes. Em contraste, a questão que, segundo ela, interessa a quem tem “bom coração”, é a diminuição da carga tributária sobre armas, prevista na reforma tributária.

      Mesmo com dados econômicos favoráveis, como o menor desemprego da série histórica e crescimento econômico acima do esperado, o mercado financeiro mantém pressão constante por redução de gastos públicos. A conjuntura evidencia uma postura ideológica que transcende os indicadores econômicos reais e que são centrais no pensamento neoliberal: a constante pressão por redução do papel do Estado na economia, mesmo em momentos onde os indicadores econômicos, como crescimento do PIB e geração de empregos, mostram resultados positivos.

      Bereia ouviu a jornalista argentina Cláudia Florentin Mayer, integrante do Conselho Editorial do Bereia sobre as informações que circulam com exaltação às medidas econômicas do governo Milei. Ela afirma que a valorização da moeda em relação ao dólar está atrelada à redução de 40% no valor do peso argentino necessário para a compra de dólares, em comparação com dez meses atrás. A jornalista ainda observa que essa valorização pode ser vista como um aspecto da avaliação da moeda, mas que leva em consideração apenas a taxa de câmbio.

      “Para que uma moeda seja forte, outros aspectos devem ocorrer: a produção nacional – que está em queda -, o volume do PIB (que está em queda atualmente), a renda per capita que está muito abaixo do necessário, o salário mínimo que não cobre a cesta básica, etc. Existem muitos outros fatores de falta de proteção social e de pobreza que não são medidos quando vemos apenas a queda da inflação e da moeda”. 

      Claudia Mayer também observa que as análises apontam que o governo Milei parece enfatizar unicamente o objetivo do “déficit zero”, sem considerar outros aspectos socioeconômicos relacionados à vida da população .

      ***

      Bereia classifica o conteúdo sobre a valorização do peso argentino, divulgado pelo deputado  Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para criticar a desvalorização recente do real brasileiro como impreciso. Embora os dados do Bank for International Settlements (BIS) confirmem que o peso argentino foi a moeda mais valorizada e o real a mais desvalorizada no período analisado, este dado isolado omite os contextos econômicos mais amplos dos países.

      O deputado, ao compartilhar o ranking de valorização monetária sem o devido contexto, desinforma pois induz o público a uma interpretação equivocada da situação econômica, utilizando dados isolados para construir um conteúdo que não reflete a realidade completa. Quando comparada a taxa de inflação, a Argentina acumula 193%, enquanto no Brasil a taxa é de 4,76%. Quando levados em conta os índices sociais de qualidade de vida na Argentina, a situação é bastante crítica em relação à do Brasil.

      Bereia alerta seus leitores sobre a importância de avaliar dados econômicos dentro de seu contexto mais amplo. Números são frios e precisam ser interpretados em relação a outros elementos da realidade local. Indicadores isolados, como a valorização de uma moeda, podem favorecer especuladores financeiros mas mascarar problemas econômicos estruturais quando não são analisados em conjunto com outros dados macroeconômicos relevantes. A verificação do Bereia ressalta a necessidade de buscar fontes diversas e análises mais abrangentes para compreender adequadamente a situação econômica de qualquer país.

      Referências de checagem:

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/11/13/inflacao-argentina-outubro.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/06/24/pib-argentina.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/19/recessao-na-argentina-se-aprofunda.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/26/argentina-pobreza.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/milei-divulga-ranking-mostra-peso-argentino-como-moeda-mais-valorizada-2024/ Acesso em: 3 dez 2024

      BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr4x931xnzro Acesso em: 3 dez 2024

      Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/12/16/interna_internacional,1331930/cronologia-da-crise-argentina-de-2001.shtml Acesso em: 3 dez 2024

      InfoMoney. https://www.infomoney.com.br/politica/rui-costa-diz-que-reacao-do-mercado-e-ataque-especulativo-contra-o-real/ Acesso em: 4 dez 2024

      IHU Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/640974-o-que-esta-por-tras-do-ataque-especulativo-a-moeda-brasileira Acesso em: 4 dez 2024

      Seu Dinheiro. https://www.seudinheiro.com/2024/bolsa-dolar/dolar-real-ataque-especulativo-o-que-e-rens/ Acesso em: 4 dez 2024

      ii. Documentos e bases de dados:

      Bank for International Settlements (BIS). https://www.bis.org/ Acesso em: 3 dez 2024

      Trading View – Indicadores Econômicos Globais. https://br.tradingview.com/markets/world-economy/indicators/inflation-rate/ Acesso em: 3 dez 2024

      Meio. https://www.canalmeio.com.br/2024/12/04/miriam-leitao-mercado-financeiro-teme-incerteza-fiscal-mas-aceita-autoritarismo/. Acesso em: 5 de dezembro de 2024.

      Extremismo religioso na política: STF recebe mensagem com ameaça ilustrada com símbolos católicos

      * Matéria atualizada em 27/11/2024 às 22:28 para acréscimo de informações

      O Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu oito e-mails com ameaças, em 14 de novembro, um dia após o atentado a bomba em Brasília, contra o STF, que resultou na morte do autor, Francisco Luiz, caso ainda sob investigação das Polícias Civil e Federal. 

      Entre as mensagens ao STF, posteriores ao atentado, uma, enviada por remetentes anônimos, contém uma fotografia que mostra uma arma de fogo ao lado de livros de temática católica, acompanhada de ameaças explícitas de futuros ataques ao tribunal. 

      A informação foi divulgada pela jornalista Daniela Lima e confirmada pelo diretor-geral da Polícia Federal Andrei Passos Rodrigues.

      Bereia verificou que Os dois livros que aparecem na imagem  junto a uma arma de fogo são: o ‘Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem’, de São Luís Maria Grignion de Montfort, e o ‘Catecismo da Igreja Católica’, compilado durante o pontificado do Papa João Paulo II. 

      O texto associado à fotografia afirma: “Esclarecemos-vos que Francisco Luiz, agora no céu junto com o Pai, foi apenas um dos inúmeros mártires de nossa luta contra vós, a escória satânica do STF. Não descansaremos até acabar com a escória de Satanás.”

      Imagem: Reprodução de e-mail enviado em forma de ameaça ao STF. Divulgação à imprensa

      ​​Bereia checou a possibilidade deste conteúdo ter sido produzido por um ou mais ultraconservadores católicos.

      Raízes históricas do extremismo católico

      Segundo pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), o conservadorismo católico no Brasil tem raízes profundas que remontam a 1922, com a fundação do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo. De acordo com o estudo desenvolvido pelo doutor em Ciências da Religião Victor Almeida Gama para o ISER, esse centro foi o irradiador de um pensamento católico autoritário, antiliberal e antissocialista, que postulava uma revolução espiritual.

      Desta tradição nasceram movimentos como a Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), fundada por Plinio Corrêa de Oliveira, que manteve forte influência na mídia brasileira através de colunas na Folha de São Paulo. Com a morte de Corrêa de Oliveira em 1995, o movimento passou por um período de adormecimento até a emergência do astrólogo católico,  conhecido como filósofo da direita radical, Olavo de Carvalho. Ele passou a ser tomado como nova referência do conservadorismo católico no Brasil.

      Extremismo contemporâneo

      A doutoranda em sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco Ana Carolina de Oliveira Marsicano, em artigo para o ISER-Nexo Políticas Públicas-, identifica que essa tradição conservadora católica persiste hoje por meio de novos movimentos, como o Centro Dom Bosco (sediado na cidade do Rio de Janeiro), que remasterizou ideias e práticas de penetração no espaço público existentes há mais de 60 anos.

      Uma personagem emblemática dessa articulação é o padre da Arquidiocese de Cuiabá Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, que representa a convergência entre o Catolicismo conservador e a Renovação Carismática Católica (RCC). 

      Formado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, o religioso mantém forte influência nas mídias digitais e tem sido uma referência para grupos extremistas. Em seus posicionamentos, defende pautas como a liberação de armas e dissemina teorias conspiratórias sobre a educação brasileira.

      Imagem: reprodução/Arquivo Pessoal

      O Catolicismo radical também tem expressão no meio jurídico, como exemplifica o caso do ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, ligado à instituição conservadora católica Opus Dei. Em 2017, ele recebeu apoio tanto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) quanto de lideranças evangélicas para ocupar uma vaga no STF, defendendo posições ultraconservadoras sobre família e direitos trabalhistas.

      Especialistas comentam sobre o extremismo conservador católico

      Bereia conversou com três especialistas em Catolicismo ultraconservador, Manuela Mayrink, Andrea Brasilio e Rodrigo Toniol, que abordaram o tema do extremismo católico na política. A doutoranda em Comunicação da Universidade Federal Fluminense Manuela Mayrink aponta que nomes como Brasil Paralelo, Olavo de Carvalho, padre Paulo Ricardo e os influenciadores digitais Bernardo Küster, Deia e Tiba têm algo em comum: além de serem produtores de conteúdo na internet, são católicos e transmitem suas ideias com base na proposta de construção de uma intelectualidade conservadora. 

      “Não apenas propagam seus ensinamentos, como reforçam a importância de que seu público engaje na construção de uma intelectualidade de direita, tendo seus conteúdos como porta de entrada e base cientifica para a construção do conhecimento. Um discurso que se mostra muito forte neste grupo de pensadores conservadores é o da chamada ‘perda das virtudes’ que o mundo contemporâneo viveria. E é aí que se encaixa a forte presença católica nos movimentos conservadores atuais: a busca incessante pelas tradições e virtudes perdidas diante da ‘invasão comunista’”, avalia Mayrink.

      A pesquisadora também observa que a ação de conservadores católicos, no entanto, muitas vezes é deixada em segundo plano, sufocada pela profusão de análises – importantes e necessárias, ela destaca – sobre o crescimento exponencial no número de evangélicos no país e sua presença na política.

      Além disso, a doutoranda em Comunicação pontua que, embora mais discretos e menos presentes na mídia, os católicos, historicamente, mantiveram uma estreita relação com a alta cúpula da política nacional, e conquistaram fiéis ao longo das décadas do século 20. 

      A pesquisadora ainda ressalta que as plataformas de redes sociais ajudam a potencializar discursos que sempre estiveram presentes na história do Brasil, o que faz com que sejam acessados não só por integrantes da elite intelectual e política brasileira, como por cidadãos comuns, criados a partir dessa construção conservadora em suas paróquias por todo o país. 

      “Este histórico – e a análise recente do Catolicismo nos últimos anos – faz com que não seja exatamente surpreendente que a primeira ameaça recebida pelo STF pós homem-bomba em Brasília tenha sido um e-mail cujo anexo consistia em uma foto de um catecismo da Igreja Católica, um devocional mariano e uma pistola. Para os católicos radicais, o  Catecismo da Igreja Católica tem tanta ou mais relevância quanto a própria Bíblia. É algo como uma Constituição com todas as regras a serem seguidas por um bom católico. E um bom católico precisaria, em última instância, lutar pela existência de uma sociedade católica”,  finaliza Manuela Mayrink.

      A doutora em Estudos da Cultura Contemporânea e professora da Universidade Federal do Mato Grosso  Andrea Basilio explica que esse fenômeno não é restrito a um único grupo religioso, mas se manifesta tanto entre católicos quanto entre evangélicos, sendo mais pronunciado entre os católicos conservadores.

      Basilio menciona que a extrema direita tem utilizado de maneira intensa esse discurso político-religioso, e apropriou-se de símbolos e valores cristãos para criar um “discurso cívico-religioso” que busca mesclar pautas religiosas com pautas partidárias. 

      A professora da UFMT alerta para os perigos desse fenômeno, principalmente no que diz respeito à radicalização. “Quando as pessoas começam a ver o adversário político não apenas como um adversário, mas como um inimigo, algo demoníaco, que precisa ser eliminado, isso configura um risco enorme para a sociedade”.

      Outro ponto destacado por Basilio é a maneira como essa mistura entre religião e política torna muito difícil a contestação das ideias defendidas pelos membros da extrema direita religiosa. Como as pautas políticas passam a ser encaradas como parte de uma missão religiosa, questionar essas ideias se torna algo visto quase como um pecado, o que cria uma blindagem em torno dos membros desse espectro. 

      Em resposta ao Bereia o doutor em Antropologia Social e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rodrigo Toniol também destaca a presença significativa do Catolicismo no campo do conservadorismo religioso no Brasil, uma presença que frequentemente é ofuscada pelas análises que se concentram mais na influência dos evangélicos, na linha do que disse Manuela Mayrink. 

      Para Toniol, é crucial reconhecer que os católicos têm atuado de maneira muito ativa nesse debate, pois utilizam suas próprias redes e estratégias, muitas das quais se assemelham às dos evangélicos, principalmente naos espaços digitais. Entre essas estratégias, ele aponta a disseminação de informações falsas e a construção de uma narrativa antidemocrática.

      Toniol ressalta que algumas dessas ações se manifestaram em estruturas de comunicação voltadas para a propagação de desinformação, que geraram um clima de apoio a atitudes anti-democráticas no país. “É importante lembrar que, no contexto dos recentes inquéritos sobre o golpe, um dos indiciados foi o padre José Eduardo Oliveira Silva, um padre de Osasco, que teria participado de reuniões no Palácio do Planalto e ajudado a formatar a minuta do golpe”, comenta Toniol. O caso, segundo ele, é emblemático da atuação de figuras católicas no cenário político atual, e serve como um lembrete de como certos membros da Igreja Católica podem estar envolvidos em ações profundamente antidemocráticas.

      O professor também faz questão de enfatizar que, embora não se deva fazer uma associação direta entre Catolicismo e conservadorismo evangélico, é inegável que há redes católicas ativas na disseminação de informações falsas e na promoção de uma agenda política alinhada a práticas antidemocráticas. Mesmo após o fim do governo Bolsonaro, essas redes continuam a operar e, como exemplificado pelo indiciamento do padre José Eduardo, essas atividades continuam a ganhar materialidade nas investigações em curso.

      Padres citados no inquérito sobre atos golpistas

      A divulgação do conteúdo do inquérito das investigações da Polícia Federal (PF), sobre a tentativa de golpe de Estado que culminou com os atos violentos de 8 de janeiro de 2023. trouxeram novos elementos sobre a atuação de lideranças católicas conservadoras. O padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, citado anteriormente como figura do  Catolicismo conservador, aparece em dois momentos cruciais no relatório final do inquérito.

      A PF identificou trocas de mensagens entre o padre da paróquia Cristo Rei, em Várzea Grande (Mato Grosso), Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, da Diocese de Osasco. Enquanto Paulo Ricardo é um padre midiático, lançado pela TV Canção Nova, Oliveira é outro expoente do conservadorismo católico radical que mantém mais de 500 mil assinantes em suas páginas nas mídias digitais. 

      Em uma das comunicações levantadas pela investigação, datada de 4 de dezembro de 2022, Paulo Ricardo confirma manter contato com o então assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins. De acordo com o relatório da PF, “os investigados ainda nutriam a esperança de consumação do golpe de Estado”.

      Em correspondência eletrônica anterior enviada a Filipe Martins, o padre José Eduardo solicita audiência com o então presidente Jair Bolsonaro e menciona a participação de Paulo Ricardo. Os religiosos manifestam interesse em discutir “iniciativas que podem ser tomadas imediatamente pelo Poder Executivo” sobre a pauta contra o aborto.

      O envolvimento do padre José Eduardo com as articulações antidemocráticas teve início ainda em 2018, quando prestou atendimento espiritual a Bolsonaro após o atentado sofrido durante a campanha eleitoral. A PF aponta o sacerdote como integrante do Núcleo Jurídico do esquema golpista, tendo participado de reunião no Palácio do Planalto para discutir planos de impedimento da posse do presidente eleito. O religioso chegou a elaborar uma “oração do golpe”, pedindo a Deus que “desse coragem” a generais para “salvar o Brasil”.

      Histórico de ameaças e medidas de segurança 

      O recebimento de ameaças tornou-se uma ocorrência constante no STF. A Corte tem enfrentado uma crescente onda de ataques verbais e digitais. De acordo com a assessoria do Tribunal, a maioria das ameaças é feita por e-mail, que utilizam tecnologias para garantir o anonimato dos remetentes. Também há registros de ameaças via ouvidoria e correspondências postais.

      Desde do atentado à democracia de 8 de janeiro de 2023, o STF tem registrado uma média de três ameaças diárias, o que totaliza aproximadamente mil ocorrências até o momento, o que tem gerado preocupações sobre a segurança e a integridade da Corte.

      Em resposta ao atentado, o STF intensificou suas medidas de segurança, e suspendeu as visitas públicas, além de realizar varreduras no edifício-sede e nas residências dos ministros. A administração também determinou a reinstalação de grades de proteção e o reforço no controle de acesso às dependências.

      O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, em entrevista à imprensa, destacou que o responsável pelo atentado com explosivos afirmou em suas publicações nas redes que havia uma “luta contra o Supremo” e que não haveria descanso até que a Suprema Corte fosse eliminada. 

      Rodrigues também comentou sobre a radicalização dos envolvidos, e destacou que havia uma preparação para o ataque e uma forte vinculação com grupos extremistas. O diretor-geral ressaltou ainda que as redes sociais, atualmente, se tornaram “território de ninguém”, onde publicações extremistas são feitas com a sensação de impunidade.

      ***

      Bereia confirma, portanto, que a notícia sobre um e-mail com discurso de ódio dirigido ao STF ser baseado em símbolos católicos, é verdadeira. O extremismo de direita também envolve pessoas e grupos com identidade católica. O ultraconservadorismo católico tem longa história no Brasil e hoje se encontra reavivado, em especial por ações nas midias sociais.

      Referências de checagem:

      Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/tags/8-de-janeiro Acesso em: 18 nov 2024

      CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/saiba-quem-e-homem-que-morreu-apos-explosoes-na-praca-dos-tres-poderes/ Acesso em: 18 nov 2024

      CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ameacas-stf-recebe-e-mails-anonimos-apos-atentado/ Acesso em: 18 nov 2024

      CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/homem-bomba-saiba-tudo-o-que-aconteceu-nas-24-horas-seguintes-ao-ataque/ Acesso em: 18 nov 2024

      Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/11/stf-recebeu-tambem-ameacas-por-email-diz-chefe-da-pf.shtml Acesso em: 18 nov 2024

      G1. https://g1.globo.com/politica/blog/daniela-lima/post/2024/11/14/apos-o-atentado-stf-recebe-ameaca-por-e-mail.ghtml. Acesso em 18 de novembro de 2024.

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      Notícias STF. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/nota-do-stf-sobre-incidente-na-praca-dos-tres-poderes/ Acesso em: 19 nov 2024

      Notícias STF. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/ministros-repudiam-atenta%E2%80%A6forcam-necessidade-de-responsabilizacao-por-atos-contra-democracia/ Acesso em: 19 nov 2024

      CBN. https://cbn.globo.com/brasil/noticia/2024/11/15/stf-recebe-mais-de-uma-ameca-por-dia-desde-8-de-janeiro-de-2023-nove-emails-foram-enviados-a-corte-apos-atentado-de-quarta-feira-13.ghtml Acesso em: 19 nov 2024

      Poder360. https://www.poder360.com.br/poder-justica/stf-recebeu-cerca-de-1-000-ameacas-desde-o-8-de-janeiro/ Acesso em: 19 nov 2024

      BCC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp9zj2r3jkyo. Acesso em 22 de novembro de 2024.

      G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/11/21/padre-de-osasco-e-um-dos-37-indiciados-em-inquerito-sobre-tentativa-de-golpe-ele-e-citado-como-integrante-do-nucleo-juridico-do-esquema.ghtml. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

      Mídia Ninja. https://midianinja.org/opiniao/padre-paulo-ricardo-cavaleiro-de-batina-do-apocalipse-pandemico/. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

      Nexo. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/10/25/catolicos-e-reacionarios-o-catolicismo-como-motor-explicativo-do-conservadorismo-no-brasil. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

      Nexo. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2024/03/06/direitas-catolicas-no-brasil-um-projeto-de-longa-duracao. Acesso em 24 de novembro de 2024. 

      Foto de capa: Agência Senado