Imprensa erra ao usar o termo “seita” na cobertura sobre a morte de artista de Parintins (AM)
* Matéria atualizada às 18:24 para ajuste de título
A partir do último 28 de maio, a morte da artista e empresária Djidja Cardoso tomou repercussão nacional. O caso enigmático ganhou espaço nas mídias e gerou comoção e curiosidade. Por causa de seu papel como “sinhazinha” do Boi Garantido, no Festival Folclórico de Parintins, Djidja era uma pessoa conhecida, e sua morte precoce, aos 32 anos, gerou visibilidade às práticas de cunho místico que sua família assimilou, que incluíam o consumo de drogas ilegais.
A principal suspeita é de que a morte da artista tenha relação com uma overdose de cetamina, droga usada como anestésico, analgésico e no tratamento da depressão, que também causa alucinações e dependência química. Seu uso recreativo é ilegal. A mãe de Djidja, Cleusimar Cardoso, seu irmão, Ademar Cardoso, e funcionários do salão de beleza da família foram detidos, suspeitos de participar de rituais místicos, nos quais faziam uso indiscriminado da droga.
O grupo, que se denominava “Pai, Mãe, Vida”, realizava cultos em que os participantes utilizavam cetamina para, supostamente, alcançar um estado espiritual pleno. Também há suspeita de abuso sexual e cárcere privado envolvendo os rituais, que estão sendo investigadas pela polícia.
O nome “Pai, Mãe, Vida”, que estava presente no perfil do Instagram de todos os envolvidos da família de Djidja Cardoso, faz referência a uma prece encontrada no livro “As Cartas de Cristo“.
Imagem: reprodução/Instagram
O livro em questão foi publicado pela Almenara Editorial, uma editora cujo propósito é “expandir a consciência do leitor nas direções em que o levem a sua jornada pessoal”, para que tais leitores “sejam sustentáculos para a transformação da Terra no atual processo de transição planetária”. Essa obra, de autoria anônima, tem diversos leitores e admiradores no Brasil. É possível encontrar no Facebook, por exemplo, grupos dedicados ao seu estudo, alguns com milhares de seguidores.
Seguidores deste livro afirmam que a obra foi psicografada, ou seja, ditada pelo espírito do próprio Jesus para uma médium inglesa, que preferiu não ser identificada. A obra trata de ensinamentos para “expansão da consciência” e traz uma nova interpretação sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, não como uma divindade como no Cristianismo, mas como um ser humano iluminado.
Embora o livro “As Cartas de Cristo” tenha sido encontrado na casa da família Cardoso e ela tenha se apropriado da crença na prece “Pai, Mãe, Vida”, não existe uma relação direta entre o conteúdo desse livro e o uso de psicotrópicos em rituais, nem dos outros seguidores desses ensinamentos, com as práticas ilegais adotadas.
A cobertura da imprensa sobre o caso utilizou fartamente o termo “seita” para se referir à família de Djidja e às pessoas próximas envolvidas nessas práticas.
Imagem: reprodução/G1
Imagem: reprodução/Site Metrópoles
Imagem: reprodução/CNN Brasil
Bereia apurou se caso tem relação com uma seita religiosa, ou se o termo “seita” tem sido usado de forma generalizada e incorreta pela imprensa.
Grupo religioso ou seita? Do que se trata?
Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, “seita é um termo de conotação quase sempre pejorativa”. Neto, que é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atuando nas áreas de Bioética, Igreja, Sociedade e Cultura e Doutrina Social da Igreja, uma seita é definida por um grupo de pessoas que partilham um conjunto de crenças religiosas ou filosóficas, diferentes daquelas que praticam os grupos hegemônicos. Em síntese, uma seita é uma crença ou uma religião que ocupa posição subalterna em uma sociedade.
Uma seita é sempre uma dissidência, uma nova forma de interpretar e enxergar a realidade. Assim, lançam mão de diferentes artifícios para recrutar e manter os adeptos – como a persuasão -, utilizam uma literatura para basear o grupo intelectualmente e podem até mesmo fazer uso de substâncias alucinógenas.
A American Psychological Association (APA) define uma seita como um “grupo religioso ou quase religioso caracterizado por crenças incomuns ou atípicas, isolamento do mundo exterior e uma estrutura autoritária”.
Para o pesquisador associado do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Clemir Fernandes, ouvido por Bereia, o termo seita é inadequado no caso do grupo familiar “Pai, Mãe, Vida”. Para Fernandes, a reunião
“… de três pessoas de uma mesma família com uso dessas drogas, como descritas nas matérias jornalísticas e que se apropriavam de alguma linguagem religiosa não configura uma seita. Pois seita, sociologicamente, é um grupo que se segmentou de um grupo maior e toma um caminho diferente, às vezes até mais radical.”
No caso em questão, não há indícios de uma dissidência de uma religião maior, e também se trata de um número pequeno de pessoas, com vinculação a uma mesma família. Para o pesquisador, “[esse caso] nem é um grupo religioso também, porque três pessoas de uma mesma família não configuram [um ajuntamento de motivação religiosa], embora tivesse uma ou outra pessoa de fora da família ali naquele conjunto.”
Cobertura desinformativa da imprensa
O pesquisador Clemir Fernandes faz um alerta sobre o uso indiscriminado desses termos (seita e grupo religioso), por parte da imprensa. Para Fernandes, um caso como esse levanta questões de outros campos, dentro da própria relação familiar. Mesmo que haja, sim, o uso de linguagem religiosa e até menção a um livro religioso, não é possível classificar esse grupo como seita ou usar a nomenclatura “grupo religioso”.
Um dos capítulos do Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011 – 2015): Resultados Preliminares, produzido pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, do governo Dilma Rousseff, mostra que a imprensa oferece conteúdo defasado, equivocado e preconceituoso no tratamento de temas relacionados à religião e acaba promovendo intolerância.
O relatório reporta como jornais e portais de notícias relatam os casos de intolerância e violência religiosa que ocorrem no país, demonstrando como a maioria dos casos são mal tratados pelas mídias brasileiras, por desconhecimento, falta de apuração devida e condução a partir de conceitos prévios sobre as religiosidades. O texto indica que, em relação a linha editorial das mídias, dependendo da sensibilidade dada às ocorrências do campo da religião, violência e intolerância religiosa podem ser reprimidas, contempladas ou ainda narradas de modo tendencioso nas pautas.
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Bereia classifica o uso dos termos “seita” e “grupo religioso”, na cobertura da imprensa, no caso da morte de Djidja Cardoso, como impreciso. As circunstâncias envolvidas não dizem respeito, conceitualmente, a uma seita ou a um grupo religioso. Pela dimensão pequena da práticas místicas que estão atreladas ao caso, que dizem respeito apenas ao círculo familiar e a pessoas próximas (funcionários de um salão de beleza), elas não podem ser consideradas práticas de uma seita, mesmo que se utilizem de linguagem religiosa para embasar os atos classificados como ilícitos. Desta forma, esses termos, erroneamente utilizados nas matérias jornalísticas, ganham caráter sensacionalista, não informam e atuam para reforçar preconceitos e intolerância religiosa.
Referências de checagem:
Portal G1
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/06/10/salvamento-da-djidja-familiares-criaram-grupo-no-whatsapp-para-discutir-como-tirar-ex-sinhazinha-de-crise.ghtml Acesso em 11 JUN 24
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/06/02/caso-djidja-seita-criada-por-familia-envolvia-figuras-biblicas-uso-de-drogas-e-alucinacoes-diz-investigacao.ghtml Acesso em 11 JUN 24
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/06/03/o-que-ja-se-sabe-e-o-que-falta-saber-sobre-morte-da-ex-sinhazinha-djidja-cardoso.ghtml Acesso em 11 JUN 24
https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/05/31/mae-e-irmao-de-ex-sinhazinha-lideravam-grupo-que-forcava-uso-de-droga-em-rituais-diz-policia.ghtml Acesso em 11 JUN 24
https://g1.globo.com/saude/noticia/2024/05/31/cetamina-entenda-o-que-e-a-droga-usada-em-ritual-mantido-por-presos-apos-morte-de-djidja-cardoso.ghtml Acesso em 11 JUN 24
UOL Notícias
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/06/09/familia-de-djidja-usava-cha-alucinogeno-e-remedio-para-cavalos-diz-policia.htm Acesso em 11 JUN 24
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/06/03/caso-didja-o-que-e-a-seita-pai-mae-vida-que-envolve-drogas-e-estupros.htm Acesso em 11 JUN 24
Portal Terra
https://www.terra.com.br/diversao/caso-djidja-ex-namorado-e-coach-sao-presos-por-envolvimento-em-seita-da-ketamina,f155dff219dec3f4965c72254f5cc0aallwe57op.html Acesso em 11 JUN 24
O Antagonista
https://oantagonista.com.br/brasil/seita-religiosa-e-drogas-morte-de-djidja-cardoso-revela-esquema-sombrio/ Acesso em 11 JUN 24
CNN Brasil
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-djidja-cardoso-familia-de-ex-sinhazinha-liderava-seita-que-promovia-uso-de-ketamina-diz-policia/ Acesso em 11 JUN 24
Metro World News
https://www.metroworldnews.com.br/foco/2024/06/07/pai-mae-vida-entenda-a-seita-relacionada-com-o-caso-de-djidja-cardoso/ Acesso em 11 JUN 24
BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cedgzq7exx4o Acesso em 11 JUN 24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgewpyxvyvo Acesso em 11 JUN 24
American Psychological Association
https://www.apa.org/ Acesso em 11 JUN 24
Almenara Editorial
https://www.almenaraeditorial.com.br/ Acesso em 13 JUN 24
Cartas de Cristo
https://www.somostodosum.com.br/blog-autoconhecimento/as-cartas-de-cristo-carta–parte–como-meditar-a-prece-11030.html Acesso em 12 JUN 24
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/cnrdr/pdfs/relatorio-de-intolerancia-e-violencia-religiosa-rivir-2015/view Acesso em 14 JUN 24
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Foto de capa: reprodução mídias sociais