Mendonça, evangélicos e bolsonarismo

Na condição de evangélico e membro de uma igreja presbiteriana no Rio de Janeiro, venho a público manifestar meu mais profundo lamento pela aprovação de André Mendonça, pastor presbiteriano, para o STF. O Estado é laico. Evangélicos precisam confiar realmente em Deus, e não depender de acesso aos poderes do Estado, como boa parte de seus líderes vêm fazendo, sobretudo desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República. Mendonça foi aprovado pelo Senado para assumir uma vaga no STF, por 47 votos a 32.  É a segunda indicação de Bolsonaro para o STF, a única instituição do país que ainda consegue deter os desmandos do presidente da República.

Bolsonaro – que está mais para lobo em pele de cordeiro – nunca foi evangélico. Mas quando começou a pensar em ser presidente da República rapidamente se aproximou de líderes evangélicos oportunistas. Com a ajuda dessas figuras, Bolsonaro então montou seu marketing eleitoral pra cima dos evangélicos. Deixou-se fotografar sendo batizado nas águas do Rio Jordão, no mesmo local onde Jesus Cristo foi batizado. A foto rapidamente se espalhou pelos grupos de WhatsApp do segmento evangélico. Além disso, o presidente – que tinha seu nicho político-eleitoral entre as “viúvas” do golpe civil-militar de 1964 e pensionistas de militares – acabou ganhando terreno entre os evangélicos por apresentar uma narrativa baseada nos costumes, na homofobia e no anticomunismo, temas que costumam ser caros à direita cristã americana e sua congênere brasileira. 

Quando encontrou na Advocacia-geral da União com o advogado André Mendonça – um profissional que transmitia segurança e competência e, além disso era pastor presbiteriano de uma igreja chamada Esperança (que triste sina a nossa) – Bolsonaro juntou a fome com a vontade de comer. Alçou Mendonça ao cargo máximo da instituição e logo depois ao de ministro da Justiça, substituindo o “traidor” Sergio Moro. 

Como titular do Ministério da Justiça, Mendonça foi alvo de críticas por mandar abrir inquéritos contra opositores do governo Bolsonaro, tais como Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Hélio Schwartsman e outros políticos, jornalistas e cartunistas, sob a acusação de calúnia ou injúria devido a críticas ao presidente. Na sabatina, o mesmo Mendonça disse que a liberdade de imprensa é um bem sagrado. Para quem?

Também durante sua gestão, o Ministério da Justiça foi acusado de produzir um dossiê contra mais de 500 servidores federais e estaduais de segurança identificados como membros do “movimento antifascismo“. Mendonça confirmou à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso a existência de um relatório de inteligência, mas negou que houvesse ilegalidades em sua produção. Apesar de aparentar notório saber jurídico, Mendonça fez o jogo do poder. Só pelas duas atitudes acima, não se pode dizer que tenha “caráter ilibado”, uma das exigências para ser ministro do STF. E, ao assumir o cargo de ministro da Justiça, sinalizou para o chefe que estaria disposto antes de tudo a cumprir ordens.

Em plena posse como ministro da Justiça, Mendonça chamou Bolsonaro de “profeta” por ele ter sido um político “preocupado” com a agenda da segurança pública quando esse assunto não comovia Brasília. Um gesto típico de bajulador, principalmente se levarmos em conta que o tal “profeta” jamais apresentou um projeto sequer em favor da segurança pública do povo brasileiro. 

Pela bajulação, Mendonça não levou sequer um “puxão de orelhas” de sua igreja. Na verdade, os evangélicos, de modo geral, continuam fazendo vista grossa para os erros de Bolsonaro e sua equipe. Entre os evangélicos que se arrependeram do mau caminho bolsonarista, poucos têm coragem de ir à público e manifestar sua opinião. De certo modo, a igreja evangélica brasileira aprofundou suas divisões com a chegada de Bolsonaro ao poder. Mesmo sem ser evangélico, ele consegue influenciar muitos membros de igrejas, sobretudo as pentecostais e neopentecostais. Evangélico que tem a coragem de criticar os desmandos de Bolsonaro muitas vezes sofre discriminação dentro da própria igreja. Há uma legião de jovens evangélicos que ficaram “desigrejados” diante da insistência de pastores e diáconos em manifestarem, até do púlpito, apoio ao governo.

Embora o presbiterianismo tenha suas bases na busca de reformas sociais, também por meio da pregação do Evangelho, os evangélicos no Brasil se afastaram da política partidária justamente durante o regime militar. Boa parte das igrejas mais conservadoras apoiou o golpe, mas sempre houve na membresia ilhas de oposição à ditadura e seus algozes. Tanto assim que saiu das fileiras da Igreja Presbiteriana um líder respeitado na luta pelos direitos humanos, o reverendo James Wright, que se tornou o executivo do projeto Brasil Nunca Mais, patrocinado pela Arquidiocese de São Paulo – que denunciou os violentos crimes praticados pela ditadura, com base em 707 processos da própria Justiça Militar. Wright, a quem tive o prazer de conhecer e entrevistar, era o braço direito do cardeal Paulo Evaristo Arns.

Com o Congresso Nacional Constituinte, em 1987, os evangélicos voltaram a se aproximar da política, convencidos de que tinham que participar da construção da nova Constituição, temendo, principalmente, que sofressem algum revés no direito à liberdade de culto. Encontraram de braços abertos justamente o Centrão que reunia o que de mais fisiológico havia na política, em partidos de centro-direita. Seu lema na época era “é dando que se recebe”, frase que também teria sido citada pelo frade São Francisco de Assis. Esses evangélicos negociaram seus votos na bacia das almas. Muitos deles com a desculpa esfarrapada da ameaça do comunismo. Afinal, o Muro de Berlim – que precipitou a extinção da União Soviética e da chamada Cortina de ferro, só cairia em 1989. E ali, com o Centrão de 1987, está a origem desse núcleo político que viu em Bolsonaro um líder capaz de derrotar as esquerdas progressistas que, para os evangélicos, defendem o comunismo  que eliminou cristãos na Cortina-de-ferro, exatamente como o Império Romano fez aos primeiros mártires cristãos nas arenas dos leões.

Esses “novos evangélicos” na política sofrem também grande influência da direita cristã norte-americana, que, nos Estados Unidos, conseguiu, com uma agenda conservadora nos costumes e na economia, eleger Donald Trump. O principal estrategista de Trump, Steve Bannon, ainda hoje dá conselhos ao governo Bolsonaro. 

Apesar de Bolsonaro não ter feito tudo que poderia ter feito pela candidatura de Mendonça, o presidente usou o carimbo de “terrivelmente evangélico” para seu candidato, como uma espécie de ameaça ao Supremo, que tornou-se o único poder a conter os ímpetos autoritários do presidente. Só esse carimbo feito pelo presidente já deixa o novo ministro do STF sob suspeita. Como ministro de estado, numa corte suprema, Mendonça não pode agir como lobista de qualquer que seja o grupo, político ou religioso. Mendonça, inclusive, se revelou um homem de duas faces. Na sabatina, apresentou-se como guardião da Constituição. Logo após eleito, fez um discurso em tom triunfalista, afirmando que sua vitória é o passo para um homem (no caso, ele), mas também para todos os evangélicos. Nada a ver. O Supremo não pode ser evangélico, católico, espírita ou qualquer outra religião e, muito menos, se comprometer com a agenda de qualquer ideologia política. O Estado é laico. E foi justamente a separação entre Igreja Católica e Estado que historicamente deu força para os evangélicos conseguirem superar todas as discriminações, sendo minoria religiosa no país. Agora somam 40 milhões. Um enorme rebanho de ovelhas que cada vez mais atrai lobos vorazes. Sobretudo às vésperas de ano eleitoral.

Agora cabe aos verdadeiros evangélicos, preocupados com a ética e a cidadania, serem os primeiros a fiscalizar as atitudes e os votos de André Mendonça no STF.  E essa forma de preenchimento dos cargos do Supremo precisa urgentemente ser revista pelos legisladores. Mas quem vai ter coragem de mexer nesse vespeiro?

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Foto de capa: Alan Santos/PR

As histórias de fé que ouvi em igrejas neopentecostais

Quando o assunto é igreja evangélica brasileira, o que pensam as pessoas que estão fora dela? E de quem elas lembram? Bispo Edir Macedo (Igreja Universal), Apóstolo Valdemiro Santiago (Igreja Mundial) e Pastor Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) certamente estão entre as pessoas que vêm à mente de muita gente devido ao poder midiático de suas igrejas.

Sou filho de uma família pastoral com raízes na Igreja Batista Independente (de vertente pentecostal) e passagem pela Renascer em Cristo (uma das maiores promotoras da cultura gospel nos anos 1990 e 2000). Hoje frequento uma Igreja Batista. E fora do que via pela TV, eu conhecia pouco sobre outras denominações com grande poder midiático.

Mas por que as pessoas vão a essas igrejas? Em 2019, foi com essa pergunta que decidi fazer uma pesquisa de iniciação científica cujo objetivo era entrevistar fiéis de três igrejas neopentecostais (Mundial, Universal e Plenitude) e uma pentecostal (Assembleia de Deus do Brás). A maioria delas fica no “Corredor da Fé”, na Avenida Celso Garcia, no bairro do Brás, zona leste de São Paulo. Na época da pesquisa, eram 26 igrejas só naquele endereço. Baseado nas entrevistas que fiz naquele ano, produzi o podcast Histórias de Fé.

A compreensiva resistência ao jornalismo

As reações à chegada de um jornalista variaram. Na igreja do Apóstolo Valdemiro, ter me apresentado como jornalista evangélico fez os fiéis se abrirem mais. Numa entrevista até escutei que, se eu não fosse crente, uma pessoa teria tentado me confrontar e evangelizar. Já nas outras, precisei convencer autoridades religiosas de que não procurava prejudicar as igrejas com as entrevistas. 

A resistência é compreensível. As igrejas evangélicas brasileiras saltaram de 5% a 22% da população entre 1970 e 2010, de acordo os dados do Censo Demográfico do IBGE. Essa é uma grande e rápida mudança em um país de histórica hegemonia Católica Romana. Além disso, a representação desse grupo religioso ainda é carregada de estereótipos (ou até mesmo imprecisões) que eram bem mais fortes em décadas passadas.

É verdade que isso tem sido superado. Exemplo disso é que a Folha de S. Paulo dedicou, em 2019, matéria para os resultados de uma pesquisa do DataFolha. O levantamento concluiu que a “cara típica” do evangélico brasileiro é feminina e negra. Nas igrejas neopentecostais, elas representam 69% dos fiéis.

Mesmo assim, visitar essas igrejas – em especial as neopentecostais – foi confrontar-me com meus próprios preconceitos. Entrevistar fiéis enquanto mantinha opinião crítica à teologia da prosperidade e considerar que, às vezes, as chamadas experiências de avivamento com o Espírito Santo eram exageradas, me obrigou a entender as suas crenças em seus próprios termos.

Entender a fé do outro muda perspectivas

Essa chave muda tudo. Se olharmos apenas para o que acontece nos púlpitos sem acreditar nos programas de TV, a imagem que fica é de bispos e apóstolos que exploram a fé de pessoas pobres e com pouca instrução. Mas se o foco são as pessoas sentadas nos bancos – não meros cases de sucesso que dão testemunho – a situação muda.

No primeiro episódio, conto um diálogo que tive com uma fiel da Universal fora da igreja. Ela diz acreditar que pode obrigar Deus a fazer um milagre acontecer e até me citou que declarou que teria um emprego e conseguiu-o de um dia para outro. Essa crença entra em choque com a tradicional doutrina da soberania de Deus. Mas se oração, dízimos e ofertas não resultarem no milagre, para ela, é porque Deus faz o que quer. Então, o debate que importa não é se uma doutrina clássica e cara a outras tradições evangélicas está em jogo ou não, mas se a fé pregada pela igreja dá resultados.

Mas não só de resultados vive a fé desses evangélicos. O maior exemplo que tive foi minha última entrevistada, na Igreja Plenitude. Elissandra contou que retornou ao evangelho pela Plenitude depois de 22 anos “desviada” (gíria crente que designa quem se converteu e posteriormente deixou a igreja). Pouco depois de ter se batizado, sua filha teve uma doença que afetou toda a pele. Os médicos não achavam solução. A cura veio depois que ela comprou frascos com o sangue do cordeiro e azeite e passou no corpo da filha. “Então, eu não tenho motivo pra sair da igreja. Eu tenho motivo pra permanecer. Pra ficar. Pra ser fiel a Ele. Eu não tenho motivo pra sair. Porque ele me provou quem Ele é na minha vida. Ele me provou que Ele está comigo. E que Ele ouviu o meu clamor, a minha oração, porque eu ajoelhei e pedi pra Ele. E Ele me ouviu e Ele me respondeu no mesmo dia”, explicou Elissandra. 

Apesar disso, toda a sua família questiona sua fé e a chama de macumbeira – um termo muito ofensivo, já que essas igrejas entendem os cultos afro-brasileiros como demoníacos. Mas quando o assunto era o que a mantinha na Plenitude, ela atribuiu sua persistência ao avivamento com o Espírito Santo. Mesmo que a cura da filha tenha sido um sinal de Deus, me pareceu que Elissandra quer bem mais respeito da família do que negociar bênçãos materiais com Deus.

Compreender não significa fechar os olhos para os problemas

Ao final de toda a pesquisa, não deixei de ter sérias divergências com as pregações das igrejas as quais visitei. Discordo da Teologia da Prosperidade e da Guerra Espiritual, defendidas pelas igrejas neopentecostais. Às vezes, a admiração aos líderes das denominações me parece exagero.

Além disso, há um alinhamento institucional e quase acrítico ao Presidente da República Bolsonaro, para dizer o mínimo. Não é por acaso que o voto evangélico foi forte fator para a eleição do capitão. É claro que isso não é exclusividade das igrejas que visitei e os efeitos são prejudiciais tanto para quem é da igreja quanto para quem é de fora dela. 

Em poucos meses como repórter verificador no Bereia cheguei à triste conclusão que, não raramente, líderes evangélicos importantes desistem da verdade para espalhar desinformação, seja para criticar opositores do presidente ou defender o governo. Isso se tornou mais dramático com a pandemia de covid-19. O grande problema disso tudo é: se a igreja evangélica se associar tão fortemente ao governo Bolsonaro, como as pessoas de fora da igreja conseguirão distinguir a diferença entre ser evangélico e ser bolsonarista?

Reconheço que essas igrejas não se encerram nos programas de TV e que chegam nas vidas das pessoas. E mesmo quando discordo, eu entendo os pontos de vista desses fiéis. Qualquer diálogo sério com evangélicos depende de tentar compreendê-los.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução