Não precisava ter sido assim

Tão logo aprendi a decifrar algumas palavras, fiquei viciado em leitura. Filho de professores, fazia a festa com livros de vários tipos e, claro, pilhas enormes de gibis.
✝️ Renato Ouverney ✝️ Rosani Escobar ✝️ Derni Escobar

Sempre que chegava o jornal mensal da igreja, chamava minha mãe e juntos líamos o necrológio. As fotos eram a primeira coisa que nos chamava a atenção. Emocionada, dona Edna fazia comentários curtos e contritos: “Tão jovem”, “Pena da família”, “Muito triste”…
✝️ Sebastião Misael de Vasconcelos ✝️ Odonel Cesário de Oliveira ✝️ Izidoro Leles dos Santos

Março de 2020. O mundo iniciou a contabilização das primeiras vítimas do coronavírus. Na América, líderes dos Estados Unidos, México e Brasil menosprezaram a pandemia incipiente. Protagonizavam um pastiche insano do quadro “Bonaparte visitando as vítimas da peste de Jafa”, distribuindo apertos de mãos e frases escarnecedoras.
✝️ João Batista Oliveira ✝️ Agamenon Messias Novaes ✝️ Jean Madeira

Exasperado ao ver diariamente a ciência sendo substituída pelo negacionismo, iniciei uma série de posts mostrando o rosto das vítimas de covid-19. Lembrando a frase de Stálin, “uma única morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.
✝️ José Carlos Simões ✝️ Benedito Silva ✝️ Vaval

Cada relato lido despedaçava meu coração. Molhei o teclado várias vezes. Muitos leitores compartilhavam os posts, tecendo uma rede de lamento e de tristeza.
✝️ Sivaldo Tavares ✝️ Marcos Tosta ✝️ Valdomiro Rosa

Confirmando os piores vaticínios, a doença deixou de ser algo distante e começou a chegar aos nossos círculos próximos. Pressionados, políticos de todas as esferas adotaram medidas tipo sanfona. O som produzido foi desafinado e catastrófico. O total de mortes só aumentava.
✝️ Gabriel Gonçalves ✝️ Manoel Gomes ✝️ Salatiel Silvestre

A essa altura, o grupo negacionista já se havia transmutado em nau dos insensíveis e a galera da ciência em Joões Batista clamando no deserto verde-amarelo. Pra completar o cenário distópico, um número cada vez maior de pastores aparecia nos obituários.
✝️ Werbston Gomes ✝️ Mauricio de Souza Reis ✝️ Aécio Alves

Passei a receber dos leitores notícias da morte de líderes em todo o país. Pessoas simples e doutas. Jovens e experientes no ministério. Negacionistas e conscientes. O aguilhão mortal do coronavírus não poupa ninguém.
✝️ João Maria Valentim ✝️ Isa Prando ✝️ Ângelo André Tristão

Iniciei a postagem de fotos e relatos breves sobre pastores cuja vida foi ceifada pela doença. Sempre omiti a eventual postura de negação da doença, embora isso provavelmente tenha contribuído para a falta de cuidado nas medidas preventivas.
✝️ Márcio Oliveira ✝️ Osmar Zizemer ✝️ Gelson Sardinha

O sofrimento das famílias sempre falou mais alto. Poderia eu pespegar um rótulo naquele homem feliz segurando o netinho nos braços? E aquele ancião ajoelhado no púlpito? O líder emocionado no tanque de batismo foi muito maior que seus erros fortuitos. Ninguém pode ser eternizado pelos seus piores momentos. Todos somos carentes da graça infinita do Eterno.
✝️ Antônio Lins ✝️ Pedro Araújo ✝️ Alexandre Mariano

Enquanto escrevo estes parágrafos curtos, o Brasil responde sozinho por cerca de 30% de todas as mortes por covid no mundo. Temos apenas 3% da população global. Somos o atual epicentro da pandemia. Aludindo ao texto pungente de São João da Cruz, estamos vivenciando a “Noite Escura da Alma”.
✝️ Samuel Leonardo ✝️Gilmar Dias Carneiro ✝️ Darly Inacio Nunes

Professores recomendam que um texto tenha introdução, desenvolvimento e conclusão. O que escrever quando não há vacinas em quantidade suficiente e a única conclusão possível é que não precisava ter sido assim? “Ah, se vocês soubessem em que escuridão estamos mergulhados”, diria Santa Teresa de Lisieux.
✝️ Francisco Rodson dos Santos Souza ✝️ Cícero Ferreira de Lima ✝️ Ângela Gouveia de Lima

Não há despedida. Não há o cântico de hinos que falam sobre o céu. Não há abraços. Não há flores. Não há carinhos embebidos em lágrimas. Não há expressões de consolo. Não há homenagens. Protocolos rígidos confinam espectadores ao longe, ampliando a agonia excruciante. Participaram de momentos felizes e tristes de muitas pessoas, celebrando batizados, casamentos e funerais. No último adeus, o corpo físico jaz em completa solidão.
✝️ Lázaro Alves Ferreira ✝️ Manoel Gomes de Souza ✝️ Paulo Fernando Ferreira da Cruz

Notificação de nova mensagem. Outro casal de pastores faleceu com poucas horas de diferença. Já esgotei todas as expressões que vi minha mãe usar. Na Semana Santa, mitiga a aflição recordar que a morte não tem a palavra final. Antes de outro post, minha prece clamando ao Doador da vida que ressuscite em nós a empatia, a compaixão e o amor.
✝️ Adão Crissanto de Lima ✝️ Sérgio Mendes Ferreira ✝️ Carlos Dutra


Nota

O Coletivo Bereia se solidariza com familiares e com as igrejas dos pastores e das pastoras mortas pela pandemia de covid-19 no Brasil, tanto os/as citados neste belo texto de Sérgio Pavarini, quanto aqueles/as dos quais não há conhecimento público. Nesta Páscoa, o Bereia empenha toda sua esperança na superação deste drama que vive o País e se empenha em continuar produzindo informação comprometida com a vida e a saúde pública.

***

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

É errado falar em fake news?

Eu gostaria de ter escrito este texto com uma defesa do termo fake news. Os argumentos estavam desenhados na minha cabeça, com as bases conceituais e teóricas para embasar, antes de me dar conta de que seria desnecessário. A realidade segue em frente para mostrar que aqueles que brigam com ela, mais cedo ou mais tarde, são relegados para escanteio da produção intelectual e prática.

Não desmereço os argumentos contra o uso do termo. São, muitas vezes, bem embasados – na teoria e na experiência concreta. O mais recente que ouvi veio de um professor que falou que fake news seriam uma banalização do processo, e que deveríamos chamá-las pelo que “realmente são: mentiras”. Este mesmo argumento já ouvi de cientistas políticos – mais em conversas do que no seio de artigos ou dissertações. “Se é fake, não pode ser news” é o mais comum.

Este último parte de um pressuposto que soa mais como um elogio à profissão do que uma observação empírica da realidade: a de que a verdade factual é inerente ao formato “news”, ou “notícia”. O que faz sentido para deslegitimar o termo “fake news”. Seria uma contradição. Porém, o termo segue sendo empregado, não apenas por políticos que querem desvalidar seus oponentes ou a imprensa (que não é, idealmente, aliada ou oponente de nenhum deles), mas também por consumidores de informações e notícias cotidianamente.

Em meu experimento, que pode ser lido na íntegra aqui, coloquei diversos indivíduos em espaços assíncronos (grupos virtuais semiprivados) e pedi que compartilhassem comigo as fake news que recebessem. Pretendia entender o que tomavam por fake news, para além dos limites acadêmicos. O que encontrei foi toda uma variedade de produtos informacionais, de peças de comunicação, que mostram como essa visão elitista de “não vamos chamar de fake news” é mais uma demagogia acadêmica do que um olhar para a concretude.

Piadas envolvendo variantes linguísticas, listas de frutas boas para enfermidades, memes, argumentos históricos, críticas a personalidades, toda uma gama de conteúdos foi chamada de “fake news” por quem não mergulha nas reflexões teóricas do assunto. É assim que o termo é lido no cotidiano por quem consome esse mesmo conteúdo. E é por isso que querer abolir o termo “fake news” é mais um desserviço acadêmico baseado no ego do que um primar pela qualidade do debate.

Quando tentamos abolir as adoções e empregos de um termo, estamos nos cegando para toda a discursividade e todos os sentidos que aquele termo assume no contexto social dado. É uma imposição de cima para baixo, que não apenas não vai ter efeito algum, como vai aumentar o abismo entre a ciência e o cotidiano, entre o falar dos acadêmicos e as conversações que constroem os hábitos. E cega, claro, os cientistas para as mil maneiras como o termo e suas acepções serão tratados na concretude das relações humanas.

A expressão está aí, é empregada e assim como quem quis abolir a palavra “shopping” quando do começo de sua adoção, está fadado a ser enxergado como uma nota de rodapé curiosa, alguém que tentou parar a inevitável roda do tempo. Nós lembramos, comentamos, mas no fim das contas, ele não vingou – uma pena, tinha um ponto, mas não viu o todo.

O que podemos observar pela adoção do termo “fake news” é que o “news” deixa de estar associado, no entendimento popular, a uma ética na e para a informação, e passa a ser visto como um formato, replicado, em que a adoção ou não de uma ética para com a verdade determinará o emprego desse agora sufixo “fake”. São as formas de atribuir essa ética, às formas de discutir os formatos inerentes às “news”, os contextos de acusação de “isso são fake news” que deveriam interessar nossa visão sobre o assunto.

A adoção usada por Lucia Santaella e Eugênio Bucci tem sido uma das melhores que vejo até o momento – não se negam nem se demoram na discussão sobre a adoção do termo “fake news”, mas procuram observar os contextos em que o termo é empregado para, a partir deles, traçar uma teoria. Desinformação, pós-verdade, e as discussões que os envolvem são essenciais – esses são termos que se desenvolvem nas pesquisas levando em consideração que “fake news” é usado e circula de dentro para fora da academia sem imposição. Também são construídos na dialética.

Enfim, acredito ter expressado os incômodos que tenho com a relutância da adoção de fake news (sem itálico, sem aspas, um produto comunicacional em si) como termo. Agora, no campo da crença, realmente não vejo necessidade de grandes esforços para vencer essa discussão. Basta me recostar e assistir o termo gradativamente tomar as produções científicas e leigas, agregar-se aos dicionários e receber cada vez melhores abordagens – cada vez mais desprovidas de ego que recusam a enxergar a falta de crédito em que as instituições caíram a ponto de “news” poder, sim, comportar o adjetivo “fake”.