Cultos online e as fissuras do fundamentalismo religioso no Brasil – Parte II

Por Delana Corazza, Angelica Tostes e Marco Fernandes¹

Conteúdo originalmente publicado no site www.thetricontinental.org

Confira a segunda parte do estudo “Cultos online e as fissuras do fundamentalismo religioso no Brasil”. Para ler a primeira parte, basta clicar aqui.

Espiritualidade digital: espiritosanto.com

Apesar de alguns aspectos positivos dessa nova experiência, diversos limites se colocam em evidência. No boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus, as pesquisadoras Carolina Parreiras e Renata Mourão Macedo trazem dados sobre as desigualdades digitais em meio à pandemia, com a desigualdade social sendo refletida na desigualdade digital. O acesso à tecnologia ainda é restrito no país. Segundo o levantamento das pesquisadoras, os dados do TIC Domicílios auxiliam a mapear o uso das tecnologias:

“No levantamento de 2018, 93% dos domicílios declararam possuir telefone celular, 27% computador portátil, 19% computador de mesa e apenas 14% possuíam tablet. Em relação à presença de internet nas residências, 67% possuíam algum tipo de acesso, sendo que 62% por banda larga fixa, 39% por cabo ou fibra ótica e 27% por conexão móvel 3G ou 4G. Em relação aos motivos apontados para a inexistência de conexão, chamam a atenção o fator financeiro (“porque os moradores acham muito caro”) – 61% – e a inabilidade para uso da internet (“porque os moradores não sabem usar a internet”) – declarado por 45% dos participantes da pesquisa”

(PARREIRAS; MACEDO, 2020, p. 1).

Muitas igrejas estão nesses espaços de periferia em que o acesso digital é limitado. A igreja como comunidade constrói corporeidades, símbolos e transcendências, além de organizar os cotidianos e criar laços sociais. O pastor Rosivaldo P. de Almeida pensa que para “para os evangélicos, sobretudo os pentecostais, a igreja acaba sendo a única unidade cultural, de socialização, integração, de produção de sentido, inclusive para própria existência.”

Neste cenário, pastores e lideranças das igrejas nas periferias têm buscado diminuir essa distância com mensagens diárias aos fiéis mandadas via WhatsApp e por ligações telefônicas, principalmente à população mais idosa, que além de ser grupo de risco e temer ainda mais as consequências do vírus, tem certa dificuldade para acionar as tecnologias atuais. A pastora Eliad Santos, da Igreja Metodista da Luz, em São Paulo, observa que “ser pastora em tempos de pandemia é complicado porque eu estou atendendo as pessoas via WhatsApp e telefone. As pessoas esperam que você esteja por lá. Tem um caso de uma vizinha com covid-19 e eu não posso visitar. As pessoas sentem falta de ir à igreja, costumes antigos de muitas irmãs da igreja. Problemas novos, novos tempos e adaptar. Semana que vem farei a celebração da ceia via online, não tem necessidade de colocar em risco os fiéis. Tem que se adaptar.” O pastor André Guimarães tem trabalhado com essa metodologia, realizando ligações e chamadas de vídeo com sua pequena comunidade, composta por cerca de 30 pessoas, que por mais que não garantam os abraços e encontros que os fiéis sentem falta, pode-se ao menos olhar, escutar, trocar.

Outra dificuldade encontrada nesse acolhimento dos fiéis no trabalho pastoral é em relação às mulheres em situação de violência doméstica. Segundo a CNN, pela Lei de Acesso à Informação, o número de atendimento da Polícia Militar (PM) referente à violência doméstica subiu 44,6% no mês de março em São Paulo. No Rio de Janeiro, ainda no início do isolamento, os dados apontados pela Justiça foram de um aumento de 50%. A pastora Odja pontua essa preocupação em tempos de pandemia: “Como mulher e pastora, tenho me preocupado de forma especial com o aumento da violência contra as mulheres, uma vez que há a campanha do “fique em casa”, só que a casa não tem sido um lugar seguro para as mulheres, crianças e meninas. Imagine o que é um confinamento com um companheiro violento, com a contenção dessa violência dentro de casa.”. Essas preocupações aumentam quando se somam a outras pesquisas, como a do Datafolha de janeiro de 2020, que aponta o rosto da população evangélica como um rosto de uma mulher negra; à pesquisa da Valéria Vilhena, que demonstra que 40% das mulheres vítimas de violência da Casa de Acolhimento Sofia em São Paulo são evangélicas (2011). Em uma fala mergulhada de angústia e preocupação, a pastora Eliad Santos diz:

“Eu penso na Maria que mora em frente à Igreja e é usuária de crack. (…) Eu penso nessa mulher que está desesperada com medo dos filhos e das filhas pegarem a doença e morrerem, porque ela tem que sair de casa ou porque são muitas pessoas morando na mesma casa pequena. Essa mulher que está buscando em Deus a proteção e força para continuar em tempo de pandemia. São essas mulheres que tem que limpar o hospital, o supermercado, a farmácia. É muito triste. Eu fico bem chateada pensando nisso, como elas estão vivendo? Não tem o mesmo privilégio que eu que posso trabalhar em casa, no computador e celular. Eu só peço a Deus que elas consigam sobreviver. Porque sempre quando eu ligo o jornal e aparece os hospitais da periferia eu só vejo os corpos negros. (…) Nas grandes desgraças, grandes epidemias e nos grandes problemas, é o povo pobre e preto que sofre.”

Questões psicossociais da pandemia e o culto online

O cuidado das igrejas e o sentido de comunidade, muitas vezes, abarcam também as questões econômicas. Muitos “irmãos” conseguiram seus empregos por indicação de um pastor ou frequentador da Igreja, assim como diversos tipos de auxílios. Com a pandemia em curso, a classe trabalhadora mais empobrecida deve sentir de forma profunda como a crise econômica e o distanciamento pode afetar as possibilidades de intermediação da Igreja e seus membros para a conquista de um trabalho. Diversas igrejas, mesmo com todas as dificuldades econômicas que enfrentam, têm se mobilizado para doações e ajudas pontuais para os fiéis que necessitam e para a população mais vulnerável das periferias, contribuindo assim para a manutenção do necessário isolamento.

Para além dessas doações, outras ações estão sendo pensadas para auxiliar economicamente as famílias, conforme nos trouxe Jackson Augusto, militante do movimento negro evangélico e frequentador da Igreja Batista Imperial em Recife: “Estamos planejando, no território que a igreja atua, criar uma plataforma para divulgar pequenos comércios e serviços pela internet. Divulgar pessoas que costuram, eletricistas, boleiras, que embora não possa ser presencial, que funcione de outras formas como encomenda, auxílios”.

Esse esforço de dar conta de todas as manifestações da ausência das igrejas tem sido tarefa constante das lideranças de diversas denominações. Para Alana Barros, cientista social, militante, evangélica e filha de pastores, os cultos online têm buscado diminuir as faltas das práticas comunitárias. Ela relata que no começo da quarentena, alguns fiéis duvidaram da necessidade de proibição dos cultos presenciais, questionando se, de fato, havia essa necessidade e afirma que é muito importante a legitimidade dos pastores na comunidade religiosa e das explicações formuladas para garantir a segurança e o respeito pelas decisões tomadas. A jovem aponta, como alguns pastores já mencionaram, o desafio de construir novas formas de cultos com uma nova tecnologia que não estão acostumados, reformulando a linguagem. No entanto, o dia a dia da comunidade é o mais difícil nesse momento, já que “temos muito a prática do cuidado e o fato de sabermos que tem pessoas doentes, que tem idosos sozinhos e que você não pode simplesmente fazer uma visita ou marcar um encontro na comunidade para que a gente se veja; é bem difícil, é muito difícil lidar com esse momento de ausência do corpo físico, do corpo presente, mantendo só a relação virtual”, relata Alana.

Para os fiéis a experiência é diversa, desde o momento e o tempo de se preparar para o culto até a possibilidade de “visitar” diversas novas igrejas virtualmente, as mudanças são reais, concretas e alteraram a forma de viverem a experiência religiosa tão presente em suas vidas cotidianas. O pastor Fellipe dos Anjos destaca que “todos falam que sentem falta do ajuntamento. Uma espécie de melancolia do encontro (…) Eu sinto que a pandemia colocou em questão o corpo. É o corpo, o encontro, a forma que o encontro é capaz de manejar as subjetividades. As pessoas têm a vida meio ritualizada e em uma crise como essa, elas descobrem que tem um corpo que precisa de um outro corpo, de um abraço. Que tem fome de coisas relacionais, que movem o desejo”. Mesmo com essa ausência, fiéis têm experienciado novas vivências com a espiritualidade digital. Em casa, as pessoas se arrumam, organizam seus espaços, sentam-se em frente à TV, computador ou mesmo celular e assistem a esses cultos. Apesar desse esforço de manterem uma rotina para estarem, ainda que virtualmente, no culto, viver de fato essa experiência não tem sido tão simples, “não tenho muita paciência”, afirma Cleonice. Para Simone, a Igreja é um espaço de entrega, “em casa, qualquer barulho distrai, você não está ali cem por cento”. Welita Caetano, liderança da movimento de moradia do centro da Frente de Luta por Moradia (FLM), cientista do trabalho e adventista diz que “a igreja ao meu ver é uma comunidade e em uma comunidade as pessoas conversam, elas dialogam, é muito mais místico quando ela é presencial. O que você sente, as sensações que você tem, as músicas, o que você visualiza, enfim, você está sensível a tudo que está ao seu redor.”

A necessidade do encontro se configura de forma distinta nos diversos setores da sociedade. Na Igreja Batista da Água Branca, localizada na zona oeste de São Paulo, frequentada por cerca de 2 mil fiéis e que apresenta características de uma igreja de classe média e classe média alta, a falta é sentida de outra forma. “Faz bastante falta não ter o presencial por diversas razões, mas hoje o que eu vejo é que talvez há dois anos eu tivesse uma outra visão, porque a gente frequentava uma igreja menor. Hoje a gente vai em uma igreja que já é muito grande. E uma das coisas que a gente sente falta lá é de ter uma proximidade maior com as pessoas, a gente tem alguns amigos lá, mas ainda é um grupo pequeno de pessoas que a gente já conhecia antes. O fato de estar em uma igreja muito grande, dificulta um pouco essa coisa da proximidade (…) pra gente a parte central do culto é a pregação, pelo menos para mim, independe do lugar que eu estiver, o que eu ouço e o que eu aprendo daquilo, não muda estando em casa ou na igreja” nos diz Jussara F. Aires, empresária e frequentadora da IBAB. Jussara conta que os cultos que ela assiste são menos “emotivos” e que, no entanto, por diversas vezes ela se viu extremamente emocionada mesmo assistindo os cultos pela internet antes da pandemia, ou seja, a igreja para ela cumpre outro papel, ainda que ela sinta falta da proximidade com outras pessoas da igreja. A relação com este espaço está muito mais ligada à espiritualidade e a fé do que ao sentido de acolhimento e comunidade tão fundamental nas igrejas pequenas das periferias.

Para os fiéis, o que pudemos perceber é que, apesar da importância desse espaço do culto online para manterem a relação com a Igreja no cotidiano de suas vidas, foram necessárias outras atividades para diminuir a falta do culto presencial. Algumas igrejas tem como organização institucional as células, podendo ter diversos formatos e modelos. Elas se constituem como pequenos grupos liderados por algum membro da comunidade, que compartilha a visão da igreja, ensinos bíblicos e pastoreia mais de perto o fiel, dando a oportunidade para um contato mais íntimo e espaço de abertura de problemas e questões da vida, como medos, incertezas e a própria fé. As células têm sido também uma atividade do cotidiano de algumas igrejas “O pessoal tá sedento da palavra, estão querendo falar, estão querendo desabafar e é nesse momento na célula que a gente tem sentido isso”, conta Claudio, da Igreja Visão Plena. Esse espaço menor de comunhão tem funcionado para dar conta daquelas angústias que não chegam ao pastor nos cultos online.