Liberdade de expressão à brasileira: desinformação de gênero e a ofensiva às mulheres
Um novo ano começou e a tônica da famosa “liberdade de expressão” voltou a ser suscitada em virtude do resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos.
Entre as várias novidades do atual governo daquele país, entraram em vigor algumas revogações de medidas e a criação de novos decretos. Entre estas práticas, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva para “restaurar a liberdade de expressão”. Conforme o noticiário, o documento afirma que o governo anterior havia violado os direitos de expressão dos cidadãos estadunidenses sob o pretexto de combater desinformação e informação enganosa.
Antes mesmo da posse de Trump, o proprietário da Meta – empresa que controla as plataformas digitais Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads – Mark Zuckerberg anunciou mudanças que incluem o fim das ferramentas de checagem de fatos nas plataformas, inicialmente nos Estados Unidos.
Zuckerberg divulgou que a medida será substituída por uma funcionalidade chamada “notas da comunidade”, aberta aos usuários (prática que já existe na rede X). Segundo ele, os profissionais que atuavam na moderação de conteúdo, até então, eram muito tendenciosos politicamente.
No Brasil, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) comemorou as mudanças da Meta em publicação em seu perfil no X, o que atribuiu aos efeitos da eleição de Trump. Em 2023, Ferreira subiu à tribuna da Câmara dos Deputados no Dia Internacional da Mulher e proferiu, além de desinformação, um discurso misógino, ilustrado por uma ridícula peruca loura que usou na tribuna, pautado em crenças religiosas limitadas à sua perspectiva pessoal, que desqualificava e demonizava as pautas por justiça de gênero.
Este episódio não foi um caso isolado. Publicações de políticos e lideranças religiosas que disseminam falsidades relacionadas a situações que envolvem temas referentes a gênero são frequentemente observadas.
Desinformação de gênero: Alguns exemplos
Em 2016, acompanhamos o impeachment da presidente Dilma Rousseff, alvo de um levante que culminou na sua retirada do governo. Tal evento mostrou que há incômodo quando uma mulher governa, fala, se coloca e decide, principalmente quando há muitos interesses envolvidos, que tangenciam os privilégios de muitos.
No mesmo ano, a revista Carta Capital publicou matéria em crítica à reportagem da revista ‘IstoÉ’, que, com postura sexista, coroou o momento em que a misoginia mostrava-se (e permanece) como a regra para atacar as mulheres na política. Os termos usados para descrever a presidente variavam de “perda de condições emocionais” a “irascível”. Em contrapartida, Marcela Temer, a esposa do então vice-presidente Michel Temer, acumulava elogios como “bela, recatada e do lar”. Como disseram alguns, “só ela já servia como justificativa para a saída de Dilma do governo”.
Durante a campanha eleitoral de 2018, Manuela D’Ávila (PCdoB) – que compunha, como vice, a chapa de Fernando Haddad (PT) à Presidência da República, – foi alvo de ataques misóginos que favoreceram a eleição de Jair Bolsonaro (então do PFL). A candidata foi falsamente associada ao ataque a faca sofrido por Bolsonaro em Juiz de Fora (MG), durante a campanha eleitoral; foi vítima de manterrupting – interrupção desnecessária da fala de uma mulher – em entrevista à TV Cultura; e foi alvo de desinformação relacionada a temas morais (classificada “abortista”) e religiosos (denunciada como anticristãos).
A ministra Marina Silva (Rede), antigo alvo de ataques contra sua condição física e sua inteligência, e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) continuam sofrendo ataques, vítimas dos discursos de ódio e desinformação de gênero ao longo de suas carreiras políticas.
Em 2023, a bola da vez foi a senadora evangélica Eliziane Gama (PSD-MA), que, à época, exercia a função de relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre os ataques a Brasília em 8 de janeiro. Em reportagem, a agência Lupa relatou que a senadora foi insistentemente chamada, por colegas do parlamento e seus apoiadores, de ‘burra’ e ‘analfabeta’, como forma de descredibilizar sua competência e logo, o lugar que ocupa.
Já em dezembro passado, o deputado Nikolas Ferreira, já mencionado neste artigo, publicou em seu perfil no Instagram um vídeo para diminuir e ridicularizar a esposa do presidente da República Rosângela (Janja) Lula da Silva.
Estes são exemplos de como ataques misóginos – discursos de ódio contra mulheres – e desinformação de gênero são muitas vezes utilizados e tolerados como estratégias políticas contra a oposição e justificados como liberdade de expressão.
No entanto, estas práticas vão na contramão da Lei nº 14.192, que trata da violência política de gênero, aprovada no Congresso Nacional, em 2021. A lei busca
“prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; e altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais”.
Um levantamento sobre discurso de ódio contra mulheres nas redes digitais
A pesquisa MonitorA 2024 analisou comentários feitos em transmissões de debates no YouTube durante o período das últimas eleições municipais no Brasil. Os dados indicam que 56,8% dos comentários potencialmente ofensivos são direcionados a mulheres candidatas, e 23% aos candidatos homens. Entre os comentários confirmados como ofensivos, 68,2% se dirigem a mulheres, e 31,7% a homens.
O levantamento MonitorA 2022 já havia apresentado análise sobre ataques contra as esposas dos então candidatos, Rosângela Lula da Silva e Michelle Bolsonaro. Os dados coletados pelo estudo indicaram que o debate religioso que permeou as candidaturas de Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro foi o pano de fundo dos ataques hostis às mulheres.
“Os ataques e insultos direcionados a Janja e Michelle nas redes sociais foram marcados pela misoginia, pela religião, por narrativas que disputavam noções de moralidade e pela intolerância religiosa”, diz o relatório.
No caso de Michelle Bolsonaro, o levantamento indicou que, após circular um vídeo de seu marido Jair Bolsonaro em uma loja maçônica, a então primeira-dama da República foi alvo de comentários no Instagram com expressões como “herege maldita” e “demônio puro”.
O relatório apontou que as ofensas direcionadas a Rosângela Lula somaram 799 comentários, número significativamente superior aos 273 recebidos por Michelle Bolsonaro. Segundo o estudo, após o primeiro turno, as ofensas religiosas contra a atual primeira-dama aumentaram oito vezes. Os comentários dirigidos a Janja continham insultos como “falsa cristã”, “macumbeira” e “satanista”.
O cenário atual parece confirmar que estamos caminhando para um lado ainda mais obscuro no que diz respeito à integridade das mulheres parlamentares nos espaços digitais. Não é segredo que os esforços para coibir os ataques nunca foram dos mais elaborados, e os resultados nada animadores.
O caso da vereadora Marielle Franco é emblemático para a reflexão e discussão sobre desinformação de gênero. Mesmo passados anos do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro (em 2018), as mentiras continuaram a fazer parte do arsenal de investidas. Insultos à sua vida pessoal foram uma das táticas mais usadas para atacar e desqualificar a atuação da parlamentar. As ofensas a ela são permeadas de discurso de ódio e contra os direitos humanos, pauta que Marielle Franco defendia.
A desinformação contra a vereadora segue a trilha da depreciação, associando-a ao crime organizado e de ser “defensora de bandidos”.
Um caso recente (janeiro de 2025), é o da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que sofreu ameaças de morte nas redes sociais em retaliação por ter desmentido notícias falsas sobre a taxação do PIX pelo governo Lula, disseminadas por colegas parlamentares, sendo o mais destacado Nikolas Ferreira . Os ataques à deputada, além da ameaça de morte, se concentraram em sua sexualidade com ofensas transfóbicas de perfis ligados à extrema direita.
A desinformação de gênero reúne componentes graves de violência. Alguns deles são a violência verbal, a misoginia, o discurso de ódio, a repressão, o assédio entre outros. Como mencionado, não estamos destacando algo novo, o objetivo é lançar luz a mais uma forma de ataque.
Se até o momento a violência política de gênero já era um fato que demandava respostas e esforços, o espaço digital passou a servir como amplificador desse tipo de violência. A situação atual agrava o problema, pois com a desobrigação autodefinida pelas empresas das plataformas digitais de checarem conteúdos, as chances de se rastrear e punir os ataques e seus respectivos agressores serão muito reduzidas.
Diante dos fatos, será possível imaginar a dimensão do impacto das medidas adotadas por Trump e Zuckerberg não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo, e principalmente no Brasil? É um enorme desafio para pessoas e grupos comprometidos com a justiça do conteúdo que circula em espaços de comunicação digital e com a dignidade do que se chama informação.
Referências
CNN
https://edition.cnn.com/2025/01/22/media/trump-censorship-executive-order-disinformation/index.html
Coletivo Bereia
Jornal Opção
Veja
https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar
https://veja.abril.com.br/politica/tse-manda-facebook-derrubar-33-fake-news-sobre-manuela-davila
Estadão
Revista Marie Claire
G1
Aos Fatos
https://www.aosfatos.org/noticias/dilma-assalto-ditadura-banco-dos-brics
Presidência – Legislação
https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=14192&ano=2021&ato=e5dkXVq5UMZpWT04e
InternetLab
Monitora
BBC
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56367394
Congresso em Foco
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