Somos feitos de sombra
Por mais desconfortável que pareça, a alma humana não é somente um espaço de luz. Ao contrário, tateia em sua própria sombra em seu caminho para o que poderia chamar de luz.
O conceito de Sombra é apresentado por Jung em sua Psicologia Analítica e trata dos conteúdos afetivos e cognitivos que compõem a personalidade, mas que foram transferidos de alguma forma para o Inconsciente por serem considerados pelo Ego como inaceitáveis e impróprios. Em outras palavras, é aquilo que temos na alma, mas que por não gostar, reprimimos ou recalcamos.
Todos somos formados de luz e sombra. Entretanto, não vemos – ou não queremos ver – a própria Sombra, preferindo a luz que acreditamos ter e ser.
Deepak Chopra, médico indiano radicado nos Estados Unidos, alerta que “Se você não pode enxergar a própria sombra, precisa procurá-la. A sombra se esconde na vergonha, nos becos escuros, nas passagens secretas e nos sótãos fantasmagóricos de sua consciência. Ter um lado sombrio não é possuir uma falha, mas ser completo.”
Paulo de Tarso avançou em profundidade na compreensão da própria Sombra. Em sua epístola aos Romanos ele apresenta sua obscura realidade interior ao dizer que “Eu não entendo o que faço, pois não faço o que gostaria de fazer. Pelo contrário, faço justamente aquilo que odeio. […] Pois eu sei que aquilo que é bom não vive em mim, isto é, na minha natureza humana. Porque, mesmo tendo dentro de mim a vontade de fazer o bem, eu não consigo fazê-lo. Pois não faço o bem que quero, mas justamente o mal que não quero fazer é que eu faço. […] Assim eu sei que o que acontece comigo é isto: quando quero fazer o que é bom, só consigo fazer o que é mau. Dentro de mim eu sei que gosto da lei de Deus. Mas vejo uma lei diferente agindo naquilo que faço, uma lei que luta contra aquela que a minha mente aprova. […] Como sou infeliz! Quem me livrará deste corpo que me leva para a morte? (Bíblia na Linguagem de Hoje – Epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 7, versículos de 15 a 24).
Mas seria a Sombra um mal em si? A resposta é não, se levarmos em conta que somos formados de dualidades e entre elas estão a sombra e luz. Na verdade, citando novamente o médico indiano, “O conflito entre quem somos e quem queremos ser encontra-se no âmago da luta humana. A dualidade, na verdade, está no centro da experiência humana. A vida e a morte, o bem e o mal, a esperança e a resignação coexistem em todas as pessoas e manifestam sua força em todas as facetas da vida.”
O mesmo Chopra nos diz que “Ter um lado sombrio não é possuir uma falha, mas ser completo.” Também não podemos pensar na Sombra como algo exclusivamente ruim, pois nada na vida e em nós é plenamente correto ou totalmente errado.
Para a psicoterapeuta analítica e escritora alemã Marie-Louise von Franz, “podemos dizer que a Sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa, mas que ela desconhece” e não podemos pensar que tudo o que há em nós e que não conhecemos seja do mal.
Essa reflexão serve para, ao menos, TRÊS coisas. Primeiramente nos fazer descer do pedestal da arrogância, enxergando que não somos melhor que ninguém. Tem uma frase atribuída a Freud de que “visto de perto, ninguém é normal” e Paulo de Tarso disse que “Se alguém julga estar em pé, cuide para que não caia.” (1ª Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 10, versículo 12).
Em segundo lugar, saber isso ajuda a nos vermos como um ser humano igual aos demais, nos compreendendo, nos aceitando e nos perdoando. Esse conhecimento nos abre um caminho de diálogo com a própria Sombra, visto que ela – assim como a sombra física – é uma projeção da Luz que trazemos em nosso interior.
Por último, pararmos de projetar nos outros a Sombra que é nossa, lembrando que comumente detestamos no outro aquilo que está em nós e que insistimos em não ver. Como disse Jung, “O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”.
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Artigo apresentado voluntariamente pelo autor para publicação. Aprovado pela coordenação editorial em 15 de abril de 2021.
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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução