PMs invadem escola infantil em SP contra atividade sobre cultura afro-brasileira 

A Polícia Militar do estado de São Paulo entrou em uma escola municipal da capital paulista  por conta da denúncia de uma atividade proposta em sala de aula sobre cultura afro-brasileira. O caso ocorreu na Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) Antônio Bento, em 12 de novembro passado, a propósito do mês da Consciência Negra.

No dia anterior, o pai de uma aluna, um policial militar, foi à escola reclamar sobre a atividade que sua filha de 4 anos havia executado em sala de aula, um desenho do orixá Iansã. Na unidade escolar, ele foi acusado por funcionários de danificar o mural com a exposição da atividade com os desenhos dos demais alunos e acusou os funcionários de praticarem “culto religioso” dentro da escola

A intervenção da PM

A reclamação do pai da estudante aconteceu no último dia 11, e foi seguida pela intervenção da Polícia Militar na unidade, no dia seguinte. Segundo relatos de testemunhas, durante a abordagem, o responsável pela aluna, que é policial, foi visto entre agentes do lado de fora da escola. 

Os homens, um deles com uma arma de grosso calibre, disseram que a criança estava sendo obrigada a ter “aula de religião africana”. 

Professores e pais de crianças relataram que a atuação dos policiais foi hostil,  uma funcionária da escola teria sido prensada contra a parede, com uma arma encostada em seu corpo, durante horário de saída escolar, o que causou medo e revolta entre pais e alunos. 

A reclamação do pai, que não teve a identidade divulgada, era que a menina estava tendo ensino sobre uma religião que não é a da família. Relatos ainda registram  que os policiais permaneceram na escola por mais de uma hora e foram embora por volta das 17h com o pai da aluna. 

Sobre a atividade escolar

Como parte de atividades em torno do mês da Consciência Negra, que valoriza expressões da cultura afro-brasileira, a tarefa era desenhar uma das orixás cultuadas em religiões de matriz africana, com base na leitura do livro “Ciranda de Aruanda”, de Liu Olivina. A obra é parte da bibliografia recomendada pela Prefeitura de São Paulo e trata de mitologia afro-brasileira. 

As atividades e a bibliografia representam o cumprimento da Lei n° 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas. Em 2008 esta lei foi ampliada por uma nova, a de n° 11.645/2008 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas de ensino fundamental e médio no Brasil, públicas e privadas. As leis foram aprovadas no Congresso Nacional para que crianças e adolescentes recebam educação sobre as raízes indígenas e negras que  formam o país e as valorizem, em busca da superação do racismo e de uma cultura antirracista.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, do Ministério da Educação, reforçam que essas abordagens não configuram ensino religioso, mas conteúdos culturais e históricos obrigatórios.

Reações ao abuso de autoridade e o racismo 

O Ministério Público de São Paulo solicitou acesso às câmeras de segurança da unidade escolar, para identificar o momento em que o pai da estudante teria danificado o mural escolar. O MPSP solicitou também o acesso às câmeras corporais dos policiais do dia em que fizeram a abordagem na EMEI. 

O presidente da Comissão Parlamentar em Defesa do Estado Laico, o deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL/RJ), repercutiu o caso em sua conta no Instagram e disse que a Comissão iria acionar o Ministério Público e a Corregedoria da PM.

“Em quantas escolas nós aprendemos sobre mitologia romana, mitologia grega? Daí é formação, quando se fala em cultura africana vão dizer que é doutrinação. O nome disso é racismo, o nome disso é truculência policial, o nome disso é fanatismo religioso tomando conta das forças de segurança pública”, disse o parlamentar.

Organizações como o Coletivo Educação em 1º Lugar e o Sindicato dos professores e funcionários municipais de São Paulo (APROFEM) prestaram solidariedade aos afetados e publicaram notas de repúdio, respectivamente. 

“A APROFEM condena toda forma de intimidação e qualquer tentativa de cerceamento da autonomia pedagógica. A segurança física e emocional de Educadores e estudantes não pode ser colocada em risco por motivações pessoais, preconceitos ou desconhecimento das diretrizes legais da Educação Básica.”, disse a APROFEM, em nota.

Após o ocorrido, a diretora da unidade Aline Aparecida Floriano Nogueira pediu licença médica de 30 dias. Ela alega não conseguir voltar ao trabalho por se sentir ameaçada. A educadora disse que passou cerca de 20 minutos sendo questionada pelos agentes armados após a entrada deles na unidade. “Me apresentei como diretora da unidade, perguntei se eram da ronda escolar. Informei que a escola não trabalha com doutrina religiosa. O que fazemos é trabalho centrado a partir do currículo antirracista, documento oficial da rede e apresentamos a cultura afro-brasileira para as crianças”, contou a diretora

A Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME)  pediu à Ouvidoria da PMSP apuração sobre a conduta dos policiais. “A SME, por meio do Gabinete Integrado de Proteção Escolar, informa que solicitou esclarecimentos à Ouvidoria da Polícia Militar sobre a ocorrência registrada na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Antônio Bento. A pasta quer compreender os procedimentos adotados pela corporação”, diz a nota.

Em 25 de novembro, pais, professores, estudantes e representantes de sindicatos realizaram um protesto em frente à escola, com cartazes e mensagens como “Escola não é lugar de polícia”, “Mais amor e mais livros, menos violência” e “Onde houver intolerância, que haja mais educação”. Entre as organizações articuladoras estavam o Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem) e o Sindicato dos Trabalhadores nas Unidades de Educação Infantil (Sedin). O ato também teve discursos pela ampliação das redes de resistência antirracistas no país e pela eliminação do machismo dentro das escolas.

Integrante do conselho da escola e mãe de uma das estudantes,  Gisele Nery acompanhou todo o episódio de perto. A conselheira relatou que os policiais ameaçaram dar voz de prisão à diretora, que é negra. Naquele instante, os conselheiros, que estavam em uma reunião, escutaram a discussão e saíram em defesa da diretora. “A polícia foi dar voz de prisão a ela. Mas aí todo mundo já tinha visto a cena, as crianças viram”. 

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que a “Polícia Militar instaurou apuração sobre a conduta da equipe que atendeu à ocorrência, inclusive com a análise das imagens das câmeras corporais”. Segundo o órgão, a professora da unidade de ensino registrou boletim de ocorrência contra o pai da estudante “por ameaça”.

“Lamentável. Triste pela criança, e por todas as crianças que passam por isso. Revoltante a atitude desse pai e da polícia. Que arte faça seu caminho de informar, que o Ciranda transforme medo em encanto. Que as crianças de terreiro sejam sim representadas em sala de aula. Não queremos doutrinar ninguém, queremos apenas informar para termos respeito, coisa que nossa religião dificilmente teve na história desse país. Agradeço o apoio de todos! E aos educadores que seguem trabalhando esse tema em sala, parabéns!”, escreveu a autora do livro Liu Olivina, em publicação na sua conta no Instagram.

A editora também se manifestou: 

“A Quatro Cantos seguirá publicando livros de autores e ilustradores negros, continuará acreditando num futuro em que o racismo, inclusive o religioso, não faça mais parte de nossa sociedade. Para que isso aconteça, apresentar às crianças livros como o ‘Ciranda em Aruanda’, da incrível @liuolivina , é imprescindível. Estudamos na escola os mais variados povos, estudamos suas geografias, economias, agriculturas e religiões. Nunca ouvimos falar que algum pai tenha se oposto ao estudo da mitologia grega, ou ao estudo do cristianismo ou protestantismo. O preconceito é direcionado para religiões de origem africana, e isso tem nome: RACISMO RELIGIOSO. Por sorte a lei 10.639/2003 segue respaldando escolas e educadores para que essa luta continue. Axé!”, lamentou o perfil oficial da editora publicadora do livro trabalhado na rede municipal paulista. 

Pedagoga especialista  “Não houve doutrinação; houve cumprimento da lei”

Bereia ouviu a doutora em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juíz de Fora, Andréa Silveira de Souza. Ela é especialista na área de religião, política, educação, fundamentalismo religioso e ensino religioso, e professora da educação básica.  Para a professora, o que ocorreu foi uma distorção provocada por desconhecimento, ou por preconceito, sobre o que se ensina na escola pública.

“Não houve culto, não houve ritual, não houve prática religiosa. As crianças apenas desenharam um personagem da mitologia afro-brasileira depois de lerem um livro. Isso é ensino de cultura, não ensino de religião”, afirma.

A pesquisadora explica, ainda, que a escola é obrigada a abordar história e cultura afro-brasileira, o que inclui elementos da religiosidade dos povos africanos. “A professora estava cumprindo a Lei 10.639/2003. O que o pai interpretou como ‘doutrinação’ é, na verdade, parte do currículo. A escola não está formando fiéis; está formando cidadãos capazes de conhecer e respeitar diferentes tradições.”

De acordo com a professora, a presença armada da polícia em uma EMEI foi desproporcional e representa um ataque à autonomia pedagógica e ao ambiente seguro de aprendizagem, além de demonstrar a persistência de preconceitos e intolerância contra religiões e culturas de matriz africana. “É inadmissível que um conflito pedagógico seja tratado como caso de segurança pública. Isso só aconteceu porque o pai é policial. É um exemplo claro de abuso de poder”. 

***

O episódio na EMEI Antônio Bento, em São Paulo, de fato ocorreu e evidencia o quanto persistem no Brasil percepções equivocadas e preconceituosas acerca da cultura afro-brasileira. Percepções que, quando combinadas com poder institucional e uso de força, geram violência, intimidação e violação de direitos. Ao mesmo tempo, reafirma a importância da lei que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, como instrumento de combate ao racismo e de valorização da diversidade.

Além disso, é evidente o abuso de autoridade ocorrido por parte do pai da aluna com respaldo de colegas policiais. É imprescindível que a investigação sobre a conduta policial seja feita com transparência e que haja responsabilização, mas também é urgente que a sociedade reafirme e defenda seus direitos: escolas são território de educação, não de armas; e ensinar sobre a cultura afro-brasileira é ensinar sobre o Brasil — com toda sua diversidade histórica, cultural e religiosa.

Referências

Estadão
https://www.estadao.com.br/educacao/pms-entram-escola-infantil-sp-pai-reclamar-tarefa-religiao-matriz-africana-npr/ 

Uol
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/11/19/escola-alvo-pm-orixa-licenca-medica.htm 

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/11/18/mpsp-pre-apuracao-pm-escola-orixa-sp.htm

Metrópoles
https://www.metropoles.com/sao-paulo/quem-iansa-orixa-polemica-escola 

https://www.metropoles.com/sao-paulo/absurdo-autora-livro-orixa-denuncia-pm

Instagram
https://www.instagram.com/p/DRKO-4YjVIA/?img_index=1 

https://www.instagram.com/reel/DRKhNClDk5E/

https://www.facebook.com/proflucienecavalcante/videos/den%C3%BAncia-pol%C3%ADcia-militar-armada-invadiu-uma-escola-infantil-na-zona-oeste-de-s%C3%A3o/874212518365668

Planalto
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm#:~:text=Nos%20estabelecimentos%20de%20ensino%20fundamental,Hist%C3%B3ria%20e%20Cultura%20Afro%2DBrasileira

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm 

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm 

Aprofem
https://www.aprofem.com.br/nota-de-repudio-aprofem-condena-acao-policial-e-defende-a-integridade-da-comunidade-escolar-da-emei-antonio-bento 

Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-11/manifestantes-protestam-contra-entrada-de-pms-armados-em-escola-de-sp?utm_source=chatgpt.com 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-11/manifestantes-protestam-contra-entrada-de-pms-armados-em-escola-de-sp

http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rcne_relacoes_raciais.pdf 

Afrorreligiosos denunciam  intolerância durante visita a catedral católica no RS 

Com apelo ao exagero

Um grupo ligado à religião afro-gaúcha Batuque, liderado por Mãe Jhenifer de Yemanjá Omimare, teria sido impedido de entrar em Catedral católica, durante tradicional Passeio religioso, em Santa Cruz do Sul (RS), em 30 de outubro passado, de acordo com publicações digitais viralizadas.

Segundo relato publicado no perfil de Mãe Jhenifer de Yemanjá, o grupo foi “barrado aos gritos” por uma representante da Catedral São João Batista, principal templo católico da cidade, o que teria configurado um ato de intolerância religiosa. “Nesta manhã, fomos barrados na porta aos gritos por esta representante dizendo que não poderíamos adentrar, como de costume e calmaria expliquei a mesma que realizamos anualmente e que nunca tínhamos sofrido represálias, (…) a mesma senhora filmou nosso caminho todo e ao final novamente foi nos repreender, conforme o vídeo ela disse que ali não era lugar para nós!”, conta a religiosa. 

Vídeos publicados pela própria Mãe Jhenifer de Yemanjá, divulgados em outras páginas que repercutiram o caso, mostram, porém, que o grupo entrou na Catedral, chegou até o altar e concluiu o ritual, e foi abordado na saída. As imagens registram que a mulher católica que se dirige ao grupo não grita nem age de forma agressiva ou impede o grupo de entrar, embora adote um tom de repreensão. Ela afirma que aquele não seria um espaço para rituais de outra crença e filma com o celular todo o movimento do grupo. 

De acordo com o que foi exibido no vídeo viralizado, os afrorreligiosos mantiveram a postura respeitosa e, após a conversa, deixaram o templo em silêncio. Mesmo sem agressão direta, a situação provocou desconforto e sentimento de revolta e discriminação entre os participantes, que afirmaram ter sido alvo de preconceito religioso. Com a repercussão nas redes, Bereia checou o caso.

O Batuque e o significado do “Passeio”

O Batuque é uma religião de matriz africana característica do Rio Grande do Sul, que preserva elementos tradicionais do culto aos orixás e tem menor grau de sincretismo com o catolicismo do que outras religiões afro-brasileiras, como a Umbanda ou o Candomblé.

Segundo o antropólogo Érico Carvalho, pesquisador do GeAfro – Grupo de Estudos Afro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Neabi/UFRGS), ouvido pelo Bereia, o Batuque é a forma mais tradicional dos cultos afro-gaúchos, centrada no culto aos orixás e em momentos festivos.

Carvalho explica que o Passeio é uma prática em que os filhos de santo visitam locais simbólicos, como rios, pedreiras, matas e, em alguns casos, igrejas, para prestar homenagens e pedir bênçãos. “As motivações para ir à igreja variam. Às vezes, há sincretismo com o santo padroeiro, em outras é uma tradição passada por gerações de um mesmo terreiro”, explica o pesquisador.

O antropólogo detalha que, em geral, o passeio é breve e pacífico. “Seria apenas ir até a frente do altar, prestar homenagem, deixar flores ou moedas, a título de oferecimento, e se retirar. Algo que não demora nem dez minutos”, frisa Carvalho. Ele ressalta, ainda, que esse costume é amplamente conhecido e reconhecido em comunidades religiosas do estado, sendo uma expressão de fé que busca diálogo, não confronto. 

Este argumento também é usado por Mãe Jhenifer de Yemanjá. “Como todos nós praticamos o Passeio, é um fundamento dentro do nosso Batuque aonde vamos à casa de Deus pedir sua licença e apresentar nossos filhos! Não é realizada nenhuma ritualística apenas deixamos moedas na porta como o simbolismo de deixar algo aos mais pobres pois antigamente muitos sem teto iam se abrigar por se tratar de um lugar de todos!”, lamenta a religiosa nos seus registros nas redes.

Bereia tentou contato com Mãe Jhenifer de Yemanjá que, até o fechamento desta matéria, não foi conseguido. 

Imagem reprodução Instagram: Grupo que participava do “Passeio” faz orações na Catedral São João Batista 

Nota da Catedral São João Batista

A Catedral São João Batista publicou uma nota de esclarecimento sobre o episódio em sua conta oficial no Instagram, em 5 de novembro passado. No documento, o Pároco da Catedral, padre Rodrigo Eduardo Hillesheim, explica:  “Uma fiel identificada como membro da comunidade se sentiu na obrigação de intervir, orientando as pessoas que realizavam práticas religiosas da Umbanda a cessarem os rituais naquele local”.

A nota destaca que a mulher “não é funcionária nem representante oficial da paróquia” e que teria agido “com respeito e urbanidade”, respaldando as ações da fiel. O texto argumenta que o templo “é reservado ao culto católico”, conforme o Código de Direito Canônico, e que a devota “visou zelar pela função religiosa do espaço”.

Apesar de negar qualquer ato de intolerância, a nota afirma, entretanto, que os religiosos são praticantes da Umbanda e não do Batuque. Esta confusão, segundo o antropólogo ouvido pelo Bereia, revela desconhecimento sobre as tradições afro-gaúchas.

Imagem: Reprodução Instagram

Contexto da intolerância religiosa no estado

Segundo o Censo brasileiro de 2022, o Rio Grande do Sul é o estado com o maior número de adeptos das religiões de matriz africana no país, com 3.2% da população, predominância já levantada no Censo de 2010. O antropólogo Erico Carvalho explica,  em artigo para a Plataforma Religiao e Poder do ISER, que este número sobe para 6% se forem considerados os oito municípios do primeiro cordão urbano da Região Metropolitana de Porto Alegre. O destaque é o município Viamão, que ocupa o primeiro lugar de adeptos no país com 9.3% de sua população declarada afrorreligiosa. Carvalho afirma que antes de representar números absolutos, este dado apressa a necessidade de se enfrentar a invisibilização institucionalizada no estado.

O Rio Grande do Sul tem registrado aumento expressivo de casos de discriminação religiosa. De acordo com o Observatório Estadual da Segurança Pública, 140 casos de intolerância religiosa foram registrados entre janeiro e setembro de 2025.

Em abril deste ano, durante sessão na Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul, o Conselho Municipal do Povo do Terreiro solicitou a criação de uma Frente Parlamentar de Combate à Intolerância Religiosa, diante de relatos de ataques a locais de cultos afro. Estima-se que existam mais de 300 terreiros no município.

Esse contexto de crescente intolerância reforça a importância de se compreender o episódio da Catedral como parte de uma estrutura social em que as religiões de matriz africana ainda enfrentam estigmas e preconceitos históricos.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso VI, garante a liberdade religiosa, declarando que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção dos locais de culto e suas liturgias. Esse texto foi ressaltado na nota da Igreja Católica para defender seu espaço de culto. “A intervenção da fiel visa, portanto, a zelar pela função social e religiosa específica do templo, que deve ser preservada contra o uso que desvirtua sua destinação primária”, alega o padre responsável pela Catedral..

Imagem: Reprodução Instagram

O olhar do especialista: racismo religioso velado

O antropólogo Érico Carvalho contextualiza o episódio como o reflexo de um problema mais profundo no Rio Grande do Sul, onde a identidade regional se construiu em torno da imigração europeia, invisibilizando a presença e a contribuição afro-brasileira.

“A intervenção da fiel católica reflete o incômodo gerado pela presença afro-religiosa no espaço, utilizando sua indumentária do ritual. Ou seja, a religiosidade hegemônica não permite esta expressão afro-religiosa, mesmo quando feita de forma respeitosa”, analisa.

Para Carvalho, esse tipo de constrangimento não se trata de simples mal-entendido, mas de uma manifestação de racismo religioso velado, especialmente porque o ritual do Passeio é conhecido e socialmente aceito em diversas regiões do estado. “O que ocorreu foi um caso de racismo velado, expresso na forma de racismo religioso. A fiel foi taxativa em dizer que eles não podiam utilizar o espaço, mesmo que este uso fosse conhecido e reconhecido socialmente”, frisa. 

O antropólogo acrescenta que o erro da Catedral ao identificar o grupo como umbandista demonstra o desrespeito às religiões de matriz africana. “O próprio fato de a Diocese chamar o grupo de umbandistas demonstra o desrespeito às particularidades afro-religiosas, pois não chegaram nem a se informar sobre quem estavam falando”.

Para ilustrar a questão, Carvalho traça um paralelo com a Lavagem das Escadarias do Bonfim, em Salvador (BA), hoje um símbolo de convivência inter-religiosa, mas que já foi proibido pela Igreja Católica em períodos passados. “A diferença é que, na Bahia, a tradição foi incorporada como expressão cultural. No Rio Grande do Sul, ainda se tenta silenciar práticas semelhantes”, completa o antropólogo.

***

Após análise das publicações, vídeos e nota oficial, Bereia conclui que o grupo do Batuque não foi impedido de entrar na Catedral São João Batista, mas foi alvo de uma abordagem repreensiva de uma mulher não credenciada. O fato ocorreu após a visita realizada tradicionalmente àquela igreja, denominada Passeio, e pode ser caracterizado como um episódio de intolerância religiosa.

Embora a fiel católica não tenha agido de forma agressiva ou aos gritos, conforme foi descrito nas legendas dos vídeos, com apelo ao exagero, a tentativa de impedir uma prática tradicional e pacífica revela o incômodo social com as expressões afrorreligiosas em espaços cristãos.

Conforme aponta o antropólogo Érico Carvalho, a situação representa uma forma de racismo religioso velado, resultado da resistência histórica à presença das religiões de matriz africana em contextos dominados pelo catolicismo.

O episódio reforça a urgência do diálogo inter-religioso e do reconhecimento da pluralidade de expressões de fé que compõem a identidade brasileira, reafirmando que a convivência entre diferentes tradições espirituais é parte fundamental da democracia e do respeito à diversidade.

Portanto, Bereia classifica as publicações sobre o caso como verdadeira, em relação à intolerância religiosa. Entretanto, foi identificado apelo ao exagero, em várias publicações na sobre o caso, na informação sobre gritos e ofensas por parte da fiel católica envolvida. O grupo do Batuque realizou o tradicional Passeio dentro da Catedral, mas, foi na saída que ocorreu o constrangimento e a tentativa de restrição, caracterizando racismo religioso velado, conforme análise do especialista entrevistado pelo Bereia.

Referências

História do Axé

https://historiandoaxe.com.br/2021/02/batuque-batuque-gaucho/ Acesso: 5 nov 25

Câmara Municipal de Santa Cruz (RS)

https://www.camarasantacruz.rs.gov.br/noticia/conselho-municipal-do-povo-do-terreiro-pede-abertura-de-frente-parlamentar-da-intolerancia-religiosa-4187 Acesso: 5 nov 25

Instagram

https://www.instagram.com/reel/DQfEaFfiRJh/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D  Acesso: 5 nov 25

https://www.instagram.com/p/DQcIsqCk4E9/ Acesso: 5 nov 25

https://www.instagram.com/p/DQfzEygjs9x/  Acesso: 5 nov 25

https://www.instagram.com/p/DQuHPxVDlWF/?img_index Acesso: 9 nov 25

STF

https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=6970731 Acesso: 12 nov 25

Twitter

https://x.com/paulodetarsog/status/1985465617051226136  Acesso: 5 nov 25

Religião e Poder

https://religiaoepoder.org.br/artigo/religiao-e-politica-no-extremo-sul-do-brasil Acesso: 13 nov 2025

Mãe de Santo tem casa interditada por inundação em Santa Catarina e busca reparação para retomar as atividades religiosas

O risco de rompimento de uma adutora provocou a interdição do terreiro de Umbanda liderado pela yalorixá Luíza Moreira, conhecida como Vovó Luíza, de Camboriú (SC), e também da casa onde ela vivia com o filho Antonio Maicon da Silva no mesmo lugar, em agosto de 2024. O local conhecido como “Tenda de Umbanda Vovó Caxambi”, no bairro Tabuleiro, foi interditado pela Defesa Civil por conta dos riscos aos moradores e frequentadores. 

Em busca de reparação, pelo menos para um local adequado para as atividades do terreiro, o filho da religiosa abriu, em 2024, uma petição cível  contra a Empresa Municipal de Água e Saneamento de Balneário Camboriú (Emasa). Com a repercussão nas mídias digitais em torno de suspeitas de intolerância religiosa, Bereia checou o caso.

O processo judicial

Atualmente, a yalorixá e o filho estão em uma casa com aluguel social pela Prefeitura de Camboriú. Porém, propriedade fica localizada em um espaço que impede a realização de algumas das atividades religiosas, como o uso do atabaque, instrumento de percussão. 

Casa de Luíza Moreira inundada pela adutora. Reprodução/Notícias Agora RPR

Em 26 de agosto de 2025, uma sentença judicial determinou a demolição da Tenda de Umbanda para a realização de obras necessárias no local pela Emasa. Em compensação, foi também deliberado que o Município de Camboriú assegure à mãe de santo e seu filho uma moradia definitiva que possibilite também as atividades religiosas. O cumprimento da sentença pode se dar por meio de doação de imóvel ou da manutenção do aluguel social.

Enquanto o cumprimento da decisão judicial não é efetuado, Luíza Moreira e seu filho permanecem vivendo no local alugado pela Prefeitura. De acordo com depoimento concedido ao Bereia, eles não acreditam que estão sofrendo intolerância religiosa, mas lamentam que a mudança tenha limitado as atividades de culto que eram realizadas no antigo terreiro.

Bereia também ouviu o secretário da Proteção e Defesa Civil de Camboriú (SC) Robson dos Santos, para entender quais são os argumentos técnicos sobre o caso. De acordo com o secretário, a propriedade foi interditada, em 2024, pela Defesa Civil, porque estava localizada em cima de uma adutora da Empresa Municipal de Água e Saneamento de Balneário Camboriú (Emasa).  “Ela (Luiza Moreira) só foi retirada dali do local via processo judicial, ninguém chegou e desmanchou a casa dela, isso foi tudo pedido na Justiça. E nesse meio termo, ficou um tempo parada, a Prefeitura a colocou em uma outra casa, está pagando aluguel social dela, tudo certinho”. 

Santos conta ainda que, após a remoção, a Emasa foi até o local e assumiu toda a situação. “A empresa fez o desmanche da casa e limpou o terreno. Ela não poderia mais ficar ali, porque a adutora já estava com vazamento, inundando a casa dela, então era perigoso deixá-la ali. Podia romper a qualquer momento, por isso, foi retirada dali, com urgência e a propriedade foi interditada pela defesa civil”, afirma o secretário e pontua que, agora que o terreno já está limpo e o serviço que a Emasa precisava fazer, já está executando. 

“O que pega é que não é a casa da gente. Não é o nosso solo sagrado que foi preparado por ela, que é com terra batida, com cinza de fogão, com areia de praia”, conta Antônio Maicon, filho de Vovó Luíza.

Ele diz, ainda, que o terreno onde moravam e onde funcionava o terreiro de umbanda foi doado para eles por uma ex-prefeita da cidade, não ocupado irregularmente. No entanto, recentemente descobriram que, apesar de estarem estabelecidos há mais de 13 anos no local, não há uma documentação oficial que coloque o terreno no nome deles. 

No último mês, a “Tenda de Umbanda da Vovó Caxambi” foi demolida. Por conta dos riscos com o rompimento da adutora, Antônio Maicon relata entender não ser seguro retornar para o local no momento e que ficariam satisfeitos com um novo lugar fixo que permita a realização das atividades religiosas.

“A gente não tá pedindo nada, a gente só quer o que é nosso, continuar com as nossas atividades religiosas. O evangélico tem o lugar dele pra devoção. O católico tem o lugar dele pra devoção. E nós, povos de terreiro, de matriz africana, preta, negra, a gente também tem o nosso”, diz Antônio Maicon em entrevista ao Notícias Agora RPR.

Segundo o secretário municipal Robson Santos, pode ser que, em um futuro breve, eles possam voltar. “Se não me engano, eles até já finalizaram o serviço. Agora, se vai ser reconstruída outra casa no mesmo local, isso vai ter um processo judicial e precisa ser visto como será solicitado. Não tem como eu garantir quem vai pagar a nova casa, ou se D. Luiza será realocada em alguma outra casa. Ìsso quem vai determinar é a Justiça. O Ministério Público vai ter que passar para a gente, para entendermos o que que vai ser feito”, ressalta.

Quem é a Vovó Luíza?

Luíza Moreira é mãe de santo há décadas e tem idade aproximada de 111 anos, devido à incerteza de registro civil. Neta de um escravo liberto, ainda criança ouviu da avó que por ter nascido em uma sexta-feira santa tinha um dom e por isso era chamada para curar as feridas de outras pessoas, apesar de não gostar. Anos depois, “fez as pazes” com a tarefa de curar.

Por volta de 1940, Luíza teve o primeiro contato com a Umbanda. Por anos, comandou a “Tenda de Umbanda Vovó Caxambi”, uma casa da religião baseada na caridade, que não cobrava pela assistência e tinha o objetivo de ajudar as pessoas a se desenvolver espiritualmente. Por mais de 13 anos, o terreiro ficou localizado na Rua Manoel Inácio Linhares, onde ficou até 2024, quando a casa foi interditada.

Foto: Reprodução/Instagram

O que dizem os religiosos

Bereia ouviu a avaliação do babalawô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) sobre este caso.  Ele atua há anos na linha de frente contra o racismo religioso e na defesa da liberdade de crença, consolidando-se como uma das principais vozes nesse enfrentamento no Brasil. Ivanir dos Santos não presenciou diretamente o episódio que ocorreu com a Vovó Luíza, mas recebeu o relato por meio de outras pessoas e resolveu denunciar.

“O poder público, tanto municipal, como estadual, tem destinado terrenos e imóveis públicos para as igrejas. Por que não destinar um espaço público para os religiosos de matriz africana? Se o Estado é laico, tem que tratar todo mundo de forma igual”, refletiu o babalawô.

Babalawô Ivanir dos Santos durante a 16ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Ele ainda falou sobre o crescimento da intolerância religiosa no país. “As políticas públicas de combate à intolerância religiosa, ou seja, de diversidade religiosa, não têm alcançado ainda o tecido social brasileiro como deveriam. Mostra que as autoridades públicas precisam fazer um esforço muito maior no campo da educação, e também no campo do diálogo e consequentemente na área criminal também”.

Referências:

Notícias Agora RPR

https://www.facebook.com/reel/1962393891165004

JUS Brasil

https://www.jusbrasil.com.br/processos/753629988/processo-n-500XXXX-0320248240113-do-tjsc

Instagram

https://www.instagram.com/tendadeumbandavovocaxambi

Terra

https://www.terra.com.br/amp/story/nos/conheca-a-mae-de-santo-mais-velha-do-brasil%2C3eba3a06ced5f3284cc2ddba903c2548q41bwosr.html?utm_source=chatgpt.com

Congresso em Foco

https://www.congressoemfoco.com.br/coluna/12853/vo-luiza-de-iemanja-centenaria-que-testemunhou-o-brasil-de-ontem-e-de-hoje

Para criticar política econômica, opositores espalham notícia de jornal inventada sobre esposa de Lula e Candomblé

Um conteúdo falso que circula nas mídias sociais religiosas alega que a coluna Painel da Folha de S.Paulo teria publicado um texto intitulado “Janja encomenda ritual de candomblé para reduzir dólar, diz assessor do PT”. A publicação, que foi visualizada mais de 25 mil vezes em menos de quatro horas, utiliza o design do jornal e a foto do editor Fábio Zanini, mas não leva a nenhum link verdadeiro. Após viralizar, a montagem foi desmentida pela Folha na noite de 3 de julho.

Opositores do governo Lula amplificaram a desinformação em suas redes, entre eles o músico da banda Ultraje a Rigor Roger Moreira e o humorista Danilo Gentili. Segundo a apuração do Bereia, até o fechamento desta matéria, a publicação do músico foi a mais repercutida no X, antigo Twitter, com 141 mil visualizações, e ainda permanece ativa, mesmo após o desmentido da Folha.

O conteúdo falso gerou dezenas de comentários marcados por intolerância religiosa contra o Candomblé, como “Macumba e feitiçaria cobra um preço alto”, “Está repreendido em nome de Jesus”. 

Imagem: Reprodução/X.

A mentira também foi propagada rapidamente entre perfis religiosos. O pastor da Igreja Vintage Jack, famoso por divulgar fotos da Bíblia ao lado de armas e charutos, foi um dos inúmeros compartilhadores de mentira. Ele repercutiu a publicação de um seguidor, com a bandeira de Israel ao lado do nome, comenta: “Caramba estamos lascados. A história se repete Pastor, Jezabel e o rei Acabe”. Mais tarde o perfil original apagou a postagem com a montagem, mas o pastor manteve o compartilhamento. 

Bereia ouviu o professor doutor em História pela UFRJ e babalawô Ivanir dos Santos sobre as expressões de intolerância que acompanham a desinformação propagada. Ele afirma que “a intolerância que aconteceu contra Janja é um retrato de como a sociedade brasileira promove o preconceito, a exclusão religiosa. Por isso, acredito que é importante o Estado Brasileiro elaborar e executar um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, com a participação da sociedade civil, é fundamental para que possamos promover a tolerância, o respeito e a diversidade”. 

A montagem faz parte de uma série de outras que relacionam a alta do dólar com a participação do presidente Lula e da primeira-dama, Janja da Silva, no desfile de 2 de Julho, que comemora a Independência da Bahia em Salvador. Na ocasião, o presidente usou um turbante do afoxé Filhos de Gandhy, tradicional bloco de carnaval baiano, ao lado de sua esposa e do governador do estado, Jerônimo Rodrigues (PT). O desfile acontece dias depois de anunciar investimento em rodovias do estado e assinar autorizações para o programa Minha Casa, Minha Vida.

Imagem: Ricardo Stuckert/PR

No entanto, a presença do presidente Lula no desfile foi suficiente para opositores do governo espalharem desinformação. Com monitoramento feito pela ferramenta LupaScan, sistema criado pela Agência Lupa que monitora as redes sociais dos políticos eleitos em busca de desinformação, Bereia apurou que o deputado federal cristão Gustavo Gayer (PL-GO) desinformou ao afirmar que o presidente estava no estado baiano para festejar, em sua conta oficial no Youtube. A fim de criticar o Governo, o parlamentar omitiu que se tratava da agenda oficial do presidente da República para anunciar investimentos no estado.

Imagem: Reprodução/Youtube.

Afoxé é manifestação cultural

O afoxé é um cortejo que ocorre durante o carnaval, representando uma das muitas manifestações culturais dos negros brasileiros, elaborada pelo povo iorubá. Também conhecido como Candomblé de rua. O termo afoxé vem da língua iorubá e significa “o enunciado que faz”.

Já o afoxé Filhos de Gandhy é um dos mais tradicionais do país, considerado o maior e mais belo do Carnaval da Bahia. Foi fundado por estivadores portuários em Salvador em 18 de fevereiro de 1949. O cortejo é composto exclusivamente por homens e se inspira nos princípios de não-violência e paz de Mahatma Gandhi. Os integrantes usam fantasias de lençóis e toalhas brancos para simbolizar as vestes indianas. 

Hoje o Gandhy conta com cerca de 10.000 membros e é conhecido por suas vestimentas tradicionais, que incluem turbantes, perfume de alfazema e colares azul e branco. Os colares, chamados “colar dos filhos de Gandhy”, são dados aos admiradores como símbolo de paz.

***

Bereia chama a atenção de leitores e leitoras para o tipo de oposição política extremista que se baseia em mentiras e intolerância e estimula ódio às diferenças, portanto, deve ser confrontada. Oposição política é saudável em uma democracia, por meio de debates qualificados e denúncias, quando couberem, não com o uso de mentira e discurso de ódio. 

Referências:

Folha https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/07/coluna-painel-da-folha-nao-publicou-que-janja-recorreu-ao-candomble-para-reduzir-dolar.shtml Acesso 04 de Julho de 2024

Agência Brasil https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2024-07/cerimonia-de-anuncios-de-investimentos-para-melhoria-de-rodovi-1719860997 Acesso 04 de Julho de 2024

Estado da Bahia https://pelourinhodiaenoite.salvador.ba.gov.br/afoxe-filhos-de-gandhy/ Acesso 04 de Julho de 2024

Cristofobia e intolerância religiosa: as fake news como estratégia política para enganar cristãos na campanha eleitoral 2022

A campanha eleitoral começou oficialmente em 16 de agosto. Os programas de televisão e rádio, além das publicações nas mídias sociais, devem respeitar as regras estabelecidas pela legislação eleitoral. Porém, no ciberespaço, aparentemente sem regulação e controle, a campanha eleitoral começou há algum tempo, ou melhor, não parou e esta edição está ativa desde 2018. 

No campo virtual não existem regras. Quanto mais alarmante e absurdo, melhor. O objetivo é gerar pânico e com isso, compartilhamentos. No que diz respeito às religiões, nestas eleições nacionais de 2022, os temas da cristofobia (perseguição aos cristãos no Brasil), além de temas como intolerância religiosa e racismo religioso, parecem estar no centro da disputa por votos e para criticar adversários. 

Para além de indivíduos religiosos,  o discurso cristão é uma linguagem familiar a quase todos os brasileiros, compreendido pela ampla maioria. Isto porque, existe uma referência histórica e cultural desde a colonização portuguesa, que trouxe com ela o Cristianismo católico, e cria um senso de identidade, ainda que grande parte  da população não frequente uma igreja. Desta maneira, o discurso religioso com ênfase cristã é utilizado como arma política para além dos muros das igrejas. 

A controvérsia do Estado laico

Num Estado laico como o Brasil, lideranças políticas não devem se comportar como fiéis de uma crença particular, e muito menos atacar qualquer religião. No entanto, não é isto que se observa neste conturbado processo eleitoral. Em tempos de mídias sociais, a desinformação com a circulação de conteúdo falso e enganoso, especialmente, as chamadas fake news, se tornaram armas mais poderosas do que as antigas artilharias militares. 

De acordo com a antropóloga, pesquisadora e coordenadora de Religião e Política do ISER Lívia Reis, de forma abrangente, podemos dizer que um Estado é laico quando há uma separação oficial entre Estado e religião. Isso significa que não existe uma religião oficial de Estado, que nenhuma religião pode ser beneficiada em detrimento de outras e que a interferência religiosa não é permitida em decisões estatais. Assim, ao invés de divulgar, perseguir ou hostilizar religiões, um Estado laico deve garantir que todas as religiões sejam valorizadas e tenham o direito de existir igualmente.

Entretanto, Bereia tem monitorado discursos e publicações em mídias sociais de personagens políticos importantes como a primeira dama Michelle Bolsonaro e o deputado pastor Marco Feliciano, além de um grande número de políticos e “influenciadores” digitais cristãos e observa o quanto pregam a intolerância religiosa, reverberando discursos de ódio e disseminando pânico com falsas notícias. 

O caso da intolerância contra religiões de matriz africana 

A primeira-dama Michelle Bolsonaro compartilhou nos stories de seu Instagram, em 9 de agosto, um vídeo que tem imagens editadas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em encontro com lideranças de religiões de matriz africana. A publicação tem mensagens que associam a prática deste grupo religioso às trevas. Ao compartilhar o vídeo, a primeira-dama escreveu: “Isso pode, né? Eu, falar de Deus, não”, numa referência às críticas que recebera por promover uma reunião de oração de vigília durante a madrugada no Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo Federal. 

O vídeo foi publicado originalmente pela vereadora autodenominada cristã, de igreja não identificada, Sonaira Fernandes (Republicanos-SP). Na legenda da publicação, a vereadora escreveu: “Lula entregou sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã.”

Imagem: reprodução do Instagram

Na mesma direção da referência negativa de Sonaira Fernandes, dias antes da postagem no Instagram, no domingo, 7 de agosto, a primeira-dama e o presidente participaram de culto na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, ao lado do pastor André Valadão e outras lideranças religiosas. Michelle Bolsonaro, ao se referir sobre os palácios de governo em Brasília, afirmou, ao lado do presidente em lágrimas, que: 

“Por muitos anos, por muito tempo, aquele lugar foi um lugar consagrado a demônios. Cozinha consagrada a demônios, Planalto consagrado a demônios e hoje consagrado ao Senhor Jesus.” (a partir do 00:06:00 min do vídeo).

Bereia avalia que o caso da postagem de Sonaira Fernandes, compartilhada por Michelle Bolsonaro, ao lado da afirmação feita pela primeira dama na Igreja Batista em Belo Horizonte, não é um simples caso de desinformação sobre uma determinada expressão religiosa. Como pesquisadores cujos estudos Bereia tem acesso afirmam, é um caso de desinformação baseada em intolerância religiosa utilizada como campanha política.

O antropólogo e Conselheiro do ISER Marcelo Camurça, observa que “diante da aproximação das eleições presidenciais de 2022, com a perda crescente de popularidade de Bolsonaro, e o avanço de sua ação tóxica de afrontar as instituições democráticas da república, a estratégia (que começa a se esboçar nos “gabinetes do ódio” e redes de expansão de fake news) de intolerância religiosa como forma de atingir adversários políticos pode recrudescer. Projetos políticos que articulam o pluralismo cultural, religioso, étnico começam a ser rotulados como provindos de religiões do “mal” e por isso ditos “anti-evangélicos”. Não é por outra que Bolsonaro e seus partidários vêm levantando o argumento de uma inexistente “cristofobia” para justificar, como nos exemplos acima, uma confrontação política na forma de “guerra espiritual”.

A desinformação produzida pela vereadora Sonaira Fernandes, compartilhada por Michele Bolsonaro, foi reproduzida por outras personagens do mundo político, como o deputado federal Pastor Marco Feliciano (PL-SP) e continua circulando amplamente mesmo depois de denúncias às plataformas de mídias sociais.

Perseguição às igrejas no Brasil: a mentira que tem mais de 30 anos 

Supostas notícias relacionando o Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Lula e a “esquerda” com o a perseguição e o fechamento de igrejas têm sido compartilhadas diariamente com diversas mídias digitais religiosas. 

Esta desinformação é antiga e foi disseminada já nas primeiras eleições diretas para a Presidência da República depois da ditadura militar, em 1989. Naquela ocasião, circulava entre fiéis a orientação de não votar em candidatos da esquerda, especialmente no candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, porque, no poder, fecharia as igrejas e perseguiria cristãos. Esta campanha foi amplificada quando boa parte do segmento pentecostal decidiu apoiar o candidato Fernando Collor de Mello (PRN). Esta afirmação foi repetida em todos os pleitos em que Lula se candidatou depois de 1989.

Tais “notícias” nunca apresentam as fontes para as informações apresentadas, têm autoria desconhecida e com teor alarmante, pedem o compartilhamento urgente da mensagem. Há ainda casos da criação de postagens com autoria falsa, como é o caso desta postagem atribuída falsamente ao ex-presidente Lula, com a afirmação de que em um futuro governo a igreja teria seus benefícios cortados entre outras “punições”.   

Imagem: reprodução do UOL

Além do compartilhamento nos grupos de mensagens e nas redes sociais digitais, estes conteúdos são legitimados por autoridades públicas, como o já citado pastor deputado Marco Feliciano (PL-SP), destacado propagador de desinformação. 

A menos de dois meses das eleições de 2022,  uma notícia falsa voltou a se espalhar entre fiéis igrejas evangélicas por todo o país: a possibilidade de seus templos serem fechados caso Lula volte a governar o país. Feliciano admitiu que tem feito essa pregação para “alertar” os evangélicos.

“Conversamos sobre o risco de perseguição, que pode culminar no fechamento de igrejas. Tenho que alertar meu rebanho de que há um lobo nos rondando, que quer tragar nossas ovelhas através da enganação e da sutileza. A esmagadora maioria das igrejas está anunciando a seus fiéis: ‘tomemos cuidado’”disse Feliciano, que é pastor da Assembleia de Deus Ministério Catedral do Avivamento.

Imagem: reprodução do Twitter

Diante desse cenário, o PT acelerou o movimento para rebater as acusações. O partido produziu um material no qual afirma que Lula “é cristão, nunca fechou e nem vai fechar igrejas”. A peça lembra que Lula sancionou a lei que garante personalidade jurídica às organizações religiosas em 2003, conhecida como lei da liberdade religiosa e instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus em 2009.  Em 2016, Dilma Rousseff sancionou a lei que criou o Dia Nacional do Evangélico. 

Imagem: divulgação PT

Lei da liberdade religiosa sancionada em 2003 pelo então presidente Lula

Imagem: reprodução do YouTube

Na primeira fila da cerimônia de sanção da lei da liberdade religiosa em 2003, dentre várias autoridades, destacamos o pastor e então senador, Magno Malta.

Imagem: reprodução do YouTube

Em 2022, agora em campanha para voltar ao Senado, Magno Malta publica ataques ao Partido dos Trabalhadores, relacionando seus líderes a uma suposta cristofobia. Na imagem publicada pelo agora candidato Magno Malta, ele utiliza a foto do ex-chefe de gabinete de Lula e ex-ministro de Dilma Rousseff, Gilberto Carvalho. Entre aspas, coloca uma frase jamais dita por Gilberto Carvalho.

Imagem: reprodução do Twitter

Na cerimônia que sancionou a lei de liberdade religiosa em 2003, o então presidente Lula declarou:

“Olá meus companheiros pastores. Durante muito tempo eu disse que Deus escreve certo por linhas tortas. Eu não sei se é coincidência ou não, mas essa é a última lei que eu sanciono este ano. Ah e eu não sei se coincidência ou não é exatamente uma lei que

torna livre a liberdade religiosa no país. Por quê que eu digo coincidência porque durante muitos e muitos anos eu encontrava com pastores pelo Brasil a fora que perguntavam para mim: Lula é verdade que se você ganhar as eleições, você vai fechar as igrejas evangélicas? E no primeiro ano do meu governo e a última lei do ano de 2003 é exatamente para dizer que aqueles que me difamaram,  agora vão ter que pedir desculpas não a mim, mas a Deus e a sua própria consciência. Eu dizia sempre que tem três coisas que demonstram que um país vive em democracia: uma é liberdade política, outra é liberdade religiosa e a liberdade sindical. Eu penso que nós estamos vivendo esses momentos de liberdade no Brasil.”

Porém,em tempos de pós-verdade, os fatos não importam. Como disse o então presidente Lula na cerimônia da lei de liberdade religiosa, na campanha de 2002 ele já era questionado a respeito do fechamento de igrejas, caso eleito. Vinte anos depois, as mesmas acusações são repaginadas em tempos de mídias digitais. Magno Malta estava na cerimônia que sancionou a lei de liberdade religiosa, um marco para as igrejas evangélicas do Brasil, e hoje, promove ataques e acusações aos mesmos que sancionar a lei. Um dos maiores porta-vozes das acusações infundadas contra o agora candidato Lula, é pastor deputado Marco Feliciano:

Imagens: reprodução do Twitter

 

Como enfrentar estas mentiras

A intolerância contra as expressões religiosas e culturais de indígenas e negros remonta à escravização e à exploração destes povos desde o período colonial. Séculos depois, e ainda sem a devida superação desta questão dramática, o artigo do antropólogo Marcelo Camurça, “Intolerância religiosa e a instrumentalização da religião pelo autoritarismo” chama atenção para uma “nova modalidade de intolerância que se coloca ao dispor da estratégia política de correntes de extrema direita para seus projetos de poder”. O artigo apresenta dois casos recentes de intolerância religiosa praticada por políticos. 

O presbiteriano e vereador do PTB de Belo Horizonte Ciro Pereira, que fez uma postagem em sua rede social onde dizia: “engana-se quem pensa que não existe uma guerra espiritual acontecendo. Lula busca as forças ocultas africanas, foi ungido e benzido por várias entidades”. E concluía dizendo: “ a guerra começou e eu luto pela minha família e pelo futuro de minha pátria”. 

Em seguida, a deputada estadual pelo Partido Social Cristão de Pernambuco Clarissa Tercio, da Assembleia de Deus, postou uma foto de Lula ladeado por suas ialorixás paramentadas com suas roupas religiosas, todos de máscara anti-covid, com a seguinte legenda: “Lula recebe benção de Zé Pelintra para vencer a eleição de 2022”, seguido de um comentário da vereadora: “Já o meu presidente Jair Messias Bolsonaro vai ao culto receber a benção do Deus todo poderoso”.

Marcelo Camurça encerra e afirma que: “uma ignominiosa e inaceitável “demonização” das religiões afro-brasileiras é estendida a Lula pela ameaça que sua candidatura significa para os planos continuístas de Bolsonaro; como se a agenda do ex-presidente com lideranças do Candomblé e Umbanda fosse prova já dada de que ambos estariam urdindo “feitiços” maléficos contra a nação”. 

As publicações e declarações de figuras políticas e religiosas que atacam as religiões de matriz africana, são o retrato de um país que está longe de respeitar os princípios da Constituição de 1988.

Um Estado laico é um Estado onde todos estão livres para praticar sua religião. Um credo não se sobrepõe a outra e nenhuma religião deve ser perseguida ou atacada.  Entretanto, o que se vê hoje é a utilização do discurso religioso com fins políticos e como arma eleitoral. 

Além disso, a suposta cristofobia alardeada por Feliciano e outros líderes, ou seja, a perseguição que cristãos, principalmente os evangélicos, poderiam sofrer num novo mandato do presidente Lula, não é verdade. Se fosse, os 14 anos de governo do PT (2003 a 2014) revelariam casos. Ao contrário, como Bereia verificou, já mostramos que declarações e atos de Lula enquanto presidente da República indicam o oposto. Bereia já publicou artigo explicando o falacioso termo “cristofobia” e várias matérias de verificação de conteúdo sobre este tema, todas falsas e enganosas. 

O deputado Marco Feliciano projeta suas próprias convicções políticas nos adversários, numa tática de inversão de posições. Ao pregar intolerância contra religiões de matriz africana e criticar posições de personagens e grupos progressistas, por exemplo, ele faz crer que os alvos do ataque são os intolerantes e perseguidores. Os fatos não importam. O objetivo é gerar pânico entre fiéis e disseminar o maior número de notícias falsas e alarmantes. 

Referências de checagem:

Valor Econômico. https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/08/09/michelle-bolsonaro-compartilha-vdeo-com-lula-que-associa-religio-de-matriz-africana-s-trevas.ghtml Acesso em 17 AGO 22

Portal UOL. https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/02/09/e-falso-tweet-de-lula-sobre-cortar-beneficios-de-igrejas.htm Acesso em 17 AGO 22

O Globo.

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/08/fake-news-sobre-fechamento-de-igrejas-em-caso-de-vitoria-da-esquerda-tem-respaldo-de-deputado.ghtml Acesso em 17 AGO 22

https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/post/2022/08/michelle-bolsonaro-leva-evangelicos-para-orar-de-madrugada-dentro-do-palacio-do-planalto.ghtml Acesso em 17 AGO 22

Folha de São Paulo.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2022/01/montagem-que-associa-lula-e-candomble-ao-demonio-leva-vereador-bolsonarista-a-ser-denunciado.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha Acesso em 17 AGO 22

Coletivo Bereia.

https://coletivobereia.com.br/pastor-felippe-valadao-promove-intolerancia-religiosa-em-evento-publico/ Acesso em 17 AGO 22

https://coletivobereia.com.br/volta-a-circular-mensagem-falsa-sobre-lei-do-senado-que-proibiria-pregacoes/ Acesso em 17 AGO 22 

https://coletivobereia.com.br/cristofobia-uma-estrategia-preocupante/ Acesso em 17 AGO 22

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=275831 Acesso em 17 AGO 22

O Estado de São Paulo. https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/dia-nacional-do-evangelho-foi-sancionado-por-dilma-nao-por-bolsonaro/ Acesso em 17 AGO 22

Youtube.

https://www.youtube.com/watch?v=DYAJ_kasEyA Acesso em 17 AGO 22

https://www.youtube.com/watch?v=8r1q3huGzio Acesso em 17 AGO 22

EBC. http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2003-12-22/lula-sanciona-lei-que-garante-personalidade-juridica-organizacoes-religiosas Acesso em 17 AGO 22

Religião e Poder.

https://religiaoepoder.org.br/artigo/racismo-religioso/  Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/projeto-de-lei-coloca-a-biblia-no-centro-do-debate-sobre-estado-laico/ Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/estado-laico/ Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/avancos-no-combate-a-intolerancia-religiosa-no-rio-de-janeiro/ Acesso em 17 AGO 22 

https://religiaoepoder.org.br/artigo/a-intolerancia-religiosa-como-forma-de-instr Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/liberdade-religiosa/ Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/para-alem-de-uma-estrategia-eleitoral-as-fake-news-na-pauta-dos-poderes-da-republica/ Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/serie-fake-news-parte-2-acoes-do-poder-legislativo-frente-o-fenomeno-das-fake-news/ Acesso em 17 AGO 22

https://religiaoepoder.org.br/artigo/serie-fake-news-parte-3-acoes-dos-poderes-judiciario-e-executivo-frente-o-fenomeno-das-fake-news/ Acesso em 17 AGO 22

Tribunal Superior Eleitoral. https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5134 Acesso em 17 AGO 22

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Foto de capa: Pete Linforth por Pixabay

Pastor Felippe Valadão promove intolerância religiosa em evento público

Circulou em várias mídias a notícia de que o pastor da Igreja Batista Lagoinha Felippe Valadão atacou religiões de matriz africana em um evento oficial promovido pela Prefeitura de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio, em 19 de maio passado. O prefeito da cidade é Marcelo Delaroli, filiado ao Partido Liberal (PL) e membro da 1ª Igreja Batista.

Imagem: reprodução do G1

O município comemora o aniversário de 189 anos de emancipação político-administrativa com uma série de shows,  na qual se apresentaram artistas gospel. Segundo os relatos, no intervalo de uma das apresentações , Felippe Valadão subiu ao palco e discursou: 

Queira o diabo ou não, você sabe o que fizeram aqui de ontem para hoje? O pessoal acordou aqui e de ontem para hoje tinham quatro despachos aqui na frente do palco!

Avisa aí pra esses endemoniados de Itaboraí, o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!! A igreja está na rua! a igreja está de pé!!!

E ainda digo mais: prepara para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade! Eu declaro, vem um tempo aí ó, Deus vai começar a salvar esses pais de santo que tem aqui na cidade.

Você vai ver coisas que você nunca viu na vida. Chegou o tempo Itaboraí! Aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou! Eu vou repetir: o tempo de bagunça e roubalheira nessa cidade acabou!

Repúdio e medidas legais 

No dia seguinte, a Comissão de Matrizes Afro-Brasileiras de Itaboraí (Comabi), publicou nota de repúdio ao discurso do pastor e exigiu retratação pública do prefeito, responsável pelo evento.

NOTA DE REPÚDIO

Ao Ilmo Sr. Prefeito de Itaboraí Marcelo Delarolli.

Itaboraí, 20 de maio de 2022.

A Comissão de Povos Tradicionais de Terreiros de Itaboraí, COMABI, vem por meio desta nota, repudiar as infelizes palavras do pastor Felippe Valadão na noite desta quinta-feira, dia 19 de maio de 2022, por ocasião da abertura das festividades em comemoração aos 189 anos do Município de Itaboraí.

Em sua fala, o pastor agride de maneira vil, desrespeitosa e ameaçadora a comunidade religiosa do Candomblé e da Umbanda desta cidade que tem sancionada a lei 2603/2016 que Institui o DIA MUNICIPAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTRA OS POVOS TRADICIONAIS DE MATRIZES AFRICANAS no dia 24 de Julho, que no então, não corrobora com o acontecido na Cidade no citado evento.

Queremos antes de tudo, questionar o motivo de uma manifestação festiva, popular e laica, ter em sua programação, discursos de cunho religioso, quando na verdade, se houve a intenção de manifestar alguma religiosidade, haveria de ter representantes de todas as matrizes, e não tão somente evangélicas por não representar a diversidade e a pluralidade dos cidadãos e cidadãs do município 

O Pastor começa chamando-nos de ‘ENDEMONIADOS’, e que o tempo da bagunça religiosa acabou na cidade.

Que se pode matar galinha, fazer o que quiser os terreiros serão fechados e os ‘Pais e Mães de santo’ serão salvos pelo ‘deus’ que ele professa. Sim, “deus” com letra minúscula, porque o Deus com maiúsculo que conhecemos não compactua com sua megalomania, loucura e arrogância.

Perguntamos; com qual autoridade, seja ela política ou religiosa esta insana figura foi outorgada, para desferir tamanhas agressões contra uma comunidade que vive a fazer o bem, cuidando das pessoas e contribuir com sua comunidade, onde muitas das vezes o poder público não a alcança.

Desta forma, exigimos urgente retratação pública do Sr. prefeito, organizador do evento, para que no poder de suas atribuições, venha a restaurar, a ordem, igualdade, laicidade e o respeito a todo o povo religioso de Itaboraí, aviltado por esta figura desequilibrada, que certamente irá responder nos autos por sua infração e crime de intolerância religiosa, como confere a legislação brasileira. O Brasil tem normas jurídicas que visam punir a intolerância religiosa.

No Brasil, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

Exigimos aqui que seja feito um T.A.C – Termo de Ajuste de condutas – ajustando no calendário festivo um espaço para a manifestação cultural dos povos de Terreiro que em sua jornada de “reXistência” foi duplamente atacado pelo citado ”líder” e pela instituição majoritária que deveria defender a constituição em seu capítulo 5°.

Certo de sua sensibilidade com tal fato assinamos.

COMABI.

Em 20 de maio de 2022.

O Estado do Rio de Janeiro tem observado diversos avanços no combate à intolerância religiosa, dentre eles a criação  da Comissão Parlamentar de Inquérito Contra a Intolerância Religiosa, criada em maio de 2021. O relator da CPI da Intolerância Religiosa, na Assembleia Legislativa do Rio, deputado Átila Nunes (PSD) preparou uma representação ao Ministério Público contra o pastor Felippe Valadão e contra o prefeito de Itaboraí e também apresentou denúncia pessoalmente à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI,  pela promoção ao ódio religioso em evento patrocinado com dinheiro público. 

Além destas representações legais, o deputado Átila Nunes afirmou que  “os terreiros de Itaboraí precisam de segurança”. Vou pedir ao governador para reforçar o policiamento na região, considerando as ameaças feitas pelo autointitulado pastor Felippe Valadão numa festa patrocinada pela prefeitura contra os religiosos da Umbanda e do Candomblé”.

Racismo religioso

A socióloga Carolina Rocha aponta, em artigo, que: “Intolerância religiosa marca uma situação em que uma pessoa não aceita a religião ou a crença de outro indivíduo. Sobre os princípios da laicidade na Constituição Federal de 1988, o seu Art. 5º, inciso VI, assegura liberdade de crença aos cidadãos: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’”. 

De acordo com a abordagem de Carolina Rocha, o caso de Itaboraí pode ser classificado ainda como racismo religioso. “O termo ‘racismo religioso’ tem sido caracterizado, no Brasil, por preconceito e/ou ato de violência contra adeptos das religiões de matrizes africanas, que são os principais alvos de violência religiosa no país. […] Quem defende o termo argumenta que, no caso das violências que atingem as religiões de origem africana no Brasil, o componente nuclear é o racismo. Nesse caso, parte-se do entendimento de que o objeto do racismo não é uma pessoa em particular, mas certa forma de existir. Um racismo que está, portanto, incidindo além do genótipo ou do fenótipo, mas na própria cultura (tradições de origem negro-africana). […] O que a maioria desses autores ressalta é que existe um amplo histórico de perseguição à cultura afro-brasileira no Brasil, do período colonial até os dias atuais”. 

Segundo o professor de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto e do Ibmec-BH Alexandre Bahia, ouvido pelo Bereia, o pastor Felippe Valadão pode ter praticado o crime de discriminação religiosa, de acordo com os dispositivos da Lei nº 7.716  – Art. 1º:  “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Ainda seria enquadrado no  “Art. 20: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, ao afirmar que os centros de Umbanda seriam fechados na cidade e chamando de “endemoniados” os praticantes de religiões de matriz africana.

Além disso, segundo o professor Bahia, o pastor parece atentar contra os princípios da laicidade estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 que assegura liberdade de crença aos cidadãos – “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alexandre Bahia acrescenta que a liberdade de crença  “é inviolável (…) sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 

O professor de Direito orienta que, ao relacionar o fechamento dos centros de Umbanda e a  chegada de um tempo em que “aquele espírito maligno de roubalheira na política acabou”, Felippe Valadão, aparentemente, tenta estabelecer uma ligação entre as religiões de matriz africana e uma suposta corrupção política. 

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Bereia classifica as notícias que afirmam que o pastor Felippe Valadão praticou intolerância religiosa em discurso durante show em Itaboraí (RJ) como verdadeiras. Os registros em vídeo da fala do pastor correspondem ao conteúdo reproduzido nas matérias que noticiaram o episódio e os especialistas consultados pelo Bereia confirmam que o tom do discurso de Valadão é marcado pelo que, social e juridicamente, é qualificado como intolerância e violência com motivação religiosa.

Referências de checagem:

G1. https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/20/pastor-felippe-valadao-ataca-religioes-afro-em-evento-oficial-de-itaborai.ghtml Acesso em: 23 MAI 2022

UOL. https://www.youtube.com/watch?v=MYG5eRk755k Acesso em: 23 MAI 2022

Instagram.

https://www.instagram.com/p/CdyVP_NgLjd/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://www.instagram.com/p/Cd584EzgwIi/ Acesso em: 23 MAI 2022

Religião e Poder.

https://religiaoepoder.org.br/artigo/racismo-religioso/ Acesso em: 23 MAI 2022

https://religiaoepoder.org.br/artigo/avancos-no-combate-a-intolerancia-religiosa-no-rio-de-janeiro/ Acesso em: 23 MAI 2022

BBC. https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm Acesso em: 23 MAI 2022

Governo Federal.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm  Acesso em: 23 MAI 2022

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm Acesso em: 23 MAI 2022O Dia https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2022/05/6405654-religiosos-denunciam-pastor-felippe-valadao-apos-incitacao-de-odio-contra-religioes-africanas-em-evento-de-itaborai.html Acesso em: 23 MAI 2022

Foto de capa: frame de vídeo do canal UOL no YouTube

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