Afrorreligiosos denunciam intolerância durante visita a catedral católica no RS

Um grupo ligado à religião afro-gaúcha Batuque, liderado por Mãe Jhenifer de Yemanjá Omimare, teria sido impedido de entrar em Catedral católica, durante tradicional Passeio religioso, em Santa Cruz do Sul (RS), em 30 de outubro passado, de acordo com publicações digitais viralizadas.
Segundo relato publicado no perfil de Mãe Jhenifer de Yemanjá, o grupo foi “barrado aos gritos” por uma representante da Catedral São João Batista, principal templo católico da cidade, o que teria configurado um ato de intolerância religiosa. “Nesta manhã, fomos barrados na porta aos gritos por esta representante dizendo que não poderíamos adentrar, como de costume e calmaria expliquei a mesma que realizamos anualmente e que nunca tínhamos sofrido represálias, (…) a mesma senhora filmou nosso caminho todo e ao final novamente foi nos repreender, conforme o vídeo ela disse que ali não era lugar para nós!”, conta a religiosa.
Vídeos publicados pela própria Mãe Jhenifer de Yemanjá, divulgados em outras páginas que repercutiram o caso, mostram, porém, que o grupo entrou na Catedral, chegou até o altar e concluiu o ritual, e foi abordado na saída. As imagens registram que a mulher católica que se dirige ao grupo não grita nem age de forma agressiva ou impede o grupo de entrar, embora adote um tom de repreensão. Ela afirma que aquele não seria um espaço para rituais de outra crença e filma com o celular todo o movimento do grupo.
De acordo com o que foi exibido no vídeo viralizado, os afrorreligiosos mantiveram a postura respeitosa e, após a conversa, deixaram o templo em silêncio. Mesmo sem agressão direta, a situação provocou desconforto e sentimento de revolta e discriminação entre os participantes, que afirmaram ter sido alvo de preconceito religioso. Com a repercussão nas redes, Bereia checou o caso.

O Batuque e o significado do “Passeio”
O Batuque é uma religião de matriz africana característica do Rio Grande do Sul, que preserva elementos tradicionais do culto aos orixás e tem menor grau de sincretismo com o catolicismo do que outras religiões afro-brasileiras, como a Umbanda ou o Candomblé.
Segundo o antropólogo Érico Carvalho, pesquisador do GeAfro – Grupo de Estudos Afro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Neabi/UFRGS), ouvido pelo Bereia, o Batuque é a forma mais tradicional dos cultos afro-gaúchos, centrada no culto aos orixás e em momentos festivos.
Carvalho explica que o Passeio é uma prática em que os filhos de santo visitam locais simbólicos, como rios, pedreiras, matas e, em alguns casos, igrejas, para prestar homenagens e pedir bênçãos. “As motivações para ir à igreja variam. Às vezes, há sincretismo com o santo padroeiro, em outras é uma tradição passada por gerações de um mesmo terreiro”, explica o pesquisador.
O antropólogo detalha que, em geral, o passeio é breve e pacífico. “Seria apenas ir até a frente do altar, prestar homenagem, deixar flores ou moedas, a título de oferecimento, e se retirar. Algo que não demora nem dez minutos”, frisa Carvalho. Ele ressalta, ainda, que esse costume é amplamente conhecido e reconhecido em comunidades religiosas do estado, sendo uma expressão de fé que busca diálogo, não confronto.
Este argumento também é usado por Mãe Jhenifer de Yemanjá. “Como todos nós praticamos o Passeio, é um fundamento dentro do nosso Batuque aonde vamos à casa de Deus pedir sua licença e apresentar nossos filhos! Não é realizada nenhuma ritualística apenas deixamos moedas na porta como o simbolismo de deixar algo aos mais pobres pois antigamente muitos sem teto iam se abrigar por se tratar de um lugar de todos!”, lamenta a religiosa nos seus registros nas redes.
Bereia tentou contato com Mãe Jhenifer de Yemanjá que, até o fechamento desta matéria, não foi conseguido.

Imagem reprodução Instagram: Grupo que participava do “Passeio” faz orações na Catedral São João Batista
Nota da Catedral São João Batista
A Catedral São João Batista publicou uma nota de esclarecimento sobre o episódio em sua conta oficial no Instagram, em 5 de novembro passado. No documento, o Pároco da Catedral, padre Rodrigo Eduardo Hillesheim, explica: “Uma fiel identificada como membro da comunidade se sentiu na obrigação de intervir, orientando as pessoas que realizavam práticas religiosas da Umbanda a cessarem os rituais naquele local”.
A nota destaca que a mulher “não é funcionária nem representante oficial da paróquia” e que teria agido “com respeito e urbanidade”, respaldando as ações da fiel. O texto argumenta que o templo “é reservado ao culto católico”, conforme o Código de Direito Canônico, e que a devota “visou zelar pela função religiosa do espaço”.
Apesar de negar qualquer ato de intolerância, a nota afirma, entretanto, que os religiosos são praticantes da Umbanda e não do Batuque. Esta confusão, segundo o antropólogo ouvido pelo Bereia, revela desconhecimento sobre as tradições afro-gaúchas.

Imagem: Reprodução Instagram
Contexto da intolerância religiosa no estado
Segundo o Censo brasileiro de 2022, o Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de adeptos das religiões de matriz africana no país, com 3.2% da população, predominância já levantada no Censo de 2010. O antropólogo Erico Carvalho explica, em artigo para a Plataforma Religiao e Poder do ISER, que este número sobe para 6% se forem considerados os oito municípios do primeiro cordão urbano da Região Metropolitana de Porto Alegre. O destaque é o município Viamão, que ocupa o primeiro lugar de adeptos no país com 9.3% de sua população declarada afrorreligiosa. Carvalho afirma que antes de representar números absolutos, este dado apressa a necessidade de se enfrentar a invisibilização institucionalizada no estado.
O Rio Grande do Sul tem registrado aumento expressivo de casos de discriminação religiosa. De acordo com o Observatório Estadual da Segurança Pública, 140 casos de intolerância religiosa foram registrados entre janeiro e setembro de 2025.
Em abril deste ano, durante sessão na Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul, o Conselho Municipal do Povo do Terreiro solicitou a criação de uma Frente Parlamentar de Combate à Intolerância Religiosa, diante de relatos de ataques a locais de cultos afro. Estima-se que existam mais de 300 terreiros no município.
Esse contexto de crescente intolerância reforça a importância de se compreender o episódio da Catedral como parte de uma estrutura social em que as religiões de matriz africana ainda enfrentam estigmas e preconceitos históricos.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso VI, garante a liberdade religiosa, declarando que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção dos locais de culto e suas liturgias. Esse texto foi ressaltado na nota da Igreja Católica para defender seu espaço de culto. “A intervenção da fiel visa, portanto, a zelar pela função social e religiosa específica do templo, que deve ser preservada contra o uso que desvirtua sua destinação primária”, alega o padre responsável pela Catedral..

Imagem: Reprodução Instagram
O olhar do especialista: racismo religioso velado
O antropólogo Érico Carvalho contextualiza o episódio como o reflexo de um problema mais profundo no Rio Grande do Sul, onde a identidade regional se construiu em torno da imigração europeia, invisibilizando a presença e a contribuição afro-brasileira.
“A intervenção da fiel católica reflete o incômodo gerado pela presença afro-religiosa no espaço, utilizando sua indumentária do ritual. Ou seja, a religiosidade hegemônica não permite esta expressão afro-religiosa, mesmo quando feita de forma respeitosa”, analisa.
Para Carvalho, esse tipo de constrangimento não se trata de simples mal-entendido, mas de uma manifestação de racismo religioso velado, especialmente porque o ritual do Passeio é conhecido e socialmente aceito em diversas regiões do estado. “O que ocorreu foi um caso de racismo velado, expresso na forma de racismo religioso. A fiel foi taxativa em dizer que eles não podiam utilizar o espaço, mesmo que este uso fosse conhecido e reconhecido socialmente”, frisa.
O antropólogo acrescenta que o erro da Catedral ao identificar o grupo como umbandista demonstra o desrespeito às religiões de matriz africana. “O próprio fato de a Diocese chamar o grupo de umbandistas demonstra o desrespeito às particularidades afro-religiosas, pois não chegaram nem a se informar sobre quem estavam falando”.
Para ilustrar a questão, Carvalho traça um paralelo com a Lavagem das Escadarias do Bonfim, em Salvador (BA), hoje um símbolo de convivência inter-religiosa, mas que já foi proibido pela Igreja Católica em períodos passados. “A diferença é que, na Bahia, a tradição foi incorporada como expressão cultural. No Rio Grande do Sul, ainda se tenta silenciar práticas semelhantes”, completa o antropólogo.
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Após análise das publicações, vídeos e nota oficial, Bereia conclui que o grupo do Batuque não foi impedido de entrar na Catedral São João Batista, mas foi alvo de uma abordagem repreensiva de uma mulher não credenciada. O fato ocorreu após a visita realizada tradicionalmente àquela igreja, denominada Passeio, e pode ser caracterizado como um episódio de intolerância religiosa.
Embora a fiel católica não tenha agido de forma agressiva ou aos gritos, conforme foi descrito nas legendas dos vídeos, com apelo ao exagero, a tentativa de impedir uma prática tradicional e pacífica revela o incômodo social com as expressões afrorreligiosas em espaços cristãos.
Conforme aponta o antropólogo Érico Carvalho, a situação representa uma forma de racismo religioso velado, resultado da resistência histórica à presença das religiões de matriz africana em contextos dominados pelo catolicismo.
O episódio reforça a urgência do diálogo inter-religioso e do reconhecimento da pluralidade de expressões de fé que compõem a identidade brasileira, reafirmando que a convivência entre diferentes tradições espirituais é parte fundamental da democracia e do respeito à diversidade.
Portanto, Bereia classifica as publicações sobre o caso como verdadeira, em relação à intolerância religiosa. Entretanto, foi identificado apelo ao exagero, em várias publicações na sobre o caso, na informação sobre gritos e ofensas por parte da fiel católica envolvida. O grupo do Batuque realizou o tradicional Passeio dentro da Catedral, mas, foi na saída que ocorreu o constrangimento e a tentativa de restrição, caracterizando racismo religioso velado, conforme análise do especialista entrevistado pelo Bereia.
Referências
História do Axé
https://historiandoaxe.com.br/2021/02/batuque-batuque-gaucho/ Acesso: 5 nov 25
Câmara Municipal de Santa Cruz (RS)
https://www.camarasantacruz.rs.gov.br/noticia/conselho-municipal-do-povo-do-terreiro-pede-abertura-de-frente-parlamentar-da-intolerancia-religiosa-4187 Acesso: 5 nov 25
https://www.instagram.com/reel/DQfEaFfiRJh/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D Acesso: 5 nov 25
https://www.instagram.com/p/DQcIsqCk4E9/ Acesso: 5 nov 25
https://www.instagram.com/p/DQfzEygjs9x/ Acesso: 5 nov 25
https://www.instagram.com/p/DQuHPxVDlWF/?img_index Acesso: 9 nov 25
STF
https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=6970731 Acesso: 12 nov 25
https://x.com/paulodetarsog/status/1985465617051226136 Acesso: 5 nov 25
Religião e Poder
https://religiaoepoder.org.br/artigo/religiao-e-politica-no-extremo-sul-do-brasil Acesso: 13 nov 2025











