PMs invadem escola infantil em SP contra atividade sobre cultura afro-brasileira

A Polícia Militar do estado de São Paulo entrou em uma escola municipal da capital paulista por conta da denúncia de uma atividade proposta em sala de aula sobre cultura afro-brasileira. O caso ocorreu na Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) Antônio Bento, em 12 de novembro passado, a propósito do mês da Consciência Negra.
No dia anterior, o pai de uma aluna, um policial militar, foi à escola reclamar sobre a atividade que sua filha de 4 anos havia executado em sala de aula, um desenho do orixá Iansã. Na unidade escolar, ele foi acusado por funcionários de danificar o mural com a exposição da atividade com os desenhos dos demais alunos e acusou os funcionários de praticarem “culto religioso” dentro da escola.
A intervenção da PM
A reclamação do pai da estudante aconteceu no último dia 11, e foi seguida pela intervenção da Polícia Militar na unidade, no dia seguinte. Segundo relatos de testemunhas, durante a abordagem, o responsável pela aluna, que é policial, foi visto entre agentes do lado de fora da escola.
Os homens, um deles com uma arma de grosso calibre, disseram que a criança estava sendo obrigada a ter “aula de religião africana”.
Professores e pais de crianças relataram que a atuação dos policiais foi hostil, uma funcionária da escola teria sido prensada contra a parede, com uma arma encostada em seu corpo, durante horário de saída escolar, o que causou medo e revolta entre pais e alunos.
A reclamação do pai, que não teve a identidade divulgada, era que a menina estava tendo ensino sobre uma religião que não é a da família. Relatos ainda registram que os policiais permaneceram na escola por mais de uma hora e foram embora por volta das 17h com o pai da aluna.
Sobre a atividade escolar
Como parte de atividades em torno do mês da Consciência Negra, que valoriza expressões da cultura afro-brasileira, a tarefa era desenhar uma das orixás cultuadas em religiões de matriz africana, com base na leitura do livro “Ciranda de Aruanda”, de Liu Olivina. A obra é parte da bibliografia recomendada pela Prefeitura de São Paulo e trata de mitologia afro-brasileira.
As atividades e a bibliografia representam o cumprimento da Lei n° 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas. Em 2008 esta lei foi ampliada por uma nova, a de n° 11.645/2008 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas de ensino fundamental e médio no Brasil, públicas e privadas. As leis foram aprovadas no Congresso Nacional para que crianças e adolescentes recebam educação sobre as raízes indígenas e negras que formam o país e as valorizem, em busca da superação do racismo e de uma cultura antirracista.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação, reforçam que essas abordagens não configuram ensino religioso, mas conteúdos culturais e históricos obrigatórios.
Reações ao abuso de autoridade e o racismo
O Ministério Público de São Paulo solicitou acesso às câmeras de segurança da unidade escolar, para identificar o momento em que o pai da estudante teria danificado o mural escolar. O MPSP solicitou também o acesso às câmeras corporais dos policiais do dia em que fizeram a abordagem na EMEI.
O presidente da Comissão Parlamentar em Defesa do Estado Laico, o deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ), repercutiu o caso em sua conta no Instagram e disse que a Comissão iria acionar o Ministério Público e a Corregedoria da PM.
“Em quantas escolas nós aprendemos sobre mitologia romana, mitologia grega? Daí é formação, quando se fala em cultura africana vão dizer que é doutrinação. O nome disso é racismo, o nome disso é truculência policial, o nome disso é fanatismo religioso tomando conta das forças de segurança pública”, disse o parlamentar.
Organizações como o Coletivo Educação em 1º Lugar e o Sindicato dos professores e funcionários municipais de São Paulo (APROFEM) prestaram solidariedade aos afetados e publicaram notas de repúdio, respectivamente.
“A APROFEM condena toda forma de intimidação e qualquer tentativa de cerceamento da autonomia pedagógica. A segurança física e emocional de Educadores e estudantes não pode ser colocada em risco por motivações pessoais, preconceitos ou desconhecimento das diretrizes legais da Educação Básica.”, disse a APROFEM, em nota.
Após o ocorrido, a diretora da unidade Aline Aparecida Floriano Nogueira pediu licença médica de 30 dias. Ela alega não conseguir voltar ao trabalho por se sentir ameaçada. A educadora disse que passou cerca de 20 minutos sendo questionada pelos agentes armados após a entrada deles na unidade. “Me apresentei como diretora da unidade, perguntei se eram da ronda escolar. Informei que a escola não trabalha com doutrina religiosa. O que fazemos é trabalho centrado a partir do currículo antirracista, documento oficial da rede e apresentamos a cultura afro-brasileira para as crianças”, contou a diretora.
A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME) pediu à Ouvidoria da PMSP apuração sobre a conduta dos policiais. “A SME, por meio do Gabinete Integrado de Proteção Escolar, informa que solicitou esclarecimentos à Ouvidoria da Polícia Militar sobre a ocorrência registrada na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Antônio Bento. A pasta quer compreender os procedimentos adotados pela corporação”, diz a nota.
Em 25 de novembro, pais, professores, estudantes e representantes de sindicatos realizaram um protesto em frente à escola, com cartazes e mensagens como “Escola não é lugar de polícia”, “Mais amor e mais livros, menos violência” e “Onde houver intolerância, que haja mais educação”. Entre as organizações articuladoras estavam o Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem) e o Sindicato dos Trabalhadores nas Unidades de Educação Infantil (Sedin). O ato também teve discursos pela ampliação das redes de resistência antirracistas no país e pela eliminação do machismo dentro das escolas.
Integrante do conselho da escola e mãe de uma das estudantes, Gisele Nery acompanhou todo o episódio de perto. A conselheira relatou que os policiais ameaçaram dar voz de prisão à diretora, que é negra. Naquele instante, os conselheiros, que estavam em uma reunião, escutaram a discussão e saíram em defesa da diretora. “A polícia foi dar voz de prisão a ela. Mas aí todo mundo já tinha visto a cena, as crianças viram”.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que a “Polícia Militar instaurou apuração sobre a conduta da equipe que atendeu à ocorrência, inclusive com a análise das imagens das câmeras corporais”. Segundo o órgão, a professora da unidade de ensino registrou boletim de ocorrência contra o pai da estudante “por ameaça”.
“Lamentável. Triste pela criança, e por todas as crianças que passam por isso. Revoltante a atitude desse pai e da polícia. Que arte faça seu caminho de informar, que o Ciranda transforme medo em encanto. Que as crianças de terreiro sejam sim representadas em sala de aula. Não queremos doutrinar ninguém, queremos apenas informar para termos respeito, coisa que nossa religião dificilmente teve na história desse país. Agradeço o apoio de todos! E aos educadores que seguem trabalhando esse tema em sala, parabéns!”, escreveu a autora do livro Liu Olivina, em publicação na sua conta no Instagram.
A editora também se manifestou:
“A Quatro Cantos seguirá publicando livros de autores e ilustradores negros, continuará acreditando num futuro em que o racismo, inclusive o religioso, não faça mais parte de nossa sociedade. Para que isso aconteça, apresentar às crianças livros como o ‘Ciranda em Aruanda’, da incrível @liuolivina , é imprescindível. Estudamos na escola os mais variados povos, estudamos suas geografias, economias, agriculturas e religiões. Nunca ouvimos falar que algum pai tenha se oposto ao estudo da mitologia grega, ou ao estudo do cristianismo ou protestantismo. O preconceito é direcionado para religiões de origem africana, e isso tem nome: RACISMO RELIGIOSO. Por sorte a lei 10.639/2003 segue respaldando escolas e educadores para que essa luta continue. Axé!”, lamentou o perfil oficial da editora publicadora do livro trabalhado na rede municipal paulista.
Pedagoga especialista “Não houve doutrinação; houve cumprimento da lei”
Bereia ouviu a doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juíz de Fora, Andréa Silveira de Souza. Ela é especialista na área de religião, política, educação, fundamentalismo religioso e ensino religioso, e professora da educação básica. Para a professora, o que ocorreu foi uma distorção provocada por desconhecimento, ou por preconceito, sobre o que se ensina na escola pública.
“Não houve culto, não houve ritual, não houve prática religiosa. As crianças apenas desenharam um personagem da mitologia afro-brasileira depois de lerem um livro. Isso é ensino de cultura, não ensino de religião”, afirma.
A pesquisadora explica, ainda, que a escola é obrigada a abordar história e cultura afro-brasileira, o que inclui elementos da religiosidade dos povos africanos. “A professora estava cumprindo a Lei 10.639/2003. O que o pai interpretou como ‘doutrinação’ é, na verdade, parte do currículo. A escola não está formando fiéis; está formando cidadãos capazes de conhecer e respeitar diferentes tradições.”
De acordo com a professora, a presença armada da polícia em uma EMEI foi desproporcional e representa um ataque à autonomia pedagógica e ao ambiente seguro de aprendizagem, além de demonstrar a persistência de preconceitos e intolerância contra religiões e culturas de matriz africana. “É inadmissível que um conflito pedagógico seja tratado como caso de segurança pública. Isso só aconteceu porque o pai é policial. É um exemplo claro de abuso de poder”.
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O episódio na EMEI Antônio Bento, em São Paulo, de fato ocorreu e evidencia o quanto persistem no Brasil percepções equivocadas e preconceituosas acerca da cultura afro-brasileira. Percepções que, quando combinadas com poder institucional e uso de força, geram violência, intimidação e violação de direitos. Ao mesmo tempo, reafirma a importância da lei que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, como instrumento de combate ao racismo e de valorização da diversidade.
Além disso, é evidente o abuso de autoridade ocorrido por parte do pai da aluna com respaldo de colegas policiais. É imprescindível que a investigação sobre a conduta policial seja feita com transparência e que haja responsabilização, mas também é urgente que a sociedade reafirme e defenda seus direitos: escolas são território de educação, não de armas; e ensinar sobre a cultura afro-brasileira é ensinar sobre o Brasil — com toda sua diversidade histórica, cultural e religiosa.
Referências
Metrópoles
https://www.metropoles.com/sao-paulo/quem-iansa-orixa-polemica-escola
https://www.metropoles.com/sao-paulo/absurdo-autora-livro-orixa-denuncia-pm
Instagram
https://www.instagram.com/p/DRKO-4YjVIA/?img_index=1
https://www.instagram.com/reel/DRKhNClDk5E/
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rcne_relacoes_raciais.pdf
















