Estamos conectados, porém divididos

*Publicado originalmente no Medium.

A autocrítica é o maior desafio de todos nós. Olhar o argueiro no olho do meu irmão é muito fácil. Difícil é enxergar a trave que está no meu olho. E aqui eu tento escrever um texto na autocrítica do meu pensar e agir. Por isso peço, desde já, compreensão e que todos nós enxerguemos a trave que está no nosso próprio olho.

Parece que as mídias sociais, neste instante, se elevam — ou se rebaixam — a um nível das desigualdades interacionais. O fato de bloquear alguém em determinada mídia social não se configura em apenas bloquear, mas apagar esse “outro”, que na verdade, é o meu próximo.

Na comunicação, o outro sempre foi uma das peças mais importantes do relacionamento comunicativo, pois sem o outro não há interação humana. Gerações dos anos 1980 e 90 lembram do símbolo gestual do “corta aqui” (um gesto feito para alguém “cortar” os dedos indicadores). Mesmo sendo uma experiência traumática para os interlocutores, tal atitude levava sempre em conta o outro. Pensávamos da seguinte forma: como conviver com esse outro, que acabei de romper relações, se ele estuda comigo? Como me comportar diante dessa circunstância, se na sala de aula ele senta ao meu lado? Como lidar com o rompimento se esse outro é sempre aquele que fisicamente está próximo de mim?

Mas, afinal, quem é meu próximo na internet? O doutor em Teologia, Antonio Sparado, no livro Ciberteologia, escreve que “o conceito de ‘próximo’ está originalmente ligado à proximidade, isto é, à vizinhança espacial. A ruptura na proximidade acontece devido ao fato de a vizinhança ser estabelecida através da mediação tecnológica pela qual está ‘perto’ de mim, isto é, próximo, quem estiver ‘conectado’ comigo. Portanto, arrisco estar ‘longe’ de um amigo meu que mora perto e que não está no Facebook e usa pouco o e-mail, e, por outro lado, sentir-me ‘perto’ de uma pessoa que nunca encontrei, que se tornou minha ‘amiga’ porque é amiga de um amigo meu e com a qual tenho uma troca frequente na rede” (SPADARO, 2012, p. 63).

A distância geográfica e a aproximação comunicativa que a internet nos proporciona potencializam esse “apagamento do outro”. Se não vejo ou não verei aquela pessoa fisicamente parece ser mais fácil bloqueá-la. Mas temos de ter a consciência de que bloquear é simplesmente apagar. É tornar-se invisível e deixar o outro invisível, mesmo que a qualquer momento, esse bloqueio venha ser interrompido.

No entanto, isso gera uma bolha para ambos os lados. Reconheço que eu, ao bloquear pessoas no Facebook, por exemplo, acabo sendo vítima de um outro dilema: a bolha do pensamento homogêneo. É a mesma coisa da torcida única. E cada vez mais as nossas mídias sociais estão se tornando uma arena única. Tal consciência nos proporciona a viver com esse dilema, pois quem nunca bloqueou alguém em alguma rede social? “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”.

É óbvio que toda relação social deve estar ancorada no respeito e na consideração, ou seja, a amizade funciona como um contrato do tipo: você respeita o que eu falo e eu respeito o que você fala, mesmo que venhamos a ter conflitos, pois nem sempre concordamos 100% com qualquer pessoa deste mundo. Discordamos, algumas vezes, até dos nossos próprios pais. Mas quando se fere esse contrato de amizade digital, o bloqueio parece ser a primeira solução e, consequentemente ou não, pode reverberar na relação física dos indivíduos. Isso porque várias pessoas que bloqueamos em nossas mídias sociais são as mesmas pessoas que convivemos fisicamente.

Spadaro (2012, p. 61) afirma que “o ciberespaço (a internet) é um lugar emocionalmente quente e não tecnologicamente gélido, como se poderia imaginar. Se a rede, chamada para conectar, na realidade acaba por isolar, então está traindo a si mesma, o seu significado”. E é aqui que as nossas relações se tornam cada vez mais fluídas/líquidas, na linguagem do sociólogo Bauman.

Isso também é potencializado pelo próprio algoritmo que opera na rede. Vivemos em um mundo plural, informacional e conectado, mas nunca estivemos tão divididos. “Hoje todos estão conectados graças às redes sociais, como o Facebook e o Twitter. Como se sabe, tanto as redes sociais quanto os motores de busca, como o Google, conservam as informações das pessoas que os frequentam, e esses dados são utilizados para guiar as respostas e as atualizações relativas aos contatos pessoais. É como se o Google e o Facebook ‘nos conhecessem’ baseados em nossos acessos à rede, nos sites que visitamos, no que nos interessa mais. Isso traz um grande risco: permanecermos fechados numa espécie de ‘bolha’ que filtra o que é diferente de nós, e assim não somos mais capazes de perceber que há pessoas, artigos, livros, revistas que não correspondem às nossas ideias, ou que exprimem uma opinião diferente da nossa. No final, ficamos cercados por um mundo de informação e por um mundo de relações que se parecem conosco: iguais a nós. O risco é evidente: fechar-se à provocação intelectual que provém da alteridade e da diferença. O outro se torna significativo para mim se for, de algum modo, semelhante a mim, senão não existe” (SPADARO, 2016, p. 26).

Vivemos dias em que o diálogo democrático está nebuloso, devido a fumaça dos “incêndios simbólicos” que acontecem no nosso país. Sem partidarizar nosso diálogo aqui, mas compreendendo que a democracia, em sua definição mais básica, é o espaço público da pluralidade de vozes, não há como dizer que é democrático um espaço em que vozes tentam calar outras vozes. É preciso abrir o diálogo opinativo, respeitoso, coerente e, se possível, argumentativo. Precisamos entender que “a rede não tem a vocação de uniformizar o mundo, mas sim de conectar as diferenças, abrir o diálogo, fazer com que os homens se sintam mais unidos”.

SPADARO, 2016, p. 30

Em uma das mensagens do Papa Francisco, a rede muitas vezes se converte no seu oposto, em uma teia de aranha capaz de capturar.

Quando isso ocorre, a identidade funda-se na contraposição ao outro, à pessoa estranha ao grupo: define-se mais a partir daquilo que divide do que aquilo que une.

SBARDELOTTO, 2020, p. 177

Precisamos urgentemente resgatar o nosso convívio comunitário nas diferenças. Jamais somos iguais. A primeira pessoa do plural (nós) precisa ser sempre a nossa bandeira. Segundo Sbardelotto (2020, p. 174) “em vez de ajudar na construção de um ‘nós, o ambiente digital pode se tornar mero espelho para a reafirmação do ‘eu’ ou mera arena para a aniquilação simbólica do ‘tu’ e do ‘eles’. Assim, impossibilita-se qualquer vislumbre de solidariedade em comunidade”.

O Evangelho de Jesus Cristo toca nas nossas feridas. Não é fácil amar aqueles que nos odeiam. Porque amar os que nos amam é simplesmente ser generoso, mas amar os que nos odeiam é acima de tudo ser imitador de Cristo. Que tenhamos paz nas nossas diferenças!

Se amais somente aqueles que vos amam, que generosidade é essa? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que generosidade é essa? Os pecadores também agem assim. E se prestais ajuda somente àqueles de quem esperais receber, que generosidade é essa? Até os pecadores prestam ajuda aos pecadores, para receberem o equivalente. Amai os vossos inimigos, fazei o bem e prestai ajuda sem esperar coisa alguma em troca. Então, a vossa recompensa será grande. Sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bondoso também para com os ingratos e maus.

Lucas 6.32–35

***

Foto de capa: Pixabay/Reprodução

***

Referências

SBARDELOTTO, Moisés. Comunicar a fé: por quê? Para quê? Com quem? Petrópolis: Vozes, 2020.

SPADARO, Antonio. Ciberteologia: pensar o cristianismo nos tempos da rede. Tradução Cacilda Rainho Ferrante. São Paulo: Paulinas, 2012.

SPADARO, Antonio. Quando a fé se torna social. Tradução Renato Ambrosio. São Paulo: Paulus, 2016.