Vídeo viralizado: em julgamento, André Mendonça repetiu falsidade que culpa governo Lula pelo 8 de janeiro

Voltou a circular nas redes digitais nas últimas semanas vídeo com uma discussão travada em 14 de setembro de 2023, entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)  Alexandre de Moraes e André Mendonça. A peça é trecho de gravação de sessão de julgamento dos primeiros réus envolvidos nos atos criminosos de 8 de Janeiro daquele ano, quando e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e vandalizaram as sedes do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto. 

A discussão exposta no vídeo começou quando Mendonça apresentava seu voto em relação ao réu Aécio Lúcio Costa Pereira, primeiro condenado no STF pelos atos golpistas. Na ocasião, o ministro insinuou que o Ministério da Justiça do recém empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alvo do ataque, teria sido negligente e, portanto, responsável pelos atos terroristas.

Imagem: reprodução/X

Imagem: reprodução/Youtube

Relatório da Polícia Federal sobre a tentativa de golpe remeteu ao vídeo 

Várias pessoas compartilharam o vídeo nas redes digitais nos últimos dias de novembro, no contexto da divulgação do relatório da Polícia Federal (PF), que se encerrou no último dia 21 de novembro. O documento indicia o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 aliados por tentativa de golpe de Estado e atentado contra o Estado Democrático de Direito. Foram levantadas ações do grupo contra o processo que elegeu Lula presidente da República em 2022, que culminaram nos atos de 8 de Janeiro de 2023.

Entre as provas detalhadas no relatório apresentado pela Polícia Federal, constam anotações do general da reserva Mário Fernandes, que integrou o Ministério da Casa Civil durante o governo de Jair Bolsonaro. As anotações indicam a criação de uma estratégia para responsabilizar o então ministro da Justiça Flávio Dino, pelos atos golpistas de 8 de janeiro. 

Imagem: reprodução/G1

Essa estratégia de comunicação tem sido  vinculada em publicações nas redes a iniciativas posteriores como as cobranças feitas por senadores a Dino durante audiências no Senado e propostas apresentadas Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas com o intuito de atribuir a ele a responsabilidade pelos ataques e eximir Bolsonaro e seus aliados.

Durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre o 8 de Janeiro, enquanto a relatora, senadora Eliziane Gama (PSD-MA) defendeu o indiciamento de Bolsonaro e mais de 60 pessoas, parlamentares da oposição apresentaram votos em separado, argumentando que os ataques aos prédios públicos federais não configuraram tentativa de golpe, mas depredação que poderia ter sido evitada. 

Além de críticas a Dino por supostas falhas no uso da Força Nacional, em 2023, a oposição convocou uma audiência no Senado sobre o assunto, onde foram feitas acusações ao  presidente Lula e ao ministro da Justiça de omissão deliberada, sugerindo que não agiram para proteger os edifícios e até “facilitaram” os ataques para fins políticos. 

Publicações a partir desta estratégia de culpabilizar Dino foram amplamente difundidas e ecoadas nas redes digitais e em veículos de notícias alinhados à extrema direita durante 2023. Montagens de vídeos com falsos registros do ministro da Justiça conspirando a favor dos ataques foram produzidas para viralizar nas redes, como a agência Aos Fatos verificou.

Imagem: reprodução/Gazeta do Povo

Imagem: reprodução/Aos Fatos

Estas acusações foram repetidas nas suspeitas levantadas pelo ministro André Mendonça durante o julgamento no STF, ao sugerir negligência do Ministério da Justiça no episódio. Bereia checou o conteúdo do vídeo com este registro. 

O que o vídeo mostra 

Durante a sessão de julgamento no STF, o ministro André Mendonça mencionou que não conseguia entender como o Palácio do Planalto teria sido invadido. Ele questionou onde estava o efetivo da Força Nacional e da guarda do prédio, e recordou que foi advogado-geral da União e ministro da Justiça e Segurança Pública no governo de Jair Bolsonaro. O jurista disse que na época que atuava na Esplanada dos Ministérios costumava ficar de plantão com equipes prontas para agir, incluindo a Força Nacional em episódios como o ocorrido naquele 8 de Janeiro . 

André Mendonça, que também é pastor presbiteriano, e foi indicado por Bolsonaro ao STF como um ministro “terrivelmente evangélico”, manifestou desconfiança em torno da atuação do Ministro da Justiça na época. Ele ressaltou a rigidez usual da segurança da sede do Poder Executivo Federal e apontou ter havido a possibilidade de  o governo intervir diretamente na proteção de edificações federais, mesmo sem a necessidade de autorização do governo distrital. “Como que o Palácio do Planalto foi invadido da forma como foi invadido? Vossa Excelência sabe o rigor de vigilância e cuidado que deve haver lá”, afirmou na sessão de julgamento, dirigindo-se ao relator do processo, ministro Alexandre de Moraes.

Na sequência, Moraes interrompeu o colega de toga e ressaltou ter havido omissão da Polícia Militar do Distrito Federal, naquele 8 de Janeiro. “As investigações demonstram claramente por que houve essa facilidade: cinco coronéis, comandantes da PM [Polícia Militar do Distrito Federal], estão presos, exatamente porque, desde o final das eleições, se comunicavam por ‘zap’ dizendo exatamente que iriam preparar uma forma de, havendo manifestação, a Polícia Militar não reagir. Então, claramente a Polícia Militar, que é — eu também fui ministro da Justiça [do governo de Michel Temer] e sabemos nós dois que o ministro da Justiça não pode utilizar a Força Nacional se não houver autorização do governo do Distrito Federal, porque isso fere o princípio federativo”. 

Moraes mencionou ainda a ausência do ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro Anderson Torres, que havia sido nomeado secretário de Segurança do DF, em viagem para os Estados Unidos no dia do ataque, como um elemento que corrobora para a comprovação de responsabilidade do governo distrital.

Em desdobramento do debate, André Mendonça interrompeu Alexandre de Moraes e disse que, em relação aos prédios federais, estaria dentro da lei acionar a Força Nacional. Moraes, de imediato, apontou que tal procedimento não caberia, pois  a Praça dos Três Poderes na  alçada da polícia do Distrito Federal, Mendonça insistiu: “Mas em relação às edificações federais ele pode e deve conter”.

Afinal, quem pode acionar a Força Nacional?

A CPMI sobre o 8 de Janeiro se debruçou no levantamento sobre a responsabilidade da convocação da Força Nacional no caso.

Segundo o Decreto nº 5.289/2004, que regulamenta  a atuação da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), ela pode ser mobilizada pelo Ministério da Justiça nas seguintes situações: 

  • Grave perturbação da ordem pública, quando houver necessidade de restaurar ou preservar a ordem pública em situações que ultrapassem a capacidade das forças de segurança locais; 
  • Calamidade pública, para atuar em situações de desastres naturais, acidentes ou outras emergências que exijam assistência para garantir a segurança pública; 
  • Emergências de segurança pública, quando houver riscos ou situações excepcionais que demandem reforço ao trabalho das polícias locais, como grandes eventos ou crises específicas de segurança; apoio em atividades de segurança pública para auxiliar as polícias estaduais em operações específicas ou programas de combate ao crime, mediante solicitação;
  • Garantia da lei e da ordem (GLO), em casos de grave ameaça à ordem pública ou à paz social. Aqui, a FNSP pode ser empregada, desde que autorizada pelo presidente da República, em articulação com o Ministério da Justiça.

Além disso, os artigos 21 e 144 da Constituição Federal, embora não tratem especificamente da FNSP, estabelecem competências da União sobre bens e prédios públicos federais. Por fim, a Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 estabelece normas gerais sobre a organização, preparo e emprego das Forças Armadas e também serve de base para a atuação coordenada de forças federais em situações de grave perturbação da ordem. 

Essas normas garantem ao Ministério da Justiça a prerrogativa de acionar a Força Nacional diretamente em situações que envolvam a proteção de bens da União ou a manutenção da ordem pública de competência federal. Portanto, o Ministério da Justiça pode acionar a FNSP para proteger prédios públicos federais sem necessidade de autorização prévia de governos estaduais ou municipais, entretanto, apenas em situações excepcionais, e depende de autorização do presidente da República. 

Em situações que envolvam segurança pública local, como é o caso da Praça dos Três Poderes, sob jurisdição do Distrito Federal, ou ações em estados e municípios, o acionamento da Força Nacional requer uma solicitação formal do governador ou de autoridades competentes do estado ou do distrito federal. Isso ressalta a necessidade de coordenação entre as esferas de governo, salvo casos específicos que envolvam diretamente responsabilidades do governo federal.

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É verdadeiro o vídeo que voltou a circular que mostra o ministro do STF André Mendonça em julgamento no STF referente aos atos de 8 de janeiro, repetindo o conteúdo que circulou entre apoiadores do ex-presidente  Jair Bolsonaro em 2023  que culpabiliza o então ministro da Justiça por ter permitido os ataques. 

O ministro do STF afirmou na ocasião que o governo Lula poderia ter acionado a Força Nacional de Segurança Pública para proteger os prédios públicos federais sem a necessidade de autorização do governo do Distrito Federal. Mendonça argumentou que, em relação às edificações federais, seria possível conter os ataques, afirmando desconhecer como o Palácio do Planalto foi invadido de maneira tão fácil. André Mendonça replicou debates e discursos da oposição que ganharam destaque desde a divulgação do relatório do inquérito da PF sobre a “minuta do golpe”.

Já a réplica de Moraes tem fácil comprovação nas inúmeras provas apresentadas nas investigações, de que fato houve a tentativa de golpe e que havia sim uma trama para tentar impedir a posse e manutenção do governo de Luiz Inácio Lula da Silva recém eleito à época. Leia mais sobre a trama golpista nesta checagem do Bereia

Portanto, a fala do ministro Mendonça pode ser classificada como enganosa, pois usa parte do Decreto nº 5.289/2004, que indica, de fato, que o ministro da Justiça poderia solicitar a Força Nacional de Segurança Pública para a proteção de prédios federais. Porém, é sabido pela Administração Pública, que os prédios que compõem a Praça dos Três Poderes pertence ao Distrito Federal. Nesse sentido, cabe, por lei, ao governador do DF a responsabilidade para acionamento da Força. 

Após amplo conhecimento do relatório da PF sobre os atentados contra o Estado Democrático de Direito, divulgado em novembro passado, são públicas as provas das articulações golpistas dos 37 indiciados, que incluem os planos de disseminação de conteúdo manipulado para responsabilizar do novo governo pelo 8 de janeiro de 2023 e eximir o anterior de culpa. A exposição do ministro André Mendonça na gravação em vídeo do julgamento no STF naquele ano, indica uma repetição do argumento inventado pelos estrategistas do plano de golpe de Estado. A contraposição do relator do processo ministro Alexandre de Moraes  recorreu à legislação que rege a Administração Pública e às provas coletadas que apontam os responsáveis do Distrito Federal que foram presos.

Referências de checagem:

Revista Fórum
https://revistaforum.com.br/politica/2024/11/29/alexandre-de-moraes-detona-andre-mendona-por-tentar-defender-golpistas-170089.html – Acesso em 05 dez 2024

Uol
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/09/14/mendonca-e-moraes-batem-boca-em-julgamento-de-reu-do-81-e-um-absurdo.htm – Acesso em 05 dez 2024

Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/politica/bate-boca-entre-mendonca-e-moraes-sobre-o-8-de-janeiro-teve-provocacao-contra-dino/ – Acesso em 05 dez 2024

Veja
https://veja.abril.com.br/coluna/radar/moraes-e-mendonca-batem-boca-ao-julgar-reu-do-8-de-janeiro-tenha-do – Acesso em 05 dez 2024

Correio Brasiliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/09/5125346-8-de-janeiro-moraes-e-mendonca-batem-boca-no-stf-em-julgamento-de-reu.html – Acesso em 05 dez 2024

G1
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/09/14/quem-e-aecio-pereira-primeiro-reu-condenado-no-stf-por-atos-golpistas-de-8-de-janeiro.ghtml – Acesso em 05 dez 2024

YouTube – STF
https://www.youtube.com/watch?v=-dReKZYKYtc  – Acesso em 05 dez 2024

Bereia
https://coletivobereia.com.br/politicos-apoiadores-de-padre-indiciado-em-trama-golpista-usam-falsa-acusacao-de-perseguicao-religiosa/# – Acesso em 05 dez 2024

Planalto
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5289.htm – Acesso em 05 dez 2024

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  – Acesso em 05 dez 2024

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp97.htm#:~:text=LEI%20COMPLEMENTAR%20N%C2%BA%2097%2C%20DE%209%20DE%20JUNHO%20DE%201999&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20normas%20gerais,o%20emprego%20das%20For%C3%A7as%20Armadas.&text=Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico.,subsidi%C3%A1rias%20explicitadas%20nesta%20Lei%20Complementar – Acesso em 05 dez 2024

Aos Fatos

https://www.aosfatos.org/noticias/video-dino-planalto-8-de-janeiro-apos-ataques-golpistas/ Acesso em 6 dez 2024

G1

https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/11/26/militar-tentou-criar-narrativa-para-culpar-flavio-dino-por-8-de-janeiro.ghtml Acesso em 6 dez 2024

Agência Senado 

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/17/oposicao-pede-responsabilizacao-de-lula-dino-e-g-dias-por-omissao-no-8-de-janeiro Acesso em 6 dez 2024

Senado Federal

https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2606/mna/relatorios Acesso em 6 dez 2024

Sites de religiosos bolsonaristas receberam patrocínio do governo federal para propaganda da Previdência

*Publicado originalmente pela Agência Pública. 09 de Julho de 2020

“E essas pessoas cheias de saúde que se aposentam com 50 anos?”, pergunta o ator de um vídeo encomendado pelo governo Bolsonaro sobre a reforma da Previdência. A série publicitária, parte da campanha oficial mais cara realizada na atual gestão da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), foi veiculada em rádios, TVs, jornais impressos e na internet, onde encontrou um nicho peculiar: canais de YouTube para crianças.

Segundo levantamento da Agência Pública, canais infantis no YouTube foram um dos principais meios de veiculação da propaganda governamental sobre a reforma da Previdência, que circulou também em canais religiosos, perfis acusados de produzir notícias falsas e contas banidas da plataforma por violarem regras.

A reportagem apurou os 500 canais do YouTube que mais receberam verbas da Secom através do sistema de anúncios do Google entre 6 de junho e 13 de julho de 2019. Nesse período, anúncios da Previdência foram veiculados em 168 canais infantis, 76 canais de música, 52 videoblogs ou vlogs e 33 canais religiosos. A Pública constatou que a campanha foi impulsionada em pelo menos 11 canais que publicaram notícias falsas e sete que foram excluídos ou banidos do YouTube por violação das regras. Juntos, eles receberam R$ 119 mil de dinheiro público.

Por meio dessa campanha, a Secom atingiu 9,8 milhões de visualizações em pouco mais de um mês. Mais de meio milhão se converteu em cliques nos anúncios da Nova Previdência – uma taxa de interação de 5,8%. Os canais infantis, maior público-alvo da campanha do governo federal, lideraram as visualizações.

Os dados foram obtidos por consultores legislativos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), em um processo que durou quase seis meses. Relatório apresentado à CPMI das Fake News revela que grande parte dos anúncios foi destinada a portais considerados “inadequados” – como sites de jogos de azar, disseminadores de notícias falsas ou banidos do YouTube por descumprimento de regras – e que há indícios de o dinheiro foi mal investido.

Canais bolsonaristas que disseminam fake news foram beneficiados

O Google Ads (AdWords) foi a plataforma utilizada pela Secom para divulgar a campanha da Nova Previdência no YouTube, em aplicativos e sites. Nela, os gestores de uma campanha podem estabelecer o orçamento, além de uma série de parâmetros para delimitar os canais em que os anúncios serão exibidos. O Google faz a intermediação entre o anunciante e os donos dos canais no YouTube que ofereceram seus espaços publicitários.

Ainda que o sistema seja automático, o anunciante consegue ter controle dos canais e até dos vídeos em que seu conteúdo será exibido, de acordo com o publicitário Paulo Motta, que trabalha com Google Ads há sete anos. “O Google permite segmentação por temas dos canais e por público-alvo. É possível escolher a faixa etária, a localização, o perfil de renda baseado em hábitos de consumo, a idade, e uma série de opções porque o Google colhe informações dos usuários para oferecer aos anunciantes”, garante. Motta diz que os gestores de uma campanha podem bloquear segmentos, canais e vídeos para assegurar que os anúncios não serão exibidos em sites de fake news e/ou de conteúdos sensíveis, como eróticos, por exemplo.

Apesar dessa possibilidade de bloqueio, anúncios da Secom foram veiculados em canais que espalharam fake news. Entre 6 de junho e 13 de julho de 2019, foram mais de 175 mil acessos aos vídeos da Nova Previdência em 11 canais desse tipo – com um faturamento de R$ 1,9 mil.

Oito deles são bolsonaristas, como, por exemplo, Bolsonaro TV, Jacaré de Tanga e Seu Mizuka, que postam vídeos alinhados ao discurso do presidente.

“A verdade pode ser assustadora!” é o título de um dos vídeos do Seu Mizuka, postado em 27 de junho do ano passado. Nele, o youtuber fala da reunião do G20, que estava prestes a ocorrer, chama os líderes mundiais de “globalistas” e acusa as Nações Unidas de querer criar movimentos separatistas dentro do Brasil.

Vídeos como esse foram precedidos por propagandas da Previdência, que atingiram mais de 18 mil visualizações através do Seu Mizuka. A cada cem visualizações, 41 pessoas clicaram no vídeo, uma taxa de interação considerada alta.

De maneira geral, considerando a taxa de interação – que pode ser um clique, um like ou um comentário – , as pessoas que assistiram aos canais de fake news se mostraram mais interessadas nos anúncios da Previdência do que as que viram vídeos de música, por exemplo. Em média, a cada cem acessos aos vídeos de desinformação, 13 se converteram em interações com os anúncios.

Um dos canais mais influentes na campanha da Nova Previdência foi o Foco do Brasil – antes chamado de “Folha do Brasil” –, que atingiu 57 mil visualizações e teve um ganho de R$ 13,70 por clique nos anúncios – totalizando um faturamento de R$ 726,25 no período. Além de publicar notícias falsas, o canal é alvo do inquérito da Procuradoria-Geral da República (PGR) que investiga a organização de atos antidemocráticos.

Com 2,18 milhões de inscritos, o canal posta vídeos de Jair Bolsonaro e de um jornal denominado JB News, que comenta as principais notícias do dia sob a ótica bolsonarista.

No seu último vídeo, denominado “Fim do Canal?”, publicado na quarta-feira (24/6), o apresentador agradece o apoio dos seguidores e ressalta de onde vem o dinheiro do canal: “Contamos com o apoio de membros e com as publicidades que o próprio YouTube veicula e que você assiste, exatamente igual ao que acontece com todo o universo de youtubers”.

Outro beneficiado com a campanha – que veiculou as propagandas 6,4 mil vezes –, o Vlog do Fernando Lisboa Replay é do mesmo autor do canal Vlog do Lisboa, que também está na mira das investigações da PGR. Em seus dois canais, Lisboa exibe fotos com o presidente Jair Bolsonaro.

O ministro Alexandre de Moraes autorizou que a PGR requisitasse ao YouTube as contas da ferramenta de anúncios do Google associadas ao Foco do Brasil e ao Vlog do Lisboa, no âmbito do inquérito dos atos antidemocráticos. Outros 11 canais também estão na mira.

O advogado de Fernando Lisboa, Marcos Conceição, afirmou que seu cliente respeita as instituições democráticas. “Não tem nada dele falando das instituições. Ele formula opinião em cima de matérias publicadas pelo Uol, pelo Terra, pelo Globo”, observou. Sobre os recursos recebidos com anúncios do Google para a campanha da Previdência, Conceição disse que Lisboa recebe o dinheiro dos anúncios diretamente do YouTube. “Aí ele não sabe de onde veio”, ressaltou, acrescentando que Lisboa não tem nenhum vínculo com a Secom e nunca recebeu dinheiro da secretaria. A Pública entrou em contato por e-mail com os canais DR News e Foco do Brasil, mas não obteve resposta.

Segundo o movimento Sleeping Giants, os anúncios do Google AdWords tornaram a produção de fake news “um negócio extremamente lucrativo”. O movimento tenta combater o financiamento de sites de desinformação e discurso de ódio informando as empresas de que seus anúncios estão sendo exibidos nessas plataformas e pedindo bloqueio.

O Sleeping Giants já flagrou anúncios do Tribunal de Contas do Mato Grosso do Sul (TCE-MS) e do Banco do Brasil em sites de fake news, que foram bloqueados por ordem do Tribunal de Contas da União (TCU). “O dinheiro público está basicamente financiando ataques à democracia”, defende o Sleeping Giants.

Anúncios da Previdência foram veiculados em canais investigados

Além de canais de fake news, outros dois canais, entre os 500 que veicularam anúncios da Nova Previdência, são alvos de investigações na Justiça.

O canal de Renato Garcia trouxe 137 mil acessos à propaganda governamental sobre a reforma da Previdência e, com isso, recebeu R$ 1,6 mil de dinheiro público. O youtuber paranaense, que faz vídeos sobre sua rotina e suas “máquinas” (motocicletas, carros e até armas), foi preso por posse ilegal de armas, munição e drogas encontradas em sua casa em maio de 2019 – um mês antes de receber financiamento da Secom através dos anúncios. Ele pagou fiança e responde em liberdade, mas continuou produzindo três vídeos por dia para seus mais de 18 milhões de inscritos.

Ainda em 2019, Garcia publicou um vídeo em suas redes sociais para esclarecer que as drogas e armas apreendidas não pertenciam a ele. A reportagem tentou entrar em contato com o canal para esclarecimentos sobre o caso e sobre a veiculação de anúncios da Previdência, mas não teve sucesso.

Outro exemplo de canal investigado pela Justiça que recebeu dinheiro público é o Fran para Meninas, que recebeu R$ 1.084,34 por 91 mil acessos ao anúncio da Nova Previdência. O canal está sendo investigado pelo Ministério Público (MP) pelo que o Conselho Tutelar chamou de “exposição vexatória e degradante”, como revelou a revista Veja em maio deste ano.

A denúncia começou na internet, quando usuários do Twitter subiram a hashtag #SalvemBelParaMeninas, com evidências de que a menina protagonista dos vídeos, Bel, estaria sendo exposta a situações desconfortáveis por sua mãe, Francinete Peres, no processo de gravação.

Em 2016, o canal Bel para Meninas também foi alvo de investigação do MP para apurar “práticas de direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica ao público infantojuvenil”. Como resultado, o MP recomendou que o Google retirasse do YouTube todos os vídeos com publicidade de produtos infantis e protagonizados por crianças de até 12 anos.

Depois das denúncias mais recentes, os pais da criança gravaram um vídeo em que negaram a veracidade das acusações, que chamaram de “fake news” e “campanha caluniosa e difamatória”. A Pública buscou contato com os proprietários do canal, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Pedro Hartung, coordenador do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, enfatiza a necessidade de responsabilização das empresas, plataformas e anunciantes em casos como o de Bel, que chama de trabalho artístico não autorizado. “É importante que qualquer anunciante, seja privado ou governamental, assuma a responsabilidade que tem por lei de não financiar atividades que estejam fora da legalidade, como o trabalho infantil artístico sem autorização judicial.”

Anúncios da Previdência para crianças

A maior parte dos canais que receberam os anúncios entre 6 de junho e 13 de julho de 2019 foi direcionada ao público infantil – 168 dos 500 analisados –, recebendo um total de R$ 57,1 mil de repasse, um terço do montante analisado.

Esses canais foram os que mais divulgaram as propagandas da Previdência: os vídeos da campanha se repetiram 4,5 milhões de vezes. Destas, 240 mil se converteram em cliques nos anúncios. O número corresponde a 41% de todas as interações no período.

Para Hartung, a informação de que essa campanha foi veiculada principalmente em canais infantis do YouTube causa “estranhamento”. Ele avalia que o alto número de interações em canais infantis é consequência da vulnerabilidade desse público, não uma medida da qualidade do anúncio.

“A criança ainda está entendendo como funciona o mundo digital e o próprio mundo real, em desenvolvimento inconcluso de suas capacidades de leitura crítica.”

O publicitário Paulo Motta, que diz excluir essa categoria quando veicula anúncios no Google, acredita que a Secom pode ter direcionado a campanha para esses canais em decorrência da “enorme audiência do público infantil no YouTube”. Outra explicação seria o fato de que as crianças costumam usar o celular ou dispositivo de um adulto para acessar os vídeos. “O Google entende o comportamento de consumo como sendo o do proprietário do aparelho, não o da criança. Por isso, mesmo se o usuário está vendo um desenho, o YouTube pode mostrar um anúncio da Previdência”, diz.

Os consultores legislativos da CPMI das Fake News consideram que a grande veiculação de anúncios da Previdência em canais infantis é evidência de uma “falha intensa de target”, ou seja, determinação de público-alvo.

Outra evidência dessa falha seria a presença de canais estrangeiros entre os endereços que mais receberam repasses da Secom no período analisado. Dos 168 canais infantis, 32 exibiam seu conteúdo em línguas como inglês, espanhol, coreano, árabe, russo, japonês, turco, alemão e francês. Juntos, eles receberam R$ 7,9 mil do governo. O relatório exibido à CPMI dá destaque ao canal russo Get Movies, que sozinho recebeu R$ 1,4 mil.

Quase R$ 4 mil foram destinados a canais religiosos

Canais religiosos estão em quinto lugar entre as categorias que mais veicularam anúncios da Nova Previdência no período de 6 de junho a 13 de julho. Eles trouxeram mais de 285 mil acessos para a campanha em prol da reforma da Previdência.

Dos 500 canais que mais receberam repasses, 33 eram ligados à temática religiosa (6,6%). Juntos, eles receberam R$ 3.976,50.

Só o canal do cantor gospel Leandro Borges apresentou as propagandas do governo mais de 32 mil vezes. Considerado um fenômeno da música no meio evangélico, Leandro tem mais de 2,5 milhões de inscritos na plataforma e recebeu R$ 489,20 de dinheiro público pela campanha.

De cima para baixo: cantor Leandro Borges, no centro, senador Arolde de Oliveira e abaixo, Casal Hernades (Fotos/Reprodução)

Em 2018, o cantor gravou um vídeo em que declara apoio ao senador bolsonarista Arolde de Oliveira (PSD). Arolde é dono do MK, um dos maiores grupos empresariais evangélicos do país, que inclui uma gravadora (MK Music), a MK News e outras empresas de mídia. Leandro não tem contrato com a MK Music, mas a MK News gerencia o YouTube do senador Flávio Bolsonaro, que também veiculou anúncios da Secom no período, mas poucas vezes (48). O canal é apontado entre os gastos irregulares da secretaria no relatório da CPMI das Fake News.

Entre os 500 canais mais influentes na campanha da Nova Previdência no YouTube está o da Renascer Praise. A banda gospel, ligada à igreja evangélica Renascer em Cristo, gerou mais de 5 mil visualizações para o governo por um valor de R$ 82,55. Comandada pelo apóstolo Estevam Hernandes e pela bispa Sônia Hernandes, a Renascer mantém a Rede Gospel, uma emissora de TV que recebeu R$ 402,7 mil em anúncios da Secom durante o governo Bolsonaro. A igreja acumula uma dívida de mais de R$ 30 milhões com a Receita Federal.

Pelo WhatsApp, um integrante da equipe de divulgação do cantor Leandro Borges informou que a publicidade do canal dele no YouTube “é administrada por uma empresa da Suíça chamada BELIEVE” e que “ele não tem relações com anunciantes, uma vez que esse gerenciamento é feito pela empresa”. A reportagem da Pública não conseguiu contato com a igreja Renascer em Cristo.

Agência gastou quase R$ 6 milhões em divulgação da Previdência no Google

A campanha da reforma da Previdência, que custou mais de R$ 71 milhões em diversas ações, envolveu sete agências de publicidade contratadas pelo governo. Os gastos, contudo, ficaram concentrados em uma agência, a Artplan – empresa que se tornou a maior beneficiada por contratos com a Secom na gestão atual.

Segundo a Pública apurou, o governo fechou mais de R$ 69 milhões em contratos com a Artplan para a campanha da Previdência. A agência foi a única que registrou gastos no sistema de anúncios do Google a respeito da Previdência, além de gastos no Facebook e em outras redes sociais.

Além da propaganda sobre as mudanças na Previdência, a Artplan fechou contratos para ações nas redes sociais nas campanhas de combate à violência contra a mulher e “Pátria Voluntária”, ambas ligadas ao Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos; e de divulgação das medidas anticrime, do Ministério da Justiça.

A proximidade da Artplan com o secretário Fabio Wajngarten já foi motivo de críticas ao governo. A Folha de S.Paulo revelou que a agência presta serviços para uma empresa da qual Wajngarten é sócio, a FW Comunicação, que tem como clientes emissoras de TV como Record e Band. Segundo a reportagem, a empresa de Wajngarten atua junto à Artplan averiguando se anúncios comprados pela agência foram efetivamente veiculados.

A Artplan já foi denunciada pelo MP por envolvimento em esquema de desvio de dinheiro, além de ter levantado suspeitas de favorecimento em licitações. A Pública questionou a agência sobre os valores gastos no sistema de anúncio do Google. A Artplan respondeu que “fez a intermediação da compra entre Secom e Google, referente ao pacote ‘Formas Inovadoras de Comunicação’”, comercializado pela plataforma, mas que “o suporte e distribuição da campanha foram executados pelo próprio Google, respaldados pelas políticas da sua plataforma”.

Além da Artplan, a Secom fechou contratos para anúncios em redes sociais com a Calia Y2, agência que, antes da gestão de Wajngarten, era a que mais recebia verbas públicas da secretaria. A Calia Y2 fechou contratos para ações em redes sociais em duas campanhas que passam imagem “positiva” do governo Bolsonaro, como revelou a Pública em reportagem, e atuou na divulgação no Google para as campanhas “Dia da Amazônia”, para “mostrar como o Brasil defende e conserva o bioma”; e “Brasil no Exterior”, para melhorar a imagem do governo Bolsonaro no exterior. Foi a empresa responsável pela “Proteger Vidas e Empregos”, em substituição à campanha “O Brasil não Pode Parar”, vetada pela Justiça. Custou R$ 5,3 milhões aos cofres públicos, por intermédio da Secom.

A reportagem questionou a Secom sobre a segmentação utilizada nos anúncios da Previdência e sobre outras campanhas veiculadas no Google, mas não obteve resposta até a data de publicação.

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