Portal de notícias produz conteúdo enganoso e alimenta pânico moral sobre garantia de direitos a transexuais no SUS

Circula em espaços digitais religiosos, conteúdo publicado pelo portal de notícias Metrópoles  com a informação de que o governo federal havia mudado a classificação de gênero “para operar pênis e vagina no SUS”. O texto, publicado em 20 de maio, assinado pelo colunista Paulo Cappelli, se refere às mudanças na classificação de gênero aprovadas pelo Ministério da Saúde, que possibilitam o acesso de pessoas transexuais a mais de 200 procedimentos de saúde na tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A matéria destaca que “exames e cirurgias na vagina, por exemplo, agora poderão ser realizados também em pessoas do sexo masculino. O mesmo vale para exames e cirurgias no pênis, que poderão ser feitos em pessoas do sexo feminino”. 

Imagem: Reprodução do site Metrópoles

Outros sites foram pelo mesmo caminho editorial adotado pelo portal brasiliense e publicaram manchetes semelhantes. 

Imagem: Reprodução do site do jornal O Liberal 

Imagem: Reprodução do site Poder 360

Imagem: Reprodução do site da Revista Oeste

Repercussão

No mesmo dia, políticos e influenciadores vinculados à extrema direita publicaram em suas redes sociais a reprodução do site Metrópoles e criticaram o governo pela decisão. Os senadores evangélicos Flávio Bolsonaro e Magno Malta acusaram o presidente Luís Inácio Lula da Silva de tentar destruir as famílias. “Para Lula, o importante mesmo é desconstruir a família brasileira, atacar sua liberdade”, escreveu Flávio Bolsonaro na publicação. O deputado federal Nikolas Ferreira, por sua vez, ressaltou a falta de coerência do governo ao fazer essa mudança “em um período tão crítico do SUS”.  

Já a suplente de deputada estadual do PL/SP, empresária e influenciadora, Juciane Cunha , demonstra desconhecer que o SUS já realiza cirurgias de redesignação sexual, conhecida como cirurgia de mudança de sexo, desde 2010 em mulheres trans e, desde 2019, em homens trans. Ela acusa o governo de ter promovido esse tipo de cirurgia a partir de agora. “Com tantas coisas acontecendo nesse país, com o sistema único de saúde falido, o governo Lula resolve se preocupar com mais essa: se a pessoa vai operar para ela tirar o pênis, ou se ela vai continuar”, disse Cunha, com demonstração de ignorância do que trata, de fato, a mudança implementada pelo governo. 

Imagem: Reprodução do perfil no Instagram do deputado Flávio Bolsonaro

Imagem: Reprodução do perfil do senador Magno Malta

Imagem: Reprodução do perfil da empresária e influenciadora Juciane Cunha

Imagem: Reprodução do perfil do deputado federal Nikolas Ferreira

A mudança aprovada pelo Ministério da Saúde, em 14 de maio, também foi noticiada em outros veículos de comunicação como a CNN e o G1. Estes também apontam para a relação do Partido dos Trabalhadores (PT) com o tema, mas diferente dos sites e dos perfis vinculados ao extremismo de direita, explicam a importância da medida e não a vinculam ao governo Lula.

Imagem: Reprodução do site da CNN

O que, de fato, mudou?

A Portaria nº 1.693, publicada no Diário Oficial da União, em 14 de maio passado, foi proposta pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, do Ministério da Saúde (SAES/MS). A medida prevê a mudança de 269 procedimentos da Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde (SUS) que passam a ser disponíveis e acessíveis a todas as pessoas independente do sexo. Com a Portaria, homens e mulheres vão poder fazer vários tratamentos e exames que antes tinham restrição de gênero.

A alteração, concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, , foi feita no contexto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº787/DF, protocolada na Corte pelo PT, com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público. Ao propor a ADPF, o PT que se baseia em episódios nos quais pessoas transexuais tiveram dificuldade de acesso aos serviços de saúde, após retificarem a informação quanto ao sexo em seus documentos civis. 

Em nota pública, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ esclarece a função da portaria e os motivos de sua criação. O Conselho Federal de Farmácia também noticiou a mudança e apontou que, na ADPF, o PT deu destaque para medidas restritivas tomadas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que ferem os direitos das pessoas transexuais. “Neste sentido, consideramos a referida portaria um importante avanço na garantia dos direitos da comunidade transexual e travesti, ao assegurar o direito à saúde conforme previsto na Carta dos Princípios dos Usuários do SUS e na Constituição Federal. Pessoas transexuais e travestis têm direito a uma saúde de qualidade, universal e que atenda às suas necessidades”, disse, na nota, a presidente do Conselho Janaina Oliveira.

As mudanças permitem que pessoas transmasculinas – homens transexuais com útero, ovários e vagina -, travestis e mulheres transexuais – com testículos, próstata e pênis – tenham acesso a procedimentos como a redesignação sexual, tratamentos contra câncer, acompanhamento de gravidez, procedimentos de contracepção e esterilização. Antes da portaria, uma pessoa que tinha a identidade como feminina, não podia, por exemplo, passar por exames de próstata, ainda que tivesse mantido a região íntima. Da mesma forma, um homem trans que não tivesse feito a cirurgia de retirada do útero, poderia ter dificuldade para acessar tratamentos no órgão.

Apesar de o documento incluir cirurgias de redesignação sexual como a construção de vagina e amputação peniana, esses procedimentos são realizados pelo SUS desde 2008, mesmo que nem sempre possam ser efetuados devido à falta de recursos para atender a demanda.

Direitos de Pessoas Transexuais

Estima-se que no Brasil, quatro milhões de pessoas sejam transgêneras ou não binárias, conforme dados do Banco Mundial. De acordo com o Ministério da Saúde, inicialmente, o SUS incorporava usuários LGBTQIA+ apenas em políticas de  prevenção e tratamento à Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). A Portaria nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011, instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT). Já com a edição da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, a pasta redefiniu e ampliou a cobertura do SUS para essa população. 

“O regramento prevê a habilitação de estabelecimentos de saúde na modalidade ambulatorial e hospitalar, garantindo a integralidade do cuidado para as pessoas trans. Os serviços ambulatoriais devem oferecer acompanhamento clínico, pré e pós-operatório, além da hormonização, realizados por uma equipe multiprofissional”, explica a Coordenação-Geral de Atenção Especializada do Ministério da Saúde

A Organização Mundial de Saúde (OMS) oficializou, em 21 de maio de 2019, a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID), durante a 72º Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra.

Em 2022, no último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), uma portaria do Ministério da Saúde (nº 4.700, de 29 de dezembro de 2022) alterou os critérios para a cirurgia de redesignação sexual e construção da neovagina. “Para passar pela intervenção há critérios, é preciso ter mais de 21 anos e ter passado pelo acompanhamento clínico e hormonal por dois anos, sendo que esse último é autorizado no SUS a partir dos 18 anos de idade”, ressalta a Coordenação-Geral de Atenção Especializada do Ministério da Saúde.

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Bereia verificou que o conteúdo do portal de notícias Metrópoles, utilizado por grupos religiosos em espaços digitais, é enganoso. Ele distorce informações verdadeiras  e promove o aumento do número de visualizações da página da coluna de Paulo Cappelli. É o chamado clickbait – tática usada na internet para gerar amplitude de tráfego online, por meio de conteúdos enganosos ou sensacionalistas. 

A estratégia usada pelo colunista gerou inúmeros compartilhamentos em perfis e sites da extrema direita que usam frequentemente o tema  sensível e causam comoção em seu público, com uso do pânico moral.

Como Bereia já publicou, segundo o pesquisador Richard Miskolci no artigo “Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay”, a construção de bases políticas conservadoras e de extrema direita, e a adesão a elas, têm sido conquistadas por meio do pânico moral, da retórica do medo, para gerar insegurança e promover afetos. 

Pânicos morais são fenômenos que emergem em situações nas quais sociedades reagem a determinadas circunstâncias e a identidades sociais que presumem representarem alguma forma de perigo. São a forma como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos e, ao se sentirem ameaçados, tendem a concordar que “algo deveria ser feito” a respeito dessas circunstâncias e dessas identidades sociais ameaçadoras. O pânico moral fica plenamente caracterizado quando a preocupação aumenta em desproporção ao perigo real e geral.

Pesquisas científicas, como a de Richard Miskolci, indicam a circulação de intensa quantidade de material desinformativo, baseado em pânico moral e medo para disseminação de conteúdos que se revertem em apoio a grupos políticos de extrema direita, o que se pode identificar na forma como se explora politicamente o tema tratado nesta matéria.

A informação que deveria ter sido ressaltada, entretanto, é a que o noticiário em geral destacou: “Ministério da Saúde muda classificação de gênero em tratamentos para ampliar acesso a transexuais”, como na manchete do G1. O texto retrata a verdade sobre a portaria, conforme descrito ao longo desta matéria do Bereia. 

Bereia condena qualquer forma de diluir informações tão importantes para o direito de cidadãos e cidadãs LGBTQIA+ a uma ideia sensacionalista de que este público só está interessado em cirurgias de mudança de sexo, já realizadas no SUS desde 2008. A Portaria em questão garante o acesso a direitos que estavam sendo cerceados por uma questão de nomenclatura. Ao determinar que o acesso a esses procedimentos independe do gênero (mulher ou homem), o SUS garante o acesso à saúde a mais de 4 milhões de brasileiros e brasileiras.  

Referências de checagem:

Terra

https://www.terra.com.br/nos/saiba-quais-sao-os-direitos-das-pessoas-trans-no-brasi37f4b8022be88694e18c03be7c5048jk9w4cq.html – Acesso em: 31 de maio 2024.

https://www.terra.com.br/nos/paradasp/ministerio-da-saude-muda-classificacao-de-genero-em-mais-de-200-procedimentos-para-atender-populacao-trans,1ce4c229c10813fcf0f5385675f78eb41vsp4nzs.html – Acesso em: 31 de maio 2024.

https://www.terra.com.br/noticias/ministerio-da-saude-muda-classificacao-de-genero-para-ampliar-acesso-a-transexuais,573b878f69ebc351ec300b22e9864805yiars5sb.html  – Acesso em: 31 de maio 2024.

G1

https://g1.globo.com/saude/noticia/2024/05/21/ministerio-da-saude-muda-classificacao-de-genero-em-tratamentos-para-ampliar-acesso-a-transexuais.ghtml – Acesso em: 31 de maio 2024

Ministério da Saúde

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/mulheres-trans-e-travestis-contam-com-atendimento-especializado-no-sus – Acesso em: 31 de maio 2024

https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/equidade/publicacoes/publico-lgbt#:~:text=Portaria%20n%C2%BA%202.836%2C%20de%201%C2%BA,Nacional%20de%20Sa%C3%BAde%20Integral%20LGBT). – Acesso em: 31 de maio 2024

Instituto Brasileiro de Direito de Família 

https://ibdfam.org.br/noticias/11858/Minist%C3%A9rio+da+Sa%C3%BAde+muda+classifica%C3%A7%C3%A3o+de+g%C3%AAnero+no+SUS+para+ampliar+acesso+de+pessoas+trans – Acesso em: 31 de maio 2024

Carta Capital 

https://www.cartacapital.com.br/politica/ministerio-da-saude-muda-classificacao-sobre-genero-em-procedimentos-medicos-para-acolher-pessoas-trans/  – Acesso em: 31 de maio 2024

Câmara dos Deputados

https://www.camara.leg.br/noticias/941218-projeto-proibe-cirurgia-de-mudanca-de-sexo-em-menores-de-21-anos/ – Acesso em: 2 de junho 2024

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2024-jan-28/avancos-e-desafios-dos-direitos-das-pessoas-trans-no-brasil/ – Acesso em: 2 de junho 2024

Site Drauzio Varella

https://drauziovarella.uol.com.br/sexualidade/lgbtqiap/servicos-de-saude-voltados-a-populacao-trans-no-brasil/#:~:text=Ou%20seja%2C%20no%20Brasil%2C%20pessoas,e%20direcionamento%20aos%20servi%C3%A7os%20especializados. – Acesso em: 2 de junho 2024

OMS

https://brasil.un.org/pt-br/83343-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-doen%C3%A7as-mentais  – Acesso em: 2 de junho 2024

Conselho Federal de Psicologia

https://site.cfp.org.br/transexualidade-nao-e-transtorno-mental-oficializa-oms/#:~:text=A%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial%20de%20Sa%C3%BAde,Problemas%20de%20Sa%C3%BAde%20(CID). – Acesso em: 2 de junho 2024

Rock Content

https://rockcontent.com/br/blog/clickbait/#:~:text=Clickbait%20%C3%A9%20uma%20t%C3%A1tica%20usada,por%20essa%20isca%20de%20cliques. – Acesso em: 2 de junho 2024 

CNN

https://www.cnnbrasil.com.br/saude/saude-amplia-acesso-de-pessoas-trans-a-procedimentos-ginecologicos-e-urologicos/ – Acesso em: 2 de junho 2024 

Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-saes/ms-n-1.693-de-10-de-maio-de-2024-559381992 – Acesso em: 28 de maio de 2024

GOV.BR  https://www.gov.br/participamaisbrasil/nota-publica-portaria-n-1693-2024-da-saes-ms#:~:text=A – Acesso em: 28 de maio de 2024

Conselho Federal da Farmácia. https://site.cff.org.br/noticia/Noticias-gerais/20/05/2024/saude-muda-a-classificacao-de-genero-em-operacoes-do-sus-para-facilitar-o-acesso-de-pessoas-trans – Acesso em: 28 de maio de 2024

Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/05/ministerio-da-saude-amplia-acesso-a-exames-para-incluir-pessoas-transexuais.shtml – Acesso em: 28 de maio de 2024

Jornal UFG. https://jornal.ufg.br/n/166253-pesquisa-investiga-acesso-a-saude-pela-populacao-trans. – Acesso em: 28 de maio de 2024

Revista AzMina. https://azmina.com.br/colunas/a-medicina-esta-preparada-para-atender-pessoas-trans/ – Acesso em: 28 de maio de 2024

https://azmina.com.br/reportagens/pessoas-trans-tambem-podem-ter-cancer-de-mama/ – Acesso em: 28 de maio de 2024

BEREIA
https://coletivobereia.com.br/deputado-distorce-dados-e-omite-informacoes-sobre-teleaborto-em-tuite/ – Acesso em: 3 de junho 2024

Artigo “Pânicos morais e controle social – reflexões sobre o casamento gay”, do pesquisador Richard Miskolci https://www.scielo.br/pdf/cpa/n28/06.pdf – Acesso em: 3 de junho 2024

Site evangélico desinforma sobre caso dos convites de casamento para casal gay

O site evangélico Gospel Prime publicou, em 25 de abril, que o casal Thiago e Beatriz Jungerfeld Martins, proprietários da loja Jurgenfeld Ateliê e Fotografia, enfrentam ameaças online após recusarem, com base em seus princípios cristãos, um pedido de serviços para uma cerimônia de “união gay”.

Imagem: reprodução do site Gospel Mais

As ameaças, de acordo com Gospel Prime, incluem mensagens de “violência física e desejos macabros”, têm origem em “usuários que se identificam com a comunidade LGBT” e estariam sendo investigadas pela polícia para garantir a segurança do casal. 

Segundo a matéria do Gospel Prime, Thiago e Beatriz Jungerfeld Martins defendem sua postura como uma expressão de fé e não de discriminação. O site destaca a liberdade religiosa como um direito fundamental, o direito de cada cidadão ou empresa agir conforme suas crenças e ressalta a “perseguição enfrentada por cristãos em diversas partes do mundo”.

Bereia checou as informações publicadas por Gospel Prime. 

O caso dos convites de casamento

O caso descrito pelo site Gospel Prime veio à tona nas mídias sociais, quando o casal Henrique Nascimento e Wagner Cardoso, teve um pedido de convite de casamento negado pelo estabelecimento comercial Jurgenfeld Ateliê e Fotografia, com alegação de motivos religiosos que não aceitam união homoafetiva, registrou boletim de ocorrência, com a alegação de preconceito. . Henrique Nascimento publicou na plataforma X um trecho da troca de mensagens entre ele e o Ateliê no momento da recusa de atendimento. 

Imagem: perfil Henrique Nascimento do Facebook 

Imagem: Perfil Henrique Nascimento no X (antigo Twitter)

A repercussão desse caso trouxe grande visibilidade à empresa. Antes dele, o Ateliê Jurgenfeld contava com pouco mais de dois mil seguidores no Instagram, seguia 44 perfis, exibia 134 publicações e se apresentava como uma loja de artesanato com os dizeres: “Seu sonho merece um atendimento! do interior de SP à qualquer lugar.” [sic]

Imagem: reprodução do Instagram

Após a polêmica, o perfil passou a ter mais de 90 mil seguidores e a seguir apenas quatro perfis, as publicações antigas foram arquivadas e novas publicações de cunho religioso e a respeito dos convites negados foram feitas, com bloqueio de comentários. Além disso, o Ateliê passou a destacar sua confessionalidade religiosa no perfil, como “uma papelaria cristã de convites de casamento produzidos à mão”. 

Imagem: reprodução do Instagram

Um dos vídeos publicados na conta do Ateliê no Instagram, apagado depois da repercussão do caso, foi reproduzido na página do canal do YouTube do site Metrópoles. Nele, o casal afirma que recorrentemente nega serviço a casais homossexuais e equipara as críticas à sua escolha de “trabalhar dessa forma” com a própria homofobia:

“Enfim, não quero entrar no mérito da questão, mas nós não fazemos casamentos homossexuais e nem eventos homossexuais. Há algum tempo, basicamente uns dois anos, nós temos negado muito serviço em relação a isso. E hoje, esses dias na verdade, mas hoje em específico foi a gota d’água. Nós dissemos que não iríamos realizar nenhum tipo de casamento homossexual, nós não fazemos esse serviço, e fomos, de certa forma, retaliados por um casal que não aceitou a nossa oposição, não aceitou a nossa opinião, e tem de fato feito alguns comentários aqui no nosso Instagram, tanto da fotografia quanto do ateliê. Enfim, tem feito alguns comentários aqui no nosso Instagram falando sobre isso, dizendo que homofobia é crime, dizendo do nosso posicionamento. Enfim, eu gostaria de compartilhar isso com vocês, as pessoas que nos acompanham. Eu sei que talvez esse vídeo aqui possa talvez ter pessoas que deixem de nos seguir. De verdade, nós não nos importamos com isso, nós não estamos preocupados com a nossa fama, com as pessoas que não são nossos fãs. Não é isso. Nossa intenção com a fotografia não é essa, nunca foi essa, e nem com os convites de casamento. Então nós nos posicionamos assim e nós agora estamos sendo tachados de homofóbicos. E uma reflexão minha, acho engraçado porque quem tacha as pessoas homofóbicas, dizem que as pessoas que são homofóbicas, entre aspas, têm que aceitar o seu posicionamento, mas ao mesmo tempo não percebem que o argumento que elas usam para validar aquilo que elas acreditam é o mesmo argumento que as acusa também, porque nós temos que aceitar aquilo que elas são, mas é, as pessoas não podem aceitar que nós escolhemos fazer dessa maneira e trabalhar dessa forma” (Fala de Thiago Martins em trecho do vídeo publicado pelo Metrópoles).

Em seguida, os donos da loja publicaram uma nota de repúdio, que também já foi retirada do Instagram, indicando que estão sofrendo “heterofobia”. Afirmam também que defendem a “família como ela é” baseada no texto bíblico de Gênesis, condenam a busca por “privilégios” pelo homossexuais e fazem críticas pontuais à Rede Globo e à cantora Anitta, associadas à “galera” politicamente  correta.:

Imagem: reprodução da Carta Capital

A única publicação sobre o caso dos convites que continua na página do Instagram do Ateliê é bem mais branda do que as duas publicadas anteriormente. Nela, o casal afirmou que apesar de não ter buscado essa “fama”, veem um propósito divino em tudo e se alegram em honrar a Cristo. 

Os donos da loja agradecem as mensagens de apoio recebidas, a solidariedade de vários advogados que se ofereceram para ajudar legalmente, e a Polícia Civil de Pederneiras, pela atenção ao caso. Eles também mencionam o apoio de deputados e senadores, destacando que o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e outros parlamentares defenderam sua causa. Agradecem aos amigos que os apoiaram durante esse período turbulento e pedem desculpas por qualquer ódio dirigido a eles. 

Finalmente, afirmam perdoar aqueles que os ofenderam ou ameaçaram, e pedem a Jesus que lhes dê graça para manter um diálogo respeitoso e sabedoria para seguir em frente. Concluem citando Tiago 1:2-4, que fala sobre considerar as provações como motivo de alegria por produzirem perseverança.

Não foram encontradas, nas publicações, evidências das ameaças sofridas pelo casal, referentes a “violência física” e “desejos macabros”, como mencionado pela matéria do Gospel Prime. O Ateliê foi contactado pelo Instagram, mas até o fechamento desta matéria ainda não forneceu resposta. 

A matéria checada pelo Bereia menciona dois pontos dignos de esclarecimento: a questão jurídica da liberdade religiosa envolvida no caso e o assunto da suposta perseguição a cristãos no Brasil e no mundo. 

Liberdade religiosa X discriminação 

O Brasil é um dos países recordistas de casos de discriminação e violência contra pessoas homoafetivas. Segundo dados do Dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil, publicado em 2023, foram 273 vítimas de crimes de identidade de gênero ou sexual no Brasil. Este número equivale a dois assassinatos de pessoas LGBTQIA+ a cada três dias em 2022. Os assassinatos atingem mais mulheres trans e travestis: foram 159 casos (58%), segundo o relatório. Homens gays aparecem com 97 óbitos (35% das ocorrências). A maioria das mortes resultam de circunstâncias violentas, com armas de fogo, esfaqueamento, espancamento e apedrejamento. 

Por conta deste quadro dramático, do desprezo do Poder Legislativo e de ações protocoladas por segmentos da sociedade civil no Supremo Tribunal Federal (STF), a Corte decidiu, em 2019, equiparar a homofobia e a transfobia, por analogia, ao crime de racismo. A partir daí, a Lei 7.716/1989, que trata sobre crimes de discriminação ou preconceito de cor, passou a se aplicar também para questões envolvendo orientação sexual e expressão de gênero.

O artigo 5° da lei afirma que qualquer estabelecimento comercial aberto ao público não pode negar atendimento que se caracterize como discriminação. Portanto, o sistema jurídico brasileiro reconhece que qualquer conduta discriminatória em razão da orientação sexual e/ou identidade de gênero, incluindo a negação de atendimento e prestação de serviço por parte de uma empresa, é passível de punição.   

Nesse sentido, a Justiça entende que não há justificativa que não seja discriminatória para que um casal homossexual seja impedido de encomendar convites de casamento, principalmente com a afirmação expressa, por parte da própria empresa, de que a negação de atendimento se deu por causa da orientação sexual dos possíveis clientes. Segundo o advogado e jornalista André Eler ouvido pelo Bereia, “no contexto do Brasil não faz sentido dizer que uma alegação de consciência ou liberdade religiosa seja suficiente para que uma empresa negue um serviço com base em discriminação de orientação sexual”. 

Portanto, de acordo com esta orientação, por se tratar de uma relação jurídica em que uma empresa se nega a prestar serviços por causa da orientação sexual de uma pessoa,  a justificativa da liberdade de consciência religiosa não é válida nesse contexto. 

Perseguição dos cristãos pelo mundo

Quanto à afirmação de que este é um caso de perseguição religiosa, atribuída a aliados do casal homoafetivo, que reagiram à postura do casal dono da empresa, ela também é imprecisa e injustificada. Como já abordado  por Bereia, o termo “cristofobia”, entendido como uma perseguição a cristãos em países em que esse grupo religioso é majoritário, se trata de uma falácia que é instrumentalizada politicamente, com frequência. 

Nesse contexto, a ideia de que os cristãos estejam sofrendo perseguição ideológica, fomenta disputas no cenário religioso e político e é associada principalmente aos que se alinham a um conservadorismo no que se refere a pautas morais. Mesmo que os cristãos sejam a maioria no país e tenham plena liberdade de prática da fé, lutas antidiscriminação e iniciativas de inclusão de grupos historicamente marginalizados, que oferecem orientação distinta a de certas doutrinas e teologias, são interpretadas como noções e práticas contra o certos grupos religiosos, em especial, determinados cristãos. Com isso, são  utilizadas para criar uma noção de inimigo em comum.

Essa noção toma outros contornos quando associada, nos contextos religiosos, com a ideia de “batalha espiritual”, que entende a vida pública e a arena política como um espaço de disputa entre forças espirituais do bem e do mal. A ideia de batalha convoca os cristãos a se posicionarem a favor dos “princípios e valores cristãos”, entendidos geralmente como relacionados ao conservadorismo moral, e faz com que esse grupo se veja como atacado quando é confrontado em suas posturas discriminatórias.

Bereia já checou vários conteúdos  sobre o tema e mostrou  como o assunto da “perseguição aos cristãos” tem sido instrumentalizado por lideranças extremistas de direita, por meio de notícias de cunho duvidoso para criar pânico no público cristão. Este tema tem um histórico de ser utilizado em época de eleições para direcionar a preocupação das pessoas religiosas contra políticas progressistas, com disseminação de pânico moral sobre grupos de esquerda terem intenções de acabar com as igrejas do Brasil. Isto é falso pois carece de elementos factuais.

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Bereia classifica a matéria de Gospel Prime sobre os donos do Ateliê como imprecisa.

Os dados relativos ao caso em si são verdadeiros: houve a recusa por parte do Jurgenfeld Ateliê de prestar o serviço de confecção de convites de casamento ao casal Henrique Nascimento e Wagner Cardoso, expressamente por se tratarem de homossexuais, como comprovado nas próprias mídias digitais dos dois lados envolvidos.

Porém, não foi verificada a ocorrência de ameaças de violência física ao casal. Estas não foram tornadas públicas pelo casal, dono da empresa, que também não respondeu ao contato do Bereia.

Além disso, as afirmações da matéria sobre a dimensão jurídica desse caso, assim como sobre o contexto mais amplo de afirmação de perseguição  religiosa a cristãos, são falsas e se inserem em uma narrativa de desinformação ideológica, pauta extremista de direita.. 

A recusa do Jurgenfeld Ateliê de prestar serviços a um casal homossexual, com base em sua orientação sexual, coloca em evidência um conflito cada vez mais perceptível entre o direito à liberdade religiosa e o combate à discriminação no Brasil. A posição adotada pela empresa, embora respaldada por suas crenças religiosas, entra em confronto direto com a legislação brasileira, que equipara o preconceito sexual e de gênero  ao crime de racismo, com a proibição expressa a discriminação por orientação sexual em serviços públicos e privados. Isto significa que quem se vê impedido a prestar serviços a qualquer cidadão, no seu direito de consumidor, não deve atuar no ramo.

O caso também ressalta a utilização de narrativas de perseguição religiosa em contextos políticos e sociais, frequentemente empregadas para fortalecer posições conservadoras, de cunho extremista, especialmente em períodos eleitorais. A alegação de perseguição, muitas vezes desprovida de evidências concretas,  como demonstrado pela ausência de provas nesta direção, referentes às ameaças de violência alegadas, pode desviar a atenção do cerne da questão: a necessidade coexistir com  respeito e igualdade de direitos para todos, independentemente das diferenças, de vários tipos, entre cidadãos. 

Referências de checagem: 

Jurgenfeld Ateliê 

https://www.jurgenfeldatelie.com/

https://www.instagram.com/jurgenfeld.atelie/  Acesso em 30 ABR 24

Metrópoles (Declaração do casal) 

https://www.youtube.com/watch?v=pUD1afrfiPo Acesso em 30 ABR 24

Facebook

https://www.facebook.com/photo/?fbid=7612515832145892&set=a.443885815675632  Acesso em 30 ABR 24

Carta Capital: 

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/loja-de-sao-paulo-se-nega-a-atender-casal-homossexual-e-alega-principios-cristaos/ Acesso em 30 ABR 24

Procuradoria Geral do Estado de São Paulo

https://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal%2C%20no%20artigo,culto%20e%20as%20suas%20liturgias. Acesso em 01 MAI 24

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/cristofobia-uma-estrategia-preocupante/Acesso em 01 MAI 24

https://coletivobereia.com.br/apos-perda-de-mandato-de-dallagnol-politicos-religiosos-propagam-narrativa-enganosa-de-perseguicao/ Acesso em 01 MAI 24

https://coletivobereia.com.br/site-gospel-usa-video-de-participante-de-reuniao-do-pt-para-alimentar-desinformacao-sobre-perseguicao-a-igrejas-pelo-novo-governo/  Acesso em 01 MAI 24

https://coletivobereia.com.br/site-gospel-usa-video-de-participante-de-reuniao-do-pt-para-alimentar-desinformacao-sobre-perseguicao-a-igrejas-pelo-novo-governo/

https://coletivobereia.com.br/site-gospel-usa-nota-de-jornalista-para-explorar-tema-de-perseguicao-a-evangelicos/ Acesso em 01 MAI 24

Brasil de Fato

https://www.brasildefato.com.br/2020/11/13/cristofobia-projeto-de-poder-e-as-resistencias-da-luta-crista Acesso em 02 MAI 24

Senado Federal

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7916960&ts=1647262211806&disposition=inline Acesso em 03 MAI 24

Supremo Tribunal Federal

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=414010 Acesso em 03 MAI 24

Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil

https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2022/ Acesso em 05 MAI 24

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Foto de capa: Karolina Grabowska/Pexels

Pastora e cantora evangélica Ana Paula Valadão é condenada por falas públicas discriminatórias contra pessoas LGBTQIA+

Viralizou, nos últimos dias de abril, a notícia de que a cantora e pastora da Igreja Batista da Lagoinha  Ana Paula Valadão, 47 anos, foi condenada a pagar multa de R$ 25 mil por danos morais coletivos, por ter proferido um discurso de caráter homofóbico e contra pessoas  que convivem com o vírus HIV, durante  o Congresso Diante do Trono, promovido pela Igreja Batista da Lagoinha, em 2016. A transmissão do vídeo, pela internet e pelo canal de TV da Igreja, Rede Super, repercutiu e gerou revolta na comunidade LGBTQIA+, após declarações da pastora que associava a aids, doença infectocontagiosa, decorrente do vírus do HIV, aos casais gays, à suposta anormalidade das relações homoafetivas e que a única forma de sexo seguro é aquele entre heterossexuais e casados.

Imagem: reprodução dos sites da Folha de S. Paulo e do Metrópoles


Imagem: reprodução dos sites Guiame e Gospel Prime

O processo

Desde 2020, os pronunciamentos da pastora Ana Paula Valadão no Congresso Diante do Trono são levados aos órgãos judiciais do país. O então deputado federal David Miranda (PSOL-RJ, falecido em 2023), representou, naquele ano, noo Ministério Público Federal, uma notícia crime por suposta prática de crime de homofobia, contra a pastora, que foi conduzida pelo Ministério Público de Minas Gerais. A representação resultou em uma ação civil pública apresentada pelo procurador Helder Magno da Silva, que a condenou por caso de conduta discriminatória com base em discurso de ódio sexual e contra pessoas que convivem com o HIV.

Em 2021, outra ação civil pública, de autoria da Aliança Nacional LGBTI, organização da sociedade civil em prol da defesa e promoção dos direitos da comunidade LGBTQIA+, foi encaminhada ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal. O juiz da 21ª Vara Cível Hilmar Castelo Branco Raposo Filho julgou o caso e, em  24 de abril de 2024, proferiu a sentença condenatória à pastora ao pagamento do valor de 25 mil reais. O valor deverá ser encaminhado para a atividades de defesa dos direitos LGBTQIA+. Foi também determinada a proibição da divulgação e da reprodução da fala lesiva. 

De acordo com a sentença judicial, a fala de Ana Paula Valadão extrapola os limites da liberdade de expressão e de religião (argumento alegado pela defesa), pois estas necessitam da harmonização com a Constituição Federal, que afere “a dignidade da pessoa humana e a vedação à conduta discriminatória”. Para o juiz, as afirmações da pastora configuram-se como lesivas, já que a “ilação não encontra respaldo em texto bíblico ou na ciência. É uma conclusão errada que apenas repete a ultrapassada impressão popular da década de 80, época da descoberta da doença”, relata o juiz.

Relembre as falas de Ana Paula Valadão durante o vídeo

Em 2016, foi realizada mais uma edição do Congresso Diante do Trono, evento organizado pelo Ministério de Louvor Diante do Trono, da Igreja Batista da Lagoinha, liderado por Ana Paula Valadão, que oferece pregações, apresentação de canções e workshops. Em conversa com o cantor gospel Asaph Borba, no palco da Igreja da Lagoinha, Belo Horizonte (MG), com gravação em vídeo, divulgada pelo canal de TV da igreja, a Rede Super, a pastora e cantora afirmou:

“Muita gente acha que isso é normal. Isso não é normal. Deus criou o homem e a mulher e é assim que nós cremos. Qualquer outra opção sexual é uma escolha do livre arbítrio do ser humano. E qualquer escolha leva a consequências. A Bíblia chama de qualquer escolha contrária ao que Deus determinou como ideal, como ele nos criou para ser, chama de pecado. E o pecado tem uma consequência que é a morte. Inclusive, tudo que é distorcido traz consequência naturalmente; nem é Deus trazendo uma praga ou um Juízo, não. Taí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte, contamina as mulheres, enfim… Não é o ideal de Deus.” 

Foto: Reprodução Youtube

Ana Paula Valadão contestou, em sua defesa, que o processo não tem utilidade prática para ela (falta de utilidade processual), que o tempo para iniciar a ação judicial já passou (prescrição), que o tribunal designado não é o correto para julgar o caso (incompetência do Juízo) e que já existe outra ação judicial com o mesmo assunto em tramitação (litispendência). Já no mérito dos termos, argumentou que apenas exerceu o direito “legítimo da liberdade de expressão e religiosa, bem assim não ocorre discurso de ódio ou atitude discriminatória”. O magistrado Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, considerou que a fala direcionada à comunidade LGBTIQIA+, que a coloca no “lugar de culpada pela existência da AIDS é situação que reduz sensivelmente todas as conquistas desta coletividade”, o que evidencia a violação do direito à dignidade, assegurada pela Constituição Federal.

Na decisão , o juiz também afirmou que “a manifestação e divulgação da opinião errada atribui à população LGBTQIA+ uma responsabilidade inexistente, atingindo a dignidade destas pessoas de modo transindividual, justamente o que caracteriza a lesão apontada pela autora”. 

Para complementar, a sentença  finaliza que “há muito já se conhece a constatação científica amplamente divulgada de que a contaminação pela AIDS se dá, dentre outras, pela prática de sexo sem segurança, não, pela orientação de cada pessoa afetada. As estatísticas, ao inverso do que pode parecer, confirmam este fato quando apontam maiores índices de doentes entre populações vulneráveis sob o aspecto social.”, afirma o juiz.

À época dos primeiros processos contra a fala de Ana Paula Valadão, o então ministro da Advocacia Geral da União do governo Jair Bolsonaro, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, pastor presbiteriano, André Mendonça se manifestou em apoio à pastora:

Bereia conclui que as matérias publicadas  sobre a condenação de Ana Paula Valadão por fala pública de caráter homofóbico e contra pessoas que convivem com vírus HIV são verdadeiras. A pastora foi processada e condenada por danos morais por utilizar falas preconceituosas contra pessoas LBTQIA+ e atribuir a elas a propagação do vírus HIV.  

Com base na decisão do juiz do TJ-DF Raposo Filho e as declarações por parte da reclamante, a Aliança LGBTI, as publicações deixam claro os fatos discorridos, que as falas da pastora tratam-se de desinformação e com potencial para atingir a dignidade da comunidade LGBTQIA+, atribuindo uma responsabilidade inexistente, além de propagar discurso de ódio que incentiva o preconceito e rejeição de uma parcela da população historicamente marginalizada.  

Referências de checagem:

BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Estado de Minas Gerais. Inquérito Civil n.º 1.22.000.002594/2020-22. https://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/2021/pr-mg-manifestacao-12129-2021_homofobia.pdf/at_download/file Acesso em: 29 de abril de 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. 21ª Vara Cível de Brasília. Processo nº 0709624-28.2021.8.07.0001. Ação Civil Pública Cível (65). Autor: Aliança Nacional LGBTI. Réus: ANA PAULA MACHADO VALADAO BESSA, CANAL 23 LTDA. Disponível em: https://pje.tjdft.jus.br/consultapublica/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?nd=24042417382135900000177820579 Acesso em: 30 de abril de 2024.

COLETIVO BEREIA. Site Gospel desinforma sobre inquérito do Ministério Público contra cantora gospel Ana Paula Valadão. 2020. Disponível em:https://coletivobereia.com.br/site-gospel-desinforma-sobre-inquerito-do-ministerio-publico-contra-cantora-gospel-ana-paula-valadao/. Acesso em: 29 de abril de 2024.

BERGAMO, Mônica. Ana Paula Valadão é condenada a pagar R$ 25 mil por associar Aids a homossexualidade. Folha de S.Paulo, São Paulo, 26 de abril de 2024. Coluna. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/04/ana-paula-valadao-e-condenada-a-pagar-r-25-mil-por-associar-aids-a-homossexualidade.shtml. Acesso em: 29 de abril de 2024.

JOVEM PAN. https://jovempan.com.br/noticias/brasil/ana-paula-valadao-e-condenada-a-pagar-multa-por-associar-hiv-com-comunidade-lgbtqia.html. Acesso em 29 de abril de 2024.

Métropoles. https://www.metropoles.com/celebridades/ana-paula-valadao-e-condenada-a-pagar-r-25-mil-por-ligar-aids-a-lgbts. Acesso em 03 de maio de 2024.Youtube https://youtu.be/Hkk9kUtMGCM?si=je-yaxc4ORcIgUOf&t=31. Acesso em 29 de abril de 2024.

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Foto de capa: reprodução do Instagram

Site gospel engana sobre denúncia de ministra da França a respeito da fala de padre contra homossexualidade

* Matéria atualizada em 18/04/2024 às 17:50 para correção de título

Segundo uma publicação do site evangélico Gospel Mais, o padre Matthieu Raffray enfrenta ameaças de processo por parte da ministra de Igualdade de Gênero e Diversidade do governo francês Aurore Bergé. A ministra teria ameçado o padre de processo depois de ele ter afirmado em vídeo, direcionado a seus mais de 60 mil seguidores no Instagram, que a homossexualidade é ‘uma fraqueza pecaminosa’, juntamente com outras transgressões. Gospel Mais afirma que o padre Raffray “despertou a ira” da ministra francesa.

Imagem: reprodução site Gospel Mais

 De acordo com o Gospel Mais, a ministra Bergé denunciou o padre Raffray à Delegação Interministerial para a luta contra o racismo, o anti-semitismo e o ódio LGBT (DILCRAH). A DILCRAH informou ter encaminhado a denúncia ao procurador da República e mencionou que a chamada “terapia de conversão”, incentivada por grupos religiosos,  é ilegal na França desde 2022.

 Gospel Mais ainda afirma, que apesar da “controvérsia e da perseguição governamental”, Raffray defende sua posição, e insiste que sua intenção “era encorajar a luta contra as tentações em geral, e não atacar especificamente a homossexualidade, enfatizando sua abordagem cuidadosa ao tema e sua não homofobia”.

 Na manhã do dia 4 de abril, o site O Antagonista noticiou que o padre Raffray estava sendo processado por homofobia. Horas após essa publicação inicial, o site evangélico Pleno.News também cobriu o caso, mas com uma abordagem diferente, com o relato de que o sacerdote havia sido denunciado por descrever a homossexualidade como “fraqueza”.

 No dia seguinte, 5 de abril, o site evangélico Gospel Mais entrou na discussão, destacando que as declarações do padre provocaram a ira de uma ministra, ao caracterizar a homossexualidade como uma “fraqueza pecaminosa”. Esta sequência de reportagens mostra a evolução da cobertura do evento e as diversas interpretações dadas ao incidente.

Imagem: reprodução do site O Antagonista

Imagem: reprodução Pleno News

Quem é o Padre Matthieu Raffray?

  Imagem: reprodução do X (antigo Twitter)

O padre da Igreja Católica Matthieu Raffray é doutor em história da filosofia e professor de filosofia na Universidade Pontifícia de Santo Tomás de Aquino, em Roma. É autor do livro “Le plus grand des combats” (“O Maior dos Combates”), anunciado com destaque em sua página na rede social digital X (antigo Twitter). 

O site oficial da publicação, da Editora Hétairie, apresenta o livro como um chamado à reflexão sobre a fé católica e um convite para jovens a redescobrir suas raízes e identidade na fé. Segundo essa apresentação, a obra é um “grito de guerra em torno de cristo” e Raffray aborda temas polêmicos como aborto,  divórcio e  eutanásia e demais desafios que a sociedade enfrenta atualmente. 

A Associação Renascimento Católico afirma que “sem ignorar o estado da nossa sociedade e os perigos que enfrentamos, o livro é um grito de guerra em torno de Cristo, um apelo à Esperança. Não foi em vão que milhares de jovens decidiram acordar, redescobrir as suas raízes, a sua identidade, a sua fé. Siga Cristo, levante-se: você nunca mais estará sozinho!

Matthieu Raffray faz parte do Instituto Bom Pastor, que foi criado ainda sob o pontificado do Papa Bento XVI. O IBP tem cerca de 45 sacerdotes, que atuam em cerca de vinte dioceses, na França (Bordéus, Chartres, Paris, Meaux, Le Mans, Marselha, etc.), na Polônia (Varsóvia, Częstochowa, Białystok), Colômbia (Bogotá), Brasil (Brasília, São Paulo, Belém, Curitiba), Itália (Roma, Nápoles) e Uganda (Kampala). Os seus sacerdotes exercem o apostolado em pequenas comunidades, no âmbito de paróquias pessoais ou territoriais. 

O Instituto do Bom Pastor, tem como objetivo a defesa e difusão da Tradição Católica em todas as suas formas: doutrinal, apostólica e litúrgica. Na linha conservadora defendida pelo grupo, os padres do IBP celebram a missa exclusivamente segundo o rito tradicional, ou seja, segundo a liturgia conhecida como “São Pio V”, de 1570, também conhecida como “Missal Tridentino”, celebrada em latim, formato anterior ao estabelecido pelo Concílio Vaticano II (1962-1965).

O vídeo de Raffray

Matthieu Raffray publicou o vídeo criticado pela ministra francesa para a Igualdade de Gênero, Diversidade e Igualdade de Oportunidade, Aurore Bergé, para os seus mais de 60 mil seguidores no Instagram, em 15 de março.

Imagem: reprodução do Instagram

Em trecho da gravação,  Matthieu Raffray afirma: 

 “Todos nós temos fraquezas. Cada um tem suas fraquezas, aquele que é guloso, aquele que é colérico, aquele que é homossexual. Enfim, existem tendências à homossexualidade. Todos os pecados, todos os vícios que podem existir na humanidade e contra os quais podemos muito bem lutar. Mas o demônio vai por dentro, você sabe, você conhece esse discurso interior que diz, por exemplo, eu nunca vou conseguir, vou parar de lutar porque de qualquer forma, é muito difícil. Isso é a voz do demônio que nos faz criar ilusões, filmes interiores para nos fazer abandonar a luta e duvidar de Deus. Existem as fraquezas interiores e as tentações do demônio que jogam com nossas fraquezas”.

A ministra publicou na rede social digital X, em 20 de março,  que os comentários de Raffray sobre a homossexualidade eram “inaceitáveis” e que ela estava denunciando o sacerdote à Delegação Interministerial para a Luta contra o Racismo, o Antissemitismo e o Ódio Anti-LGBT (DILCRAH), para ser processado nos termos do Artigo 40 do Código Penal francês. “Não tolerarei qualquer forma de ódio, seja qual for”, declarou a ministra.

Imagem: reprodução do X

A DILCRAH, responsável pela concepção, coordenação e gestão da política do governo francês, no combate ao racismo, ao antissemitismo e aos crimes de ódio contra as pessoas LGBTs, respondeu à ministra Aurore Bergé poucos minutos depois: “A pedido de @auroraberge, o @dilcrah denunciou ao Ministério Público as declarações #homofóbicas feitas pelo Sr. Raffray em suas redes sociais. As chamadas terapias de conversão são ilegais desde 2022. Falar da homossexualidade como uma fraqueza é vergonhoso.”

Imagem: reprodução do X 

No mesmo dia, Raffray publicou que sua conta X ultrapassou 20 mil seguidores e “agradeceu”: 

“Acabei de perceber que esta conta ultrapassa os 20.000 seguidores! Obrigado a todos pelo apoio. Agradeço também aos histéricos de todos os tipos que tentam me desestabilizar com polêmicas absurdas: publicidade garantida 👍🏻Amigos ou inimigos: eu rezo por vocês”.

  Imagem: reprodução do X

À versão francesa da revista Família Cristã, Matthieu Raffray negou qualquer intenção discriminatória em suas palavras, e defendeu que não apelou à discriminação. Ele afirmou se considerar cuidadoso ao abordar temas delicados como a homossexualidade. Além disso, o padre definiu sua posição: “Os atos homossexuais são pecado, mas acho que as pessoas não sabem mais o que é pecado. Denunciar um pecado não significa denunciar quem o comete”. 

Raffray menciona um vídeo anterior, “Podemos ser católicos e homossexuais?”, onde recebe Gaëtan Poisson, um autor que aborda a interseção da homossexualidade com a fé, para enfatizar seu compromisso com o respeito às lutas individuais e à dignidade de todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual.

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É verdade que a ministra de Igualdade da França Aurore Bergé denunciou o padre Raffray à Delegação Interministerial para a Luta contra o Racismo, o Antissemitismo e o Ódio Anti-LGBT (DILCRAH),, sob acusação de discurso de ódio contra pessoas homoafetivas, porém, Bereia classifica a notícia sobre o caso publicada no site evangélico Gospel Mais como enganosa

A chamada “Padre desperta ira de ministra ao afirmar que homossexualidade é ‘fraqueza pecaminosa’” reduz e desqualifica a atuação da ministra no seu papel público de defesa dos direitos de gênero e da diversidade como uma explosão de “ira”. É notório que a escolha de palavras em reportagens pode influenciar significativamente a percepção do público sobre os fatos. 

A reportagem do Gospel Mais utiliza estrategicamente o termo ‘ira’ para caracterizar a resposta da ministra às declarações do padre, uma escolha de palavras que não apenas amplifica a percepção de uma reação emocional, mas também parece buscar desqualificar a sua atuação legítima como representante governamental. Tal abordagem desvia a atenção da obrigação legal da ministra de proteger os direitos de grupos sociais vulneráveis, como a comunidade LGBTQIAP+, que são prioritários em sua agenda de políticas públicas. 

Ao enquadrar a resposta da ministra como ‘ira’, o site sugere um desvio na conduta esperada de um agente do governo, desconsiderando a natureza de sua responsabilidade em responder a discursos que podem ser classificados como desqualificantes para um grupo social sob sua proteção. Essa escolha editorial reflete não apenas um posicionamento sobre a situação específica, mas também levanta questões importantes sobre a representação midiática de figuras públicas e suas responsabilidades legais e éticas no exercício de suas funções.

No contexto religioso, a palavra ‘ira’ carrega um peso considerável, frequentemente associada a uma reprovação divina intensa e justa contra o pecado. Ao optar por esse termo, o Gospel Mais  enfatiza a gravidade da posição da ministra em relação às declarações do padre, ainda que a própria ministra estivesse agindo sob o mandato de sua função.. 

  Por fim, a reportagem do Gospel Mais, ao utilizar o termo ‘pecaminoso’ em adição à palavra ‘fraqueza’ para descrever a homossexualidade, conforme citado pelo padre, não só amplia a carga negativa da declaração original, mas também insere um peso teológico significativo, profundamente enraizado nas crenças religiosas. Essa escolha editorial não apenas distorce a mensagem inicial do sacerdote, que se limitou a utilizar o termo ‘fraqueza’, causadora de ‘pecados’, mas também serve para intensificar a desaprovação moral dentro de um contexto religioso, o que pode  agravar a estigmatização da comunidade LGBTQIAP+. Nesse sentido, Bereia alerta leitores e leitoras para atentarem para estes casos em que o que é apresentado como notícia e deveria se ater ao relato de ocorrências, oferece, de fato,  uma interpretação opinativa.

Referências de checagem:

Instituto Bom Pastor

https://decouvrirlamessetraditionnelle.com/es/instituto-del-buen-pastor Acesso em 08 ABR 24

Christian Post

https://www.christianpost.com/news/france-may-prosecute-priest-who-called-homosexuality-a-weakness.html Acesso em 08 ABR 24

Le Journal Du Dimanche

https://www.lejdd.fr/societe/le-pretre-catholique-matthieu-raffray-dans-le-viseur-du-gouvernement-143347 Acesso em 08 ABR 24

Catalogue BNF – Internet Archive

https://web.archive.org/web/20220529154252/https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb1782896 Acesso em 08 ABR 24

Instagram. 

https://www.instagram.com/fraiches/p/C4pp9I2Mor0/?img_index=1 Acesso em 08 ABR 24

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/deputada-catolica-repercute-afirmacao-do-papa-sobre-ideologia-de-genero-ameacar-a-humanidade/  Acesso em 09 ABR 24

Hetairie

https://www.hetairie.com/plusgrandcombat/ Acesso em 08 ABR 24

Renaissance Catholique

https://renaissancecatholique.fr/lassociation/ Acesso em 09 ABR 24

DILCRAH 

https://www.cheminsdememoire.gouv.fr/en/report-dilcrah Acesso em 09 ABR 24

Twitter. 

https://twitter.com/auroreberge/status/1770464915959976022 Acesso em 09 ABR 24

https://twitter.com/DILCRAH/status/1770470302272589857 Acesso em 09 ABR 24

Família Cristã https://www.famillechretienne.fr/42504/article/cest-la-morale-chretienne-qui-est-attaquee-labbe-raffray-poursuivi-par-le# Acesso em 09 ABR 24 

Youtube

https://www.youtube.com/watch?v=J_G1uYD9l4M Acesso em 09 ABR 24 

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Foto de capa: YouTube