O que é marxismo cultural e como o termo tem sido usado pelo extremismo de direita

Em outra matéria desta série, o Bereia explicou o termo “woke”, seu contexto de surgimento e como foi ressignificado pelo extremismo de direita, passando a ser usado como rótulo pejorativo.

Agora, voltamos a atenção para outra expressão que segue caminho semelhante: o chamado “marxismo cultural”. Assim como woke, o termo ganhou espaço no Brasil em discursos religiosos e políticos, apresentado como explicação rápida para mudanças sociais vistas como ameaças à família, à fé cristã e à moral.

Apesar de ser associado à tradição marxista ou à Escola de Frankfurt, o conceito não tem base acadêmica: trata-se de uma construção conspiratória surgida em ambientes conservadores do século XX. No Brasil, a expressão tornou-se recorrente em sermões pregados em igrejas, debates públicos e campanhas eleitorais, sendo usada para denunciar desde propostas educacionais até manifestações culturais.

Compreender as origens e o percurso desse termo é essencial para desfazer simplificações e mostrar como ele foi transformado em arma retórica, servindo mais ao extremismo político conservador do que ao esclarecimento dos debates públicos.

A origem do termo marxismo cultural

A expressão “marxismo cultural” não aparece em um texto sequer de Karl Marx ou em qualquer das correntes do pensamento marxista. O pensamento do filósofo alemão foi construído com a noção de que a transformação da sociedade viria da luta entre classes sociais e da apropriação dos meios de produção pelo proletariado. Em nenhum de seus textos há referência a um plano de “revolução cultural” ou de infiltração em instituições culturais. A teoria conspiratória do “marxismo cultural” deturpou a obra de Marx ao atribuir a ele e a seus seguidores uma estratégia jamais defendida por esta corrente de pensamento.

O uso atual desta noção remonta aos Estados Unidos dos anos 1990, quando o escritor Michael Minnicino publicou o artigo New Dark Age: Frankfurt School and ‘Political Correctness’ [A nova idade das trevas: a Escola de Frankfurt e o “politicamente correto”], na revista Fidelio, do Instituto Schiller, ligado ao movimento liderado pelo político estadunidense Lyndon LaRouche, conhecido por discursos conspiratórios. 

O texto acusava intelectuais da chamada Escola de Frankfurt (círculo de estudiosos na Alemanha dos anos 1930, criador da Teoria Crítica da Sociedade, que influenciou amplos estudos sociais, políticos e segue como referência até hoje) de serem responsáveis pelo “politicamente correto” e por mudanças culturais que estariam enfraquecendo os valores ocidentais. 

O termo “politicamente correto” apareceu nos Estados Unidos nos anos 1970, em movimentos de esquerda que buscavam evitar expressões e atitudes ofensivas, como linguagem racista ou sexista. Mais tarde, setores da direita passaram a usar a expressão de forma negativa, tratando-a como sinônimo de censura, ataque à liberdade de expressão e vitimismo.

Michael Minnicino escreveu: “Os homens da Escola de Frankfurt desenvolveram a ideia de que não se poderia mais confiar na classe trabalhadora para promover a revolução. A tarefa, então, era subverter a cultura em todos os seus aspectos — literatura, música, arte, filosofia — de modo a criar uma nova base para a transformação social.”

Apesar do tom de denúncia, não há registro comprobatório de que os professores Theodore Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse tenham proposto um projeto de “subversão cultural” como descrito por Minnicino. A afirmação é parte de uma narrativa conspiratória que depois se consolidou no termo marxismo cultural.

O texto de Minnicino não foi apenas apropriado por pessoas e grupos conservadores e pela extrema direita política, mas nasceu do ambiente criado por LaRouche, já marcado por visões conspiratórias. Anos mais tarde, Minnicino se afastou do grupo e renegou o artigo, afirmando que seu trabalho havia sido “irremediavelmente deformado” pela necessidade de sustentar a “visão de mundo lunática” de LaRouche. 

Ainda assim, a tese lançada naquele texto já havia se disseminado e acabou sendo incorporada por diferentes setores da direita, até chegar à nova direita e à extrema direita atuais. A ideia ganhou força nos EUA quando grupos da direita religiosa e política passaram a falar em “marxismo cultural” para condenar mudanças sociais como o feminismo, a ampliação dos direitos civis e as políticas de diversidade. 

Raízes antigas de uma “Guerra Cultural”

Segundo o cientista político Jérôme Jamin , a noção de “marxismo cultural” deve ser entendida como um mito político que se apoia em tradições conspiratórias mais antigas, como o “bolchevismo cultural” (como sinônimo de comunismo cultural) propagado pelo nazismo, na Alemanha dos anos 1920 e 1930, que criticava os movimentos modernistas nas artes. Líderes nazistas relacionavam a arte moderna ao marxismo revolucionário russo, classificando-a como uma forma de “arte degenerada”. 

Ao chegar ao poder, o regime nazista promoveu censura às obras modernistas e passou a exaltar a chamada “arte nacional”, com temas propagandísticos que apoiavam o governo de Adolf Hitler e exaltavam a supremacia racial ariana. Pesquisadores indicam que o conceito de bolchevismo cultural funcionava como justificativa para reprimir toda produção intelectual e artística que não se alinhava às diretrizes políticas do regime.

Desta maneira, essas teorias da conspiração de um plano contra a “civilização ocidental” reapareceram mais tarde em outras versões, como o marxismo cultural. Elas sempre servem como rótulo conspiratório para simplificar transformações sociais e atribuí-las a um plano deliberado de subversão. O artigo de Michael Minnicino, em 1992, é visto como o ponto de partida da versão contemporânea deste discurso.

Foi nos anos 2000 que autores conservadores nos Estados Unidos, como William S. Lind, passaram a incluir o nome do pensador marxista italiano Antonio Gramsci na noção. Estes autores tomaram de forma distorcida a noção de hegemonia cultural de Gramsci  como se fosse um plano deliberado de infiltração ideológica: 

“O que chamamos hoje de ‘politicamente correto’ é, de fato, o marxismo cultural: uma tradução de Marx da economia para a cultura, que busca derrubar a civilização ocidental a partir de dentro”, escreve Willian Lind. 

Entretanto, Gramsci desenvolveu o conceito de hegemonia cultural e destacou como as classes dominantes mantêm o poder não só pela economia e pela política, mas também por meio de instituições como a escola, a igreja e a imprensa.

Seu objetivo era compreender como a cultura reforça estruturas de poder. Na versão conspiratória, essa reflexão foi distorcida e apresentada como se fosse um plano secreto da esquerda para controlar a sociedade.

“Marxismo Cultural” no Brasil

No Brasil, a expressão “marxismo cultural” ganhou popularidade sobretudo a partir dos anos 2000, com a atuação do influenciador ultraconservador católico  Olavo de Carvalho. Na linha dos estadunidenses em livros, aulas e vídeos, Carvalho apontava a Escola de Frankfurt e o pensamento de Antonio Gramsci como responsáveis por uma suposta infiltração ideológica em universidades, nas artes e nos meios de comunicação. 

Para ele, esse “plano” visava corromper valores cristãos e dissolver a família tradicional. Essa leitura passou a estruturar a ideia de uma “guerra cultural”, que se tornou marca registrada da nova direita brasileira.

Imagem: Perfil no Twitter (X) @oproprioolavo 

Imagem: Página no Youtube @oproprioolavo

 

Imagem: Página no Youtube @oproprioolavo 

Sob a influência forte de Olavo de Carvalho, políticos ligados ao campo conservador e à extrema direita incorporaram o termo. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados repetiram diversas vezes a expressão “marxismo cultural” em entrevistas, discursos e postagens em redes sociais. Este grupo sempre associandou a ideia a temas como educação sexual, políticas de gênero, diversidade e direitos humanos. O termo também foi mobilizado em campanhas eleitorais como um “rótulo de alerta” contra adversários progressistas.

O discurso ganhou força adicional no campo religioso. Pastores, padres e lideranças católicas e evangélicas identificadas como conservadoras passaram a denunciar o “marxismo cultural” em sermões e artigos, descrevendo-o como ameaça à fé e à família. 

Imagem: Perfil no Twitter (X) @PastorMalafaia

Nas igrejas, a expressão é frequentemente associada a debates sobre educação escolar, costumes e moralidade, funcionando como explicação rápida para transformações sociais que incomodam setores conservadores.

Pesquisadores destacam que esse uso está alinhado ao que já se observava em outros países. Para o historiador João Cezar de Castro Rocha, o que se convencionou chamar de “bolsonarismo” se organizou em grande medida a partir dessa retórica de guerra cultural. O também historiador Flávio Casimiro identifica o termo como parte do arsenal ideológico da “nova direita” no Brasil Já a filósofa Marcia Tiburi classifica o “marxismo cultural” como um rótulo vazio, usado apenas para criar inimigos e justificar perseguições 

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O chamado “marxismo cultural” não é uma teoria científica, mas uma construção conspiratória que atravessou diferentes contextos históricos — do nazismo aos Estados Unidos dos anos 1990 — até ser importada e adaptada ao Brasil. Sua função não é explicar a realidade, mas construir um inimigo fácil de identificar, usado como arma retórica por políticos e líderes religiosos para mobilizar apoiadores. Mais do que esclarecer debates, o termo serve à polarização política e à difusão de desinformação.

Assim como aconteceu com woke — uma palavra nascida no movimento negro e esvaziada de seu sentido original ao ser apropriada como insulto pela extrema direita —, o chamado “marxismo cultural” também se transformou em arma retórica. Neste caso, não a partir de uma experiência social legítima, mas como uma teoria conspiratória criada em ambientes ultraconservadores. Hoje, os dois termos circulam lado a lado nos discursos políticos e religiosos, usados não para favorecer debates, mas para simplificá-los e até mesmo para impedi-los.

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Recomendação de leitura:

O fantasma do Marxismo Cultural
https://coletivobereia.com.br/o-fantasma-do-marxismo-cultural/

Comunismo e “ameaça comunista” vs. patriotismo é argumento que embasa temas com mais desinformação em espaços religiosos nas eleições
https://coletivobereia.com.br/comunismo-e-ameaca-comunista-vs-patriotismo-e-argumento-que-embasa-temas-com-mais-desinformacao-em-espacos-religiosos-nas-eleicoes/

Mentes e corações: estratégias das narrativas neoconservadoras no Brasil

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Eliane Brito

Quando observamos a construção das narrativas neoconservadoras – aquelas que respondem ao fenômeno atual, observado em democracias de vários países, caracterizado por uma ideologia conservadora, por alianças entre atores diversos (religiosos ou não), pela juridificação da moralidade e pela defesa do capitalismo mediante sua relação com o neoliberalismo – na América Latina, especialmente no Brasil, algumas características se destacam, tais como a utilização de emoções como ativo político, a atribuição de todas as mazelas sociais à desordem moral e a rápida assimilação das novas tecnologias de informação, assim como das novas formas de mensagem.

A utilização das emoções para determinado fim não é algo inédito, principalmente no meio político, e tem sido matéria de estudo desde a Grécia Antiga. Embora tenham sido objeto das reflexões de Platão, é o livro II da Retórica de Aristóteles, que ficou conhecido como A Retórica das Paixões, aquele que sistematizaria de modo mais completo as paixões (páthe), elencando as mais comuns e os pré-requisitos necessários para que um retor obtivesse sucesso. Segundo o filósofo grego, paixões são “todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos” (Aristóteles, 2000). Se consideramos que o objetivo final da Retórica é a persuasão, um bom retor será aquele capaz de encontrar ou suscitar em seu público as paixões disponíveis. Esse pré-requisito da disponibilidade é muito importante, pois “um auditório só irá sentir determinada paixão (afeição) se estiver aberto, de acordo com sua predisposição cognitiva, a sentir aquela emoção” (Figueiredo, 2019).

Pensando no contexto brasileiro, principalmente a partir de 2013, é possível afirmar que houve uma conjuntura favorável para que as ideias neoconservadoras fossem disseminadas e absorvidas. A crise pela qual passávamos não era apenas social, provocada pelo capitalismo neoliberal, mas também institucional. Com a espetacularização, pela mídia convencional, por meio da extensa cobertura da operação Lava Jato, a descrença com a política, com os “políticos profissionais” e com a própria democracia atingia o ápice. Além disso, a conquista de direitos por parte das minorias culminaria em uma reação por parte das classes altas, médias e também de milhões de desempregados que não se viam beneficiados por ações afirmativas e políticas voltadas aos direitos dos grupos minorizados. Por fim, mas não menos importante, a presença cada vez maior de atores religiosos na arena política representava um aumento das pautas morais, o que seria responsável pelo recrudescimento dos valores conservadores no espaço público.

É justamente como uma reação que o neoconservadorismo religioso se apresenta. Uma resposta a tudo aquilo que culpa pela desordem social.

Protesto pró-impeachment de DIlma Rousseff. Foto: Bruno Peres/Esp CB

Durante o Seminário (GREPO, 2021), duas falas evidenciaram quais atores políticos melhor perceberam as paixões disponíveis e como se utilizar delas. O sociólogo Juan Marco Vaggione destacou, como um dos fatores importantes para o crescimento do neoconservadorismo na América Latina, “a crescente e forte insatisfação com a política que, mesmo em alguns países, é insatisfação com a democracia” e que essa “construção de uma cidadania antipolítica foi facilmente cooptada pelos setores da direita, religiosa ou não”. A cientista política Flávia Biroli, por sua vez, ao tomar como parâmetro o Brasil, considerou “muito efetiva politicamente a mobilização de narrativas sobre uma certa correspondência entre ordem social e ordem moral desejável (…) em que se conectam temas que seriam muito apartados, não fosse o modo como a direita religiosa (…), situada numa relação com a extrema-direita no poder, conecta esses temas”. De sua fala também é possível recuperar a noção de “moralização das inseguranças”. Tal conceito, para ela, é “uma chave para o neoliberalismo como política”, pois

O apelo a inseguranças reais se faz no interior de um enquadramento no qual o suporte possível é o da família nuclear, heterossexual, responsável pelos seus (…) O problema, nas narrativas neoconservadoras, seria de ordem moral. Melhor dizendo, o desvio e a captura do tradicionalismo levariam à insegurança, à falta de referências, ao caos. (…) A família cristã seria o contraponto à corrupção moral – o que incluiria a moral sexual e a captura de bens públicos por políticos e empresários (Biroli; Machado; Vaggione, 2020).

Se a natureza do problema é moral, então, em nome de Deus, da Pátria e da Família, tudo é permitido para restaurar a ordem. A plataforma deixa de ser exclusivamente política e mais se assemelha a uma agenda de costumes. Portanto, a guerra é ideológica. Propõe-se, então, uma verdadeira cruzada contra fantasmas do passado (comunismo/marxismo cultural), contra ameaças vagas (ideologia de gênero), contra os direitos sociais e os direitos humanos; enfim, contra todos os inimigos que devem ser aniquilados. O discurso do bem contra o mal é expresso pela separação “nós” versus “eles”. Não à toa, temos o frequente uso da categoria “cidadão de bem” na retórica do neoconservadorismo. A não pertença a esse grupo define o “outro”, o adversário. A polarização é estimulada e não se governa para todos, e sim para aqueles que lhe são iguais, pois “(…) o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos” (Empoli, 2019).

Recorrendo novamente a Aristóteles, podemos dizer que, à disponibilidade do auditório, une-se à identificação com o orador. Antes mesmo de se eleger, em 2018, o candidato à presidência da extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, construiu uma figura anti-establishment, antissistema. Ainda que Bolsonaro fosse um político profissional, associou sua imagem à patente do exército, acionando no imaginário popular o saudosismo de um período próspero – que na verdade nunca existiu –, quando os militares estiveram no poder (1964-1980). Também rechaçou a velha política e se colocou “acima de qualquer suspeita”, por nunca ter se envolvido em nenhum episódio de corrupção. Quando se declarou contrário à “ditadura do politicamente correto”, desfilando inúmeras falas repletas de misoginia, homofobia, racismo e xenofobia, foi elogiado como alguém que “não tinha medo de dizer a verdade”. Quando levantou a bandeira contra a “ideologia de gênero”, apresentando-se como alguém a favor da família tradicional, acenou para os valores tradicionais cristãos. Assumiu, assim, a postura de “salvador da pátria”, de única pessoa capaz de livrar o Brasil da ameaça comunista. O “mito” foi construído sob os signos da austeridade, da honestidade e da moralidade. Seu maior feito, no entanto, foi passar a imagem de homem comum com o qual a maioria de seus eleitores se identificaram.

É preciso pontuar, também, que as redes sociais contribuíram de forma decisiva para a ascensão da extrema direita no Brasil. Se o que ficou conhecido por Jornadas de Junho, em 2013, foi a primeira demonstração do poder da internet, ao contribuir para a realização de manifestações apartidárias, não é erro afirmar que foram os atores neoconservadores que melhor souberam observar este fenômeno e posteriormente se aproveitar não apenas do alcance desta tecnologia, como também das novas formas de comunicação, tais como mensagens curtas, imagens e hashtags. O maior entendimento sobre as formas de mobilizar opiniões e criar engajamento também reforçou a imagem anteriormente criada de seu candidato à presidência – a de homem comum e mais acessível – ao parecer “mais próximo” de seus eleitores. O mais importante, porém, foi a rápida disseminação das mensagens com conteúdos falsos, errados ou duvidosos, que além de desinformar, conseguiram aumentar o clima de insegurança e acirrar ainda mais a polarização, por meio dos discursos de ódio; algo que o sociólogo Roberto Romano definiu como “a tecnologia a serviço da boçalidade” (Facchin; Machado, 2018). O uso de robôs e o disparo de mensagens em massa, seguindo o modelo norte-americano, tiveram um impacto inédito nas eleições de 2018.

A vitória do neoconservadorismo religioso no Brasil foi a da narrativa mais bem aceita, pois, a maioria das estratégias cumpriu as regras do jogo democrático. Uma política que flerta com o autoritarismo e com a violência angariou milhões de votos travestida de revolução, de mudança, quando, na verdade, representava uma série de retrocessos, a busca de refazer os abalos provocados à hierarquia tradicional.

Apelar às emoções perceptíveis na sociedade não é proibido, tampouco uma novidade. Se anteriormente o chamamento da esquerda foi à esperança, a extrema direita apostou nos ressentimentos e nas inseguranças, potencializando-os ao máximo e suscitando outras paixões igualmente poderosas como ativos políticos, tais como o medo e o ódio. Afinal, como já nos alertava o sociólogo espanhol Manuel Castells, “torturar corpos é menos eficaz do que moldar mentalidades” (Castells, 2013) e, como foi percebido pelo cientista político Henrique Costa, durante as primeiras análises da eleição de 2018, “[a] extrema direita, antes de ganhar o parlamento, ganhou corações e mentes e espalhou sua mensagem para todos os cantos do país” (Facchin; Machado, 2018).

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Eliane Brito é bacharel e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o Grupo de Pesquisa Gênero, Religião e Política – GREPO, sediado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Protesto pró-impeachment de DIlma Rousseff. Por: Bruno Peres/Esp CB

O fantasma do Marxismo Cultural*

Originalmente publicado na The Hedgehog Review, de Andrew Lynn, na edição de outono de 2018. Traduzido com permissão.

Um fantasma está assombrando a imaginação de muitos no Ocidente moderno – o fantasma do Marxismo Cultural.

Sua influência, para os que o temem (que envolve desde conservadores moderados até os ruidosos da extrema direita, conhecidos como “alt-right” nos EUA), é evidente em tudo, desde pronomes neutros quanto ao gênero, até treinamento para detectar micro agressões e, praticamente, todos os aspectos do que agora é chamado de políticas identitárias. Diz-se que o Marxismo Cultural foi criado na academia e que domina o corpo docente dos departamentos das Ciências Humanas e Sociais. Todos os anos legiões de seus prosélitos seriam lançados sobre a cultura mais ampla para espalhar essa doutrina corrosiva.

Uma pergunta a ser feita é: como Karl Marx, um filósofo do século XIX, leitor de Hegel, fundamenta o pensamento desses guerreiros da justiça social de hoje?

Para os opositores do Marxismo Cultural , a história poderia ser exprimida como se segue para dar uma resposta: Em meados do século XX, a doutrina do “Marxismo econômico” foi fatalmente desacreditada pelo fracasso dos regimes comunistas ao redor do mundo, estimulando a intelligentsia desiludida a buscar um novo e aprimorado Marxismo, que pudesse falar para o capitalismo de consumo pós-guerra.

Esses, então chamados “Marxistas culturais”, empreenderam o que o psicólogo-guru canadense Jordan Peterson chamou de “truque ilusionista” para conseguir a recuperação de suas mercadorias ideológicas, passando da economia para a cultura.

Pensadores que vão de Antônio Gramsci a Jacques Derrida estão envolvidos nesse esforço, mas no centro dessa história quase sempre se encontra a Escola de Frankfurt, um grupo de Marxistas do meio do século que fugiram da Alemanha e se refugiaram nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. A experiência deste grupo não era em Economia, mas em Filosofia, Teoria Social, Arte e Literatura. Consequentemente, seus membros reembalaram seu Marxismo para os assuntos que eles conheciam melhor. Eles também, frequentemente, se voltaram para as teorias de Freud, misturando a preocupação de Marx com a alienação com as ideias de repressão e sublimação de Freud.

Avançando para o presente

Segundo o jornalista e blogueiro conservador Andrew Sullivan, os marxistas culturais de hoje estão profundamente investidos em derrubar estruturas de poder do patriarcado e dos privilégios dos brancos. Eles o fazem, de acordo com esta versão da história, seguindo os pensadores da Escola de Frankfurt na transposição do conflito oprimido-opressor entre o proletariado e a burguesia para a dominação cultural, atribuindo status de oprimido a vários grupos identitários desprivilegiados.

O surgimento de uma cultura de vitimização segue, à medida que os grupos que reivindicam várias identidades articulam queixas contra grupos dominantes e as estruturas que atendem a seus interesses. A adjudicação racional da verdade torna-se então subordinada às exigências de subversão do poder, patriarcado e privilégio entre instituições sociais injustas, perpetuando a identificação contínua de conflitos dentro da ordem social estabelecida.

Existem muitos problemas com essa narrativa, é claro, e aqui está uma: essa visão de uma ordem social sempre em conflito é apenas vagamente “cultural” e pode ser construída inteiramente independente de qualquer coisa “Marxista”. Você pode encontrá-la em Maquiavel, Hobbes, Nietzsche e Ayn Rand, para citar apenas alguns. De fato, hoje os relatos mais populares da sociedade como grupos em conflito perpétuo por recursos – materiais, simbólicos ou políticos – são encontrados nos livros mais vendidos por psicólogos e biólogos evolucionistas ansiosos por aplicar suas ideias disciplinares a questões muito fora de seu campo. É mais a difusão de Darwin – não Derrida – que está na base dos relatos populares de conflitos que envolvem moralidade e cultura nos dias de hoje.

No entanto, o século XX viu várias escolas de pensamento marxistas passarem da economia e da política para preocupações culturais depois que o comunismo deixou de produzir utopias proletárias e ditadores stalinistas. A “cultura” realmente chegou ao radar marxista, mas funcionou de uma maneira muito particular: não para identificar antagonismos entre grupos sociais, mas para explicar melhor a falta de antagonismo observada nas sociedades.

Por que a classe trabalhadora não estava enfrentando os cúmplices de sua opressão? Talvez, como observou o crítico literário Richard Hoggart em seu livro de 1957 “The Uses of Literacy”, essa subjugação fosse um produto de uma cultura de consumo de massa recém-emergida.

A cultura não é um novo local de batalha; é mais um ópio salva-vidas que mantém os feridos de guerra permanentemente à margem.

Hoggart pertencia a um grupo dissidente Marxista do meio do século chamado Nova Esquerda Britânica, um movimento que também reivindicava figuras importantes de estudos culturais como Raymond Williams, Stuart Hall, E.P. Thompson durante algum tempo, os filósofos Alasdair MacIntyre e Charles Taylor. Como relata o historiador cultural Dennis Dworkin em seu livro “Cultural Marxism in Postwar Britain”, esses estudiosos se inspiraram em uma variedade de fontes intelectuais – incluindo o pensamento mais conservador de T.S. Eliot e F.R. Leavis – para aplicar métodos críticos às dimensões não-políticas da vida comum.

Para todos esses pensadores, a cultura era a arena na qual as potencialidades humanísticas inscritas nos primeiros escritos de Marx deveria se manifestar. Mas todos eles acreditavam que a cultura contemporânea frustrava a agência e a criatividade que Marx via como essenciais à liberdade humana.

Há boas razões pelas quais a versão do Marxismo cultural da Nova Esquerda Britânica não se parecesse em nada com o Marxismo cultural deplorado por Jordan Peterson e Andrew Sullivan. A moderna narrativa conservadora remonta a uma “Carta aos Conservadores” de 1997, escrita pelo cofundador da “Heritage Foundation” Paul Weyrich. Weyrich foi o primeiro a denunciar o Marxismo cultural por inventar a “ideologia do politicamente correto”, que ele traçou até a Escola de Frankfurt e descreveu como “alienígena”, “amargamente hostil” e “inimiga de nossa cultura tradicional”. Weyrich e seus colegas da “Free Congress Foundation” – incluindo William Lind, historiador e colunista prolífico – raramente discutiam como o judaísmo da Escola de Frankfurt se relacionava com a ideologia de seus membros, mas as dicas foram captadas e exploradas por pessoas com agendas mais radicais.

Grupos de extrema direita, inspirados em Weyrich, produziram vários documentários – que hoje acumulam milhões de visualizações no YouTube – afirmando a existência de uma trama do início do século XX da Escola de Frankfurt para subverter a cultura americana por meio da promoção do multiculturalismo, de grupos identitários belicosos e do politicamente correto. Ainda é possível encontrar sites mal formatados dessa época, exibindo diagramas elaborados que traçam a nefasta infiltração cultural da Escola de Frankfurt, com um site alegando expor o papel direto do cientista social e musicólogo Theodor Adorno na composição de grande parte da discografia dos Beatles.

O endosso de tais vozes periféricas não impediu os paleoconservadores como Pat Buchanan e Paul Gottfried de promover a narrativa vagamente conspiratória em círculos conservadores mais estabelecidos no início dos anos 2000. Ao mesmo tempo, grupos nacionalistas brancos e “alt-right” começaram a se apegar à narrativa. O terrorista norueguês Anders Behring Breivik, que matou setenta e sete pessoas em dois ataques na Noruega em 2011, citou e plagiou a redação da “Free Congress Foundation” em seu manifesto de 1.500 páginas, culpando os pensadores da Escola de Frankfurt por desenvolver um “Marxismo Cultural” que justifica um contemporâneo “genocídio branco”.

Breivik também citou Richard Spencer, ativista do nacionalismo branco parcialmente responsável pela manifestação de 2017 “Unite the Right” em Charlottesville, cuja história abertamente antissemita de infiltração cultural veio moldar o movimento “alt-right” americano. A descoberta de 2017 de um memorando de advertência de uma conspiração Marxista Ccultural – um esforço coordenado de globalistas, banqueiros, islâmicos, figuras do Black Lives Matter e republicanos do establishment que planejavam derrubar o presidente Donald Trump – resultou na demissão do autor do documento, Rich Higgins, da equipe do Conselho de Segurança Nacional de Trump.

Mas, além de sua associação inabalável com pensadores marginais, a narrativa do Marxismo Cultural tem outra falha: uma compreensão fundamentalmente defeituosa da esquerda. Quase todos os observadores do desenvolvimento da esquerda durante o século XX veem discordâncias e descontinuidades substanciais. Mas a narrativa do Marxismo Cultural, ao reproduzir as convenções do pensamento conspiratório, afirma uma profunda consistência oculta sob a aparente heterogeneidade: a política identitária pós-modernista é Marxismo. Essa distorção procrusteana obscurece as variedades do passado e do presente da política e do pensamento progressistas.

O próprio Marx teve pouco ou nenhum interesse nos precursores ideológicos daqueles movimentos que envolvem muitos conservadores contemporâneos – multiculturalismo, feminismo, política identitária – e teria descartado muitas dessas preocupações como desvios “superestruturais” das realidades da luta de classes. Marx é um pobre pós-modernista; de fato, sua metanarrativa restritiva da luta de classes é aquela que muitos pós-modernistas jogaram no lixo das ideologias mortas na década de 1970.

Os próprios líderes da Escola de Frankfurt brigavam abertamente com os guerreiros da justiça social de seus dias, encontrando-se entre as vítimas dos protestos e interrupções nas salas de aula dos anos de 1960. O elitismo europeu deles não se dava bem com o multiculturalismo caloroso e abrangente.

“Acordei” eles não estavam.

Também são subestimadas as rupturas mais recentes na esquerda. Nos círculos acadêmicos, estes são melhor representados pelo confronto duradouro entre os remanescentes do Marxismo ocidental e as novas vozes da esquerda do pós-estruturalismo, pós-colonialismo, feminismo e “pós-Marxismo”. Essas facções raramente jogam bem juntas. De fato, os Marxistas incondicionais são responsáveis por alguns dos enfrentamentos mais sofisticado das várias perspectivas agrupadas sob a rubrica de “Marxismo Cultural”. Perry Anderson, Alex Callinicos, Nancy Fraser e Terry Eagleton produziram críticas mordazes ao beco sem saída político do pós-modernismo. Nos últimos anos, surtos de natureza ainda mais internacional revelaram tensões subjacentes a finos valores esquerdistas: feminismo radical versus direitos dos transgêneros; disputas entre movimentos de defesa de direitos como ACLU e  Black Lives Matter;  divergência entre autores como no caso de Ta-Nehisi Coates e Cornel West; ou quando apoiadores de Bernie Sander (os “Bernie Bros”) se colocaram em oposição ao comitê nacional do seu partido, os Democratas. Se existe uma conspiração, não está indo muito bem.

A cultura – como Marx, Gramsci e a Nova Esquerda britânica viram – não é politicamente neutra. Tampouco são apenas valores subjetivos, gostos ou ideias da vida privada dos indivíduos. Em vez disso, é o próprio palco público no qual os interesses políticos e ideológicos frequentemente reivindicam legitimidade. Essa é exatamente a função da cultura que está energizando aqueles da direita que afirmam ver e desmascarar a perigosa agenda “marxista” que se esconde por trás de toda crítica e ativismo cultural de esquerda.

Essa “hermenêutica da suspeita”, por muito tempo apenas uma marca de seminários desconstrutivistas nas faculdades, parece agora ter encontrado um novo lar nas telas de TV e celulares que passaram a exibir discursos nacionalistas e a bandeira do país como peça de decoração. Talvez os verdadeiros marxistas culturais tenham se escondido à vista de todos o tempo todo.

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Andrew Lynn é sociólogo, doutorando em sociologia na Universidade da Virgínia

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