“Ideologia de gênero”: estratégia discursiva e arma política

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Teresinha Ferreira Leite Matos

A “ideologia de gênero” é um inimigo criado pelo Vaticano? A “ideologia de gênero” é uma invenção? Ela deve ser objeto de análise mais aprofundada? A partir da pergunta “Qual o lugar da “ideologia de gênero” no cenário (neo) conservador?” foram suscitadas, durante o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina, essas e outras perguntas. O objetivo deste texto é localizar onde e quando o termo surgiu e que trajetórias foram traçadas em seu processo de disseminação.

“Ideologia de gênero” é uma “invenção” da Igreja Católica e faz parte da estratégia de negar os avanços dos movimentos feministas e LGBTQ+, explicitados no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos e casamento igualitário. Parece que a “ideologia de gênero” se tornou um fenômeno em si e carece ser estudada mais profundamente. O constructo se traduz em estratégia discursiva considerada precária epistemologicamente, mas eficaz na formação da opinião pública (Lionço, 2020), e também com eficácia política, vide o presidente Jair Bolsonaro que foi eleito em 2018 usando, dentre outras bandeiras ultraconservadoras, o combate à “ideologia de gênero”.

A “ideologia de gênero” é vista como categoria conservadora produzida nos muros do Vaticano, durante os papados de João Paulo II e Bento XVI. Inventaram um “inimigo” com o propósito de restaurar a ordem moral calcada nos valores tradicionais, que imaginam ameaçada. Embora os conceitos por trás da ideia de “ideologia de gênero” sigam importantes no papado de Francisco, a maneira como suas falas reverberam na opinião pública traz complexidades para a análise.

Reprodução, Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp

O Padre Paulo Ricardo, considerado, segundo as pesquisas do GREPO, um mediador cultural para o tema que ajuda a disseminar o termo no Brasil, quando analisa a questão nunca cita o Papa Francisco, reforçando a personalidade ambígua do papa atual que se nega a abençoar os casais homossexuais, mas é reconhecido como progressista por boa parte da sociedade brasileira.

Os documentos da Igreja Católica do papado de Francisco não utilizam o termo “ideologia de gênero” em português, como aponta levantamento feito na pesquisa “Feminismo e religião: uma análise do pensamento do Papa Francisco sobre a “ideologia de gênero”, objeto do seminário. Curiosamente são referenciados apenas no inglês termos gender ou gender theory. Mas nas redes sociais e blogs, católicos conservadores e padres – além dos políticos e a mídia em geral – falam amplamente dessa “ideologia de gênero”. Nos 25 vídeos produzidos pelo canal do YouTube do Padre Paulo Ricardo (Christo Nihil Praeponere), analisados na pesquisa, entre 2012 e 2020, 15 registram o descritor “ideologia de gênero”.

Desde a década de 1990, a Igreja Católica começou a atuar fortemente por meio das suas lideranças leigas conservadoras em conferências internacionais para que o termo gênero fosse retirado dos documentos oficiais da ONU. Dale O´Leary, ativista católica norte-americana, iniciou essa “guerra” semântica com sua obra “Gender Agenda”, lida e reproduzida por ativistas antigênero no mundo todo. Essa atuação antigênero, também abraçada pelos evangélicos neopentecostais, foi tomando corpo nos países do Norte e nas primeiras décadas do século XXI em países do Sul Global, especialmente na América Latina. Ela chega ao grande público por meio das redes sociais pelas palavras e vozes de padres, pastores e políticos ultraconservadores. Os pastores a “emprestaram” dos católicos e hoje estão entre os principais articuladores do termo na arena pública.

No Brasil, a campanha antigênero ganhou relevância em 2014 e foi impulsionada pelas discussões do Plano Nacional de Educação. Ele foi debatido na Câmara Federal e, depois, em estados e municípios brasileiros. Essa “cruzada santa” continua hoje nos legislativos municipais. Vereadores eleitos em 2020 com a bandeira das campanhas antigênero ameaçam fechar escolas que usem o pronome neutro com pessoas não-binárias. Onze dos 63 vereadores apoiados por Bolsonaro fizeram propostas contra a linguagem inclusiva (0 Globo, março de 2021).

Dessa forma, podemos começar a responder a algumas das perguntas colocadas no início do texto. Sim, a “ideologia de gênero” é uma invenção do Vaticano, um conceito elaborado para taxar de “ideológico” as teorias de gênero e a defesa de direitos. É um conceito também eficaz, que passou a fazer parte do vocabulário e das estratégias de diferentes setores conservadores, como padres e leigos católicos, evangélicos e políticos. O aprofundamento da análise do termo, assim, pode ajudar a entender as estratégias do campo conservador nos países da América Latina.

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Referências

Caetano, Guilherme. “Vereadores eleitos alinhados ao presidente priorizam ‘ideologia de gênero’ nas câmaras municipais. Com foco no combate à pandemia, projetos não avançam”. O Globo, 28/03/2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/vereadores-eleitos-alinhados-ao-presidente-priorizamideologia-de-genero-nas-camaras-municipais-24944513

Lionço, Tatiana (2020). “’Ideologia de Gênero’ como elemento da retórica conspiratória do ‘globalismo’”. Em: Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp, pp. 373-392.

Seminário Internacional “Catolicismos, direitas cristas e “ideologia de gênero”, março/abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m0fG3Wbh1Dk&t=2831shttps://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=2495s

 Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores. “Religious Patterns of Neoconservatism in Latin America”. POLITICS & GENDER 16(1) 2020.

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Teresinha Ferreira Leite Matos, jornalista, mestra em Ciência da Religião pela PUC/SP e integrante do Grepo.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03 e 01/04/2021, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a terceira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LARUNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Folha PE. Foto: Jarbas Araújo/Alesp (Reprodução)

Neoconservadorismo, o filho pródigo que retorna com novas roupas

Parceria com Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp – Por: Gisele Cristina Pereira

O neoconservadorismo, que podemos desde já assumir como uma terminologia que guarda extensa pluralidade, se tornou elemento central para a compreensão da política no Brasil, assim como em muitos países da América Latina, nas últimas décadas. Não é possível entender a política, os processos democráticos, assim como o que vem sendo chamado de desdemocratização – processo de enfraquecimento da democracia “[…]não como rupturas drásticas (golpe), mas instituições que são minadas interiormente ora com a retirada de dispositivos jurídicos ora com práticas caluniosas travestidas de argumento” (Teixeira e Carranza, 2021) – sem considerar o papel desempenhado pelos conservadorismos na arena política. Dentro desse espectro multifacetado jogam especial papel as direitas cristãs, objeto de análise do seminário do qual partem as reflexões desta crônica.

Diferentes ciências sociais e humanas têm se debruçado na investigação deste fenômeno compreendido por alguns como neoconservadorismo, assumindo-se pelo prefixo neo a existência de uma certa particularidade em seu conteúdo e forma, ainda que se reconheça que não se trate de uma novidade completa. Se, por um lado, há muitas características e estruturas de movimentos conservadores precedentes, há, por outro, características e formas novas que permitem falar de um conservadorismo de tipo novo (Biroli, Machado, Vaggione, 2020).

Durante o Seminário, um dos principais pontos levantados pelas/os interlocutoras/es foi o questionamento sobre o termo ascensão ao se referir às direitas religiosas e cristãs, suscitado pela primeira pergunta-guia: 1. Que fatores, em geral, considera relevantes para explicar a ascensão das direitas religiosas e cristãs na América Latina?

Questionado no primeiro dia por Juan Marco Vaggione e recuperado por Flávia Biroli no segundo, o termo ascensão suscitou interrogações sobre sua pertinência para se referir aos contextos da América Latina, marcados por ditaduras civis-militares que tiveram, dentre os segmentos da sociedade civil, o apoio das direitas cristãs. No Brasil, a Marcha com Deus pela Família é prova contundente disso.

Mulheres com um rosário nas mãos na Marcha da Família com Deus pela Liberdade no Rio de Janeiro, em 1964. Fonte: Memorial da Democracia

As falas conduzem a um entendimento comum de que o conservadorismo não seria um estranho que bate à porta de repente surpreendendo os “moradores” que ali vivem. Antes, se apresenta como integrante familiar, um elemento atávico que, ainda que cause desconforto em alguns, é recepcionado com regozijo pelo pai. Como um filho que retorna ao seu lar, o conservadorismo não deixou de existir, sempre preservado como viva memória no cotidiano social e político.

Biroli afirma justamente que esses atores conservadores não são estranhos, mas parte do sistema político. Eles se movem por diferentes plataformas, numa relação que caracteriza como de incentivos e constrangimentos. Na mesma direção, Maria Eugênia Patiño pontua que também não visualiza no México uma ascensão no sentido estrito. Identifica no combate, promovido desde a teologia e a doutrina católicas, entre a “cultura da vida” e a “cultura da morte”, raízes do que mais adiante se denominará como “ideologia de gênero”.

Há, portanto, uma coincidência na compreensão de que não há propriamente uma ascensão de algo absolutamente novo, mas uma nova “aparição” que guarda semelhanças e por vezes recupera os “fantasmas” criados e alimentados anteriormente, como o do perigo comunista que assombrava a ordem social e moral e cuja ameaça justificava a necessidade de uma ditadura para contê-lo.

Mas, como já afirmava Heráclito, não é possível se banhar duas vezes no mesmo rio, isso porque tanto o rio quanto quem nele se banha está em constante transformação. A metáfora de Heráclito pode ser relacionada com a parábola do filho pródigo e sua alusão ao fenômeno analisado aqui. Mesmo podendo reconhecer o filho em seu retorno, este não é inteiramente o mesmo, tampouco a casa que o recebe permaneceu incólume. O mesmo podemos dizer do conservadorismo que retoma sua proximidade ao poder em muitos países hoje e que mantém estruturalmente muitas expressões anteriores, mas vem trajado com uma nova “roupagem” caracterizada por novas formas de se apresentar e se relacionar no espaço público, novas estratégias em um contexto também distinto do anterior.

Mas o que exatamente de novo traz este neoconservadorismo? Ainda, o que há de semelhante e de particular nos diferentes contextos em que ele se desenvolve?

Flávia Biroli identifica, sobretudo no caso brasileiro, mudanças nos padrões de atuação e de composição das alianças. Uma das características deste neoconservadorismo seria sua atuação em contextos democráticos, nos quais são estabelecidas alianças improváveis dentro e fora do espectro religioso e em campos divergentes. Caso das coalizões que conformaram os governos petistas e da qual fizeram parte atores que hoje se assumem como conservadores e de direita. A Bancada religiosa do Congresso brasileiro se desenvolveu justamente durante a vigência do Projeto Democrático Popular petista, contribuindo posteriormente para sua ruína.

Outra particularidade da atual manifestação do conservadorismo – apresentada por Olívia Bandeira a partir das reflexões acumuladas pela pesquisa do GREPO – é o papel desempenhado pelas mídias como estratégia e como arena das disputas políticas. Um elemento importante a ser considerado a esse respeito são as mudanças nas últimas décadas no sistema de mídias a partir da disseminação da internet e extensão das grandes plataformas digitais. No atual modelo, lembra Olívia, a economia é movimentada a partir dos dados pessoais pelos algoritmos das plataformas digitais, favorecendo a circulação de discursos de ódio e grandes performances sensacionalistas.

Também no caso mexicano, as marchas da família fazem uso dessas grandes plataformas digitais possibilitando um alcance que a incidência no espaço público físico, e mesmo sua divulgação pelos meios de comunicação tradicionais, não permitiria.

Outra convergência entre as análises é a compreensão do neoconservadorismo enquanto forma de reação de atores coletivos políticos e religiosos frente as conquistas de direitos sexuais e reprodutivos nas últimas décadas. A reflexão também converge em torno da não exclusividade enquanto dispositivo das direitas, menos ainda das direitas religiosas.

Maria Eugênia frisa o quanto nossas realidades na América Latina se cruzam nesse sentido, provando o evidente caráter transnacional do neoconservadorismo. A partir da investigação dos movimentos da sociedade civil do México que se articulam contra o matrimônio igualitário, observa uma coincidência temporal no surgimento de movimentos conservadores na região. Apesar de razões diferentes que os motivaram, alguns elementos os vinculam.

A Frente Nacional pela Família do México surge como uma reação à proposta de matrimônio igualitário apresentada pelo presidente Enrique Peña Nieto, em 2016. Neste mesmo ano ganha força a articulação Con mis hijos no te metas iniciada no Peru e cujo cerne é a oposição à chamada “ideologia de gênero” nos conteúdos das escolas de educação básica. Também neste ano se deu a Ola celeste na Argentina, grupos que se articulavam em reação à Ola verde, como é caracterizada a mobilização da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto. Podemos acrescentar ainda o caso da Colômbia, também em 2016, onde o tema da ideologia de gênero foi mobilizado por grupos que se opunham ao acordo de paz com as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), caso tratado no primeiro dia por Sandra Mazo.

Manifestantes contra a legalização do aborto protestam na Argentina em 2020. Foto: Reuters

Naquele momento o Brasil vivia o impeachment de Dilma Rousseff, para o qual foi mobilizado o capital moral acumulado anteriormente com as discussões em torno da meta de igualdade de gênero no PNE (Plano Nacional de Educação) em 2014. Lembremos que a “família” foi um dos termos mais evocados nas justificativas daqueles que votaram pelo impedimento da então presidenta. Assim como teve forte presença nas eleições de 2018 que levaram Bolsonaro e sua agenda moral ao cargo de presidente da República.

Patiño interroga por que esses grupos opositores aos avanços dos movimentos feministas e LGBTI+ aparecem no espaço público de forma tão rápida? Essa rapidez teria a ver, segundo ela, justamente com essas estruturas preexistentes e que são acionadas prontamente em reação a direitos percebidos como ameaças. A categoria família, por exemplo, tem sido um núcleo fundamental de mobilização desses atores.

Se, como se demonstrou e tenho acordo, se trata antes de uma retomada do que a ascensão de algo absolutamente novo, de todo modo a pergunta inicial segue sendo vigente, ainda que reformulada: quais fatores são relevantes para explicar este ressurgimento do conservadorismo enquanto expressão política hegemônica quase simultaneamente em diferentes países da América Latina e no qual as direitas cristãs têm papel central?

Sem dúvida encontraremos na história compartilhada de colonização, na qual a Igreja católica, atrelada às respectivas coroas ibéricas, foi corresponsável pelo ordenamento jurídico, político e social, elementos que ajudam nessa compreensão. Também os contextos particulares apresentados nos fornecem valiosas pistas sobre a atuação e formas singulares ou similares que assumem em cada um dos países latino-americanos. Mas, parece que apenas os processos políticos olhados em si mesmos em sua articulação com o religioso não explicam essas coincidências que extrapolam a América Latina e se fazem perceber também no caso dos Estados Unidos e de alguns países europeus.

Se, como aparenta, os neoconservadorismos, em suas diferentes nuances, é ao mesmo tempo causa e efeito de processos de desdemocratização na região, o que explica essa dialética se manifestar de tal maneira em diferentes países, contextos sociais e políticos? O que os unifica para além da forma aparente com a qual se apresentam, mas das causas mesmas que os favorecem ou produzem? Retomando a analogia do título, podemos perguntar a este neoconservadorismo quais foram as razões que o trouxeram de volta ao centro, neste exato momento e com esta roupagem particular.

À guisa de respostas, novas interrogações são fomentadas para a compreensão deste fenômeno, seus antecedentes, causas estruturais, estratégias, modos de operar e relações que estabelece entre as diferentes esferas da arena pública.

Referências:

BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo. Boitempo, 2020.

CARRANZA, Brenda; Teixeira, Ana Claudia Ultraconservadores e a Campanha da Fraternidade: lógica de confronto. In: Le Monde Diplomatique Brasil, 04 de março, 2021. https://diplomatique.org.br/ultraconservadores-e-campanha-da-fraternidade-logica-do-confronto/ Consultado 31.05. 2021.

GREPO, Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Seminário Internacional: Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. 31 de março de 2021 e 01 de maio de 2021. 2º dia. Youtube. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FSz17pFHgik&t=5602s. Acesso em 11 maio de 2021.

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Gisele Cristina Pereira é mestranda em Ciência da Religião pela PUC-SP, onde também integra o grupo de pesquisa GREPO – Gênero Religião e Política; possui especialização em Ciência da Religião pela mesma universidade. É bacharel e licenciada em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir e professora de História da Educação Básica.

O GREPO – Grupo de Estudos de Gênero, Religião e Política da PUC-SP realizou, nos dias 31/03/21 e 01/04/21, o Seminário Internacional Catolicismos, direitas cristãs e ideologia de gênero na América Latina. Esta crônica é a primeira de uma série que apresenta livres reflexões de suas autoras sobre os debates que reuniram pesquisadores de diferentes países da América Latina no seminário: Brenda Carranza (LAR-UNICAMP, Brasil), Flávia Biroli (UnB, Brasil), Juan Marco Vaggione (Universidade de Córdoba, Argentina), Lucas Bulgarelli (Comissão da Diversidade OAB/SP, Brasil), Maria das Dores Campos Machado (UFRJ, Brasil), Maria Eugenia Patiño (Universidade Aguas Calientes, México), Maria José Rosado Nunes (PUC-SP, Brasil), Olívia Bandeira (GREPO/PUC-SP e LAR/Unicamp, Brasil) e Sandra Mazo (Católicas pelo Direito de Decidir, Colômbia).

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Foto de Capa: Memorial da Democracia

Portal gospel omite intolerância e homofobia de líder religioso para sugerir perseguição a cristãos

O portal de notícias Gospel Mais publicou matéria que afirma que o canal do bispo nigeriano T.B. Joshua no Youtube teria sido excluído da plataforma por “supostamente” pregar a “cura gay”. O religioso lidera a Igreja Sinagoga de Todas as Nações (SCOAN, sigla em inglês).

O vídeo que levou à exclusão

Diferente do que a matéria do Gospel Mais afirma, o vídeo excluído pela plataforma digital, de fato, continha a pregação da “cura gay”. Em um primeiro momento, Joshua aparece dando tapas em duas mulheres lésbicas que atendiam ao culto de forma a fazerem-nas cair “sob uma ação espiritual”. Outros membros da igreja também ajudam a derrubar as mulheres que tentam se levantar. Em seguida, elas ficam deitadas por um momento e depois são levantadas e recebem um abraço do religioso.

No segundo momento do vídeo, Mary Okoye, uma das mulheres que passaram pela “libertação do demônio”,  conta seu testemunho. Conforme aparece no primeiro momento do vídeo, Okoye diz que Joshua explicou que ela estava sob a ação de um espírito de mulher. Esse espírito teria feito com que, desde criança, Okoye quisesse ter traços masculinos e se casar com outra mulher quando adulta. Ela também diz que o espírito prejudicava outras áreas da sua vida, como os estudos. Questionada pelo religioso por quem ela sente afeição agora, Okoye responde que agora sentia atração por homens.

De acordo com a BBC, uma das referências citadas pelo Gospel Mais, a decisão do Youtube foi tomada depois da organização openDemocracy, com sede no Reino Unido, prestar queixa pelo conteúdo dos vídeos. 

A matéria da openDemocracy diz que o mesmo tipo de exorcismo foi publicado pelo menos outras sete vezes diferentes antes entre 2016 e 2020. O texto reproduz a justificativa do Youtube para o fechamento do canal. “As Diretrizes da comunidade do YouTube proíbem discurso de ódio e removemos vídeos sinalizados e comentários que violam essas políticas. Nesse caso, encerramos o canal“. A openDemocracy argumenta que o vídeo viola as políticas da plataforma na seção de discurso de ódio, mencionando este trecho: “Afirmar que pessoas ou grupos são fisicamente ou mentalmente inferiores, deficientes ou doentes com base nas características mencionadas acima. Isso inclui declarações de que um grupo é problemático ou menos desenvolvido do que outro em termos de inteligência e capacidade.”

Bereia já verificou outro caso de exclusão de canal religioso por quebra das regras de diretrizes de comunidades.

Apesar do bloqueio, em novo vídeo de uma reunião da SCOAN, Joshua pediu orações pelo Youtube. “Vejam eles como amigos”, afirmou. Ele argumentou que, se não fosse pela plataforma, muitas pessoas não teriam conhecido sua igreja. A matéria da BBC informa que o religioso vai recorrer.

Quem é T.B. Joshua

T. B. Joshua é pastor e televangelista da Sinagoga de Cristo Pelas Nações, em Lagos, maior cidade da Nigéria, sendo um dos pregadores mais influentes do continente africano. Dono da TV Emanuel, com transmissão de cultos 24h, ganhou grande destaque pelas promessas de cura e milagres, relatando ter realizado cura de câncer, HIV/AIDS, esterilidade, ressurreição de mortos e “reversão de sexualidade”. Segundo o site oficial, a sede da igreja reúne em média 15 mil pessoas por culto e suas pregações também têm grande alcance pela internet, reunindo cinco milhões de seguidores no Facebook e 585 mil no Instagram. Antes de ser derrubado, seu canal no YouTube contava com 1,8 milhão de assinantes

Cura Gay

Desde 1990, a Organização Mundial da Saúde deixou de tratar a homossexualidade como doença, um passo importante para a compreensão desta condição humana como identidade, que não necessita de cura. A tentativa de terapias de reversão de sexualidade, conhecidas popularmente como “cura gay”, são procedimentos de tentativas de mudança na orientação sexual por meio de métodos de tortura psicológica e são proibidos pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1999.

O procedimento surgiu nos Estados Unidos, em movimentos como o Instituto Exodus, fundado em 1976, em Orlando, que oferecem tratamento para cristãos que querem se livrar de inclinações sexuais “indesejadas”. Em 2013, o fundador Alan Chambers anunciou o fechamento do instituto e pediu perdão público pelas pessoas LGBTQIA+ feridas pelos procedimentos realizados em 37 anos de funcionamento. “Por muito tempo, estivemos aprisionados em uma cosmovisão que não honra nossos irmãos, nem é bíblica.”, afirmou. Apesar disto, o Exodus Brasil permanece comouma missão cristã interdenominacional com filiais em território nacional e realiza congressos anuais e tem como um dos valores “proclamar a mensagem de redenção da sexualidade”. As narrativas de que a sexualidade de pessoas LGBTQIA+ pode ser mudada é comum em discursos evangélicos e frequentemente ouvida em igrejas.

O artigo “Cura Gay? Debates parlamentares sobre a (des)patologização da homossexualidade” de Maria Clara da Gama faz uma revisão das tentativas de parlamentares legislarem contra a resolução 01/99 do CFP. A primeira tentativa, por meio do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 1640/2009, recebeu parecer que rejeitava a proposta. O PDC foi arquivado em dezembro de 2010. Outro Projeto de Decreto Legislativo (PDC 234/2011) tramitou na legislatura seguinte. Apesar dessa proposta ter recebido um parecer favorável, ela terminou retirada de tramitação pelo próprio autor João Campos (PSDB/GO) que alegou não ter apoio do próprio partido para o PDC. Uma ação popular contra a norma do CFP chegou ao STF e foi extinta pelos ministros da 2ª Turma em maio de 2020, reafirmando a validade da resolução 01/99.

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Bereia conclui que a matéria do Gospel Mais é enganosa. O pastor é conhecido por realizar rituais de reversão de sexualidade e chegou a agredir mulheres lésbicas em cultos. Os vídeos foram excluídos por apresentarem discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+, violando diretrizes da plataforma YouTube. Nesse sentido, não há “suposição de pregação da cura gay”, como o portal gospel registra na reescrita da matéria da BBC que utiliza. O texto do Gospel Mais se coloca no conjunto de conteúdos religiosos, já identificados pelo Coletivo Bereia, que buscam induzir leitores e leitoras a crerem na existência de práticas de censura e de perseguição a cristãos e cristãs em casos de penalidades a lideranças religiosas e igrejas que praticam intolerância, como nesta situação de homofobia na Nigéria.

Referências

Emmanuel TV (Youtube), https://www.youtube.com/c/emmanueltv. Acesso em 19 de maio de 2021.

Cla6iQ Tv Worldwide (Youtube), https://youtu.be/6L2W77QFqNY. Acesso em 19 de maio de 2021.

BBC, https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56775734. Acesso em 19 de maio de 2021.

openDemocracy, https://www.opendemocracy.net/en/5050/youtube-closes-african-channel-promoting-televangelists-violent-conversion-therapy/. Acesso em 19 de maio de 2021.

Youtube, https://support.google.com/youtube/answer/2802168. Acesso em 19 de maio de 2021.

Youtube, https://support.google.com/youtube/answer/2801939#zippy=%2Coutros-tipos-de-conte%C3%BAdo-que-violam-a-pol%C3%ADtica. Acesso em 19 de maio de 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/canal-catolico-foi-excluido-por-espalhar-desinformacao-a-respeito-da-pandemia/. Acesso em 19 de maio de 2021.

Deraaco (Youtube), https://youtu.be/W4vqSrqxhGs. Acesso em 19 de maio de 2021.

Sinagoga de Cristo Pelas Nações. https://www.scoan.org/about/. Acesso em 20 de maio de 2021.

Conselho Federal de Psicologia, https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf. Acesso em 20 de maio de 2021.

G1, http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/06/grupo-dedicado-cura-gay-pede-desculpas-e-fecha-nos-eua.html. Acesso em 20 de maio de 2021. 

Exodus, https://www.exodus.org.br/. Acesso em 20 de maio de 2021. 

Scielo (Sexualidad, Salud y Sociedad – Rio de Janeiro), https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872019000100004. Acesso em 20 de maio de 2021.

Câmara Federal, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=147CC1F8B08B24C43FBE4895CBF09DDC.proposicoesWeb2?codteor=828201&filename=Tramitacao-PDC+1640/2009/. Acesso em 20 de maio de 2021.

Câmara Federal, https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=CB76BB29626C622D9FE78646C5642559.proposicoesWeb2?codteor=1050466&filename=Tramitacao-PDC+234/2011. Acesso em 20 de maio de 2021.

Jota, https://www.jota.info/stf/do-supremo/turma-do-stf-reafirma-validade-de-resolucao-do-cfp-contra-a-cura-gay-26052020/ Acesso em 20 de maio de 2021.

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Foto de Capa: T.B Joshua: BBC/AFP (Reprodução)

Campanha da Fraternidade Ecumênica é alvo de desinformação e ataques

A Campanha da Fraternidade que, em 2021, é ecumênica tem sido alvo de desinformação e ataques de grupos católicos fundamentalistas nos últimos dias. Os ataques têm como vítima principal a pastora luterana, secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) Romi Márcia Bencke, que está à frente da realização da campanha 2021. A pastora admitiu ter sofrido agressões pelas mídias sociais, o que tem gerado, inclusive denúncias judiciais. 

Romi Bencke acredita que a campanha de difamação contra ela também tenha motivação para além da religião. “Avalio que esses ataques têm muita relação com o pedido de impeachment que a gente protocolou na Câmara algumas semanas atrás”, diz a secretária-geral do CONIC. Ela foi uma das lideranças religiosas que esteve em Brasília para protocolar o documento que pede o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), assinado por um grupo de 380 líderes católicos e evangélicos. 

O que é a Campanha da Fraternidade Ecumênica? 

A Campanha da Fraternidade ocorre no cerne da Igreja Católica do Brasil há mais de 50 anos, sob responsabilidade da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Desde os anos 2000 a campanha é realizada de forma ecumênica, a cada cinco anos, e conduzida pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), reunindo diversas denominações cristãs e movimentos. 

A campanha de 2021 tem como tema “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, com o  objetivo principal: “Através do diálogo amoroso e do testemunho da unidade na diversidade, inspirados e inspiradas no amor de Cristo, convidar comunidades de fé e pessoas de boa vontade para pensar, avaliar e identificar caminhos para a superação das polarizações e das violências que marcam o mundo atual”. 

Em 2021, participam da campanha, organizada pelo CONIC, a Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da CNBB; Aliança de Batistas no Brasil; Igreja Episcopal Anglicana; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; Presbiteriana Unida; Sirian Ortodoxa de Antioquia; Igreja Betesda (igreja convidada); e CESEEP, organismo ecumênico. O Papa Francisco enviou uma mensagem em apoio à CFE 2021 bem o secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas.

Desinformação sobre a CFE e ataques à coordenação 

Entre os vários conteúdos de ataque à CFE 2021 e à coordenação da Pastora Romi Bencke e da CNBB, está um vídeos de grande repercussão, publicado pelo pregador e influenciador católico Anderson Reis. As declarações de Anderson Reis em seu canal do Youtube disseminam desinformação sobre o tema. 

Os ataques à pastora Romi Márcia Bencke e à CNBB se baseiam em afirmações falsas. No vídeo, o autor afirma:

Essa pastora é a favor do aborto, feminista e a favor da ideologia de gênero. Isso é uma agenda que vem sendo imposta para nós e depois dessa pandemia avançou com uma velocidade supersônica. E o dever da igreja que deveria ser uma resistência profunda contra essas trevas do quinto dos infernos está permitindo no Brasil um documento cuja alma desse documento é a favor de tudo isso

Anderson Reis

“Essa pastora é a favor do aborto” diz o influenciador aos 0:43 segundos do vídeo. Anderson Reis realiza aqui prática comum na desinformação, que é mudar o contexto de declarações e favorecer interpretações rasas do conteúdo. 

A pastora Romi Márcia Bencke, registra sua posição sobre o tema no artigo para a Open Society Foundation: é a favor da legalização do aborto, o que diz respeito a uma posição distinta de ser a favor do aborto.

A legalização do aborto é a existência de uma legislação que ampare a mulher que opte por abortar. Envolve acompanhamento psicológico das gestantes, condições específicas para seu cumprimento, e tem um papel relevante no combate às clínicas clandestinas.

Um estudo publicado em 2013, por Karla Ferraz dos Anjos, Vanessa Cruz Santos, Raquel Souzas e Benedito Gonçalves Eugênio, expõe a realidade das mulheres que realizam abortos clandestinos: tem maiores taxas de mortalidade, se encontram desamparadas e geram custos sociais e econômicos para os sistemas de saúde do país. Outro estudo, de Wendell Ferrari e Simone Peres, mostra como a falta de amparo leva a tomadas de decisão trágicas entre jovens que recorrem ao aborto clandestino.

Desta forma, ser a favor da legalização do aborto é se colocar contra o aborto clandestino, e não a favor de que se aborte. A questão é recorrente em debates feministas e busca esclarecer essa diferença primordial entre o direito a se tomar uma atitude e o apoio à atitude.

“O aborto não é um tema bíblico. Como apontou a Pra. Lusmarina Campos Garcia em audiência ao STF existem apenas dois textos no Primeiro Testamento que fazem referência à prática do aborto. O primeiro, em Êxodo 21:22- 23, determina que se uma mulher, por estar envolvida na briga entre o seu marido e outro homem, for ferida e abortar, o agressor deve pagar uma indenização para o marido. Isto significa que, à época, a perda do feto em decorrência de uma agressão sofrida não era considerada grave e passível de penalidade maior, uma vez que o feto não era considerado um “ser vivo”, diz a pastora Romi Bencke no seu artigo.

A segunda situação é ainda mais marcante: “Números 5:11-34, que relata um aborto ritual praticado pelo sacerdote.  Se a mulher abortasse estava comprovado que ela tinha sido infiel e o marido podia puni-la, inclusive com a morte por apedrejamento. Ressalte-se que a punição era por causa da infidelidade e não por causa do aborto realizado”, conclui a pastora, destacando que o debate em torno do aborto comumente se pauta pelo mandamento “não matarás”. “Como pode-se ver, não era considerado vida”, conclui.

Anderson Reis usou de um conteúdo descontextualizado em relação à pastora Romi Bencke para agredi-la, atacando também a CFE. 

O fantasma da ideologia de gênero

Anderson Reis também acusa a CFE 2021 de ser a favor da falaciosa “ideologia de gênero”. Ao acessar o texto base da campanha, Bereia verificou que a palavra “gênero” aparece três vezes no documento, nos itens 67 e 125, destacando a questão da violência contra a mulher:

“Os dados nos mostram quem são as pessoas atingidas pelo sistema de violência. As mulheres, em especial as negras e indígenas, são impactadas em todas as dimensões da sua existência. Observar esta realidade evidencia a necessidade de se discutir as questões de gênero, não se limitando à igualdade entre os sexos, mas, compreendendo que a libertação das mulheres da situação histórica de opressão passa pela discussão da propriedade privada, da divisão sexual do trabalho, da laicidade do Estado e da Teologia quando impõe um patriarcado como modelo divino de hierarquia social. Além disso, é importante salientar que as relações sociais de classe, de gênero, de raça, de etnia estão historicamente interligadas.”

“(…) Efésios (2,1-10) alerta para a necessidade premente de se aceitar plenamente as pessoas, que são diferentes, e ver nas diferenças a riqueza do corpo de Cristo. Não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero.” 

Texto-base da CFE

O texto também se manifesta contra a violência contra pessoas LGBTQI+ no item 68:

“Outro grupo social que sofre as consequências da política estruturada na violência e na criação de inimigos, é a população LGBTQI+. O já citado Atlas da Violência de 2020, mostra que o número de denúncias de violências sofridas pela população LGBTQI+ registradas no Dique 100 no ano de 2018 foi de 1685 casos. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia apresentados no Atlas da Violência 2020, no ano de 2018, 420 pessoas LGBTQI+ foram assassinadas, destas 164 eram pessoas trans. Percebe-se que em 2011 foram registrados 5 homicídios de pessoas LGBTQI+. Seis anos depois, em 2017, este número aumentou para 193 casos. O aumento no número de homicídio de pessoas LGBTQI+, entre 2016 e 2017, foi de 127%. Estes homicídios são efeitos do discurso de ódio, do fundamentalismo religioso, de vozes contra o reconhecimento dos direitos das populações LGBTQI+ e de outros grupos perseguidos e vulneráveis.”

Texto-base da CFE

A defesa da vida de mulheres e da população LGBTQI+ é relacionada, pelo influenciador católico, como uma “ideologia” em sentido negativo, sendo, portanto, desqualificada.

Bereia já publicou em verificação anterior sobre o fantasma da “ideologia de gênero”, termo falacioso que é objeto de muita desinformação, especialmente entre grupos religiosos. Como demonstra a matéria, líderes políticos e outros grupos de tendência conservadora têm se apropriado dessa pauta para ganhar adesão política, por meio de pânico moral

Consultada por Bereia, a coordenadora nacional do movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG) professora Valéria Vilhena explica que não existe e nunca existiu uma “ideologia de gênero”. “Essa narrativa foi construída para se opor aos direitos da mulher e da população LGBT. Eles constroem esse discurso para mais uma vez se posicionarem e reforçarem a negação da dignidade humana. Essa é a questão. Porque não existe uma “ideologia de gênero” – algo que se referem como uma “crença”, uma crença que se impõe para destruir a família (…) O que há é a construção de uma narrativa se utilizando do conceito “gênero” que vem dos estudos de gênero, mas que não tem nada a ver com o que dizem”, declara.

Texto-base não foi redigido por uma só pessoa

Outra acusação de Anderson Reis, no vídeo que circula nas mídias sociais, é que o texto-base da CFE 2021 é de autoria de uma só pessoa, não tendo a participação da CNBB.

O CONIC publicou nota desmentindo esta afirmação::

“A redação do Texto-Base foi resultado de um processo coletivo de construção, que iniciou no final de 2019. Teve participação direta de pessoas de diferentes áreas do conhecimento, em especial, sociologia, ciência política e teologia. A parte bíblica do Texto contou com a colaboração de biblistas de diferentes igrejas cristãs. Todas pessoas com profundo conhecimento bíblico. Depois de escrito, o Texto-Base foi amplamente discutido por uma Comissão Ecumênica formada por 8 pessoas, sendo 6 indicadas oficialmente pelas igrejas-membro do CONIC, uma igreja convidada e um organismo ecumênico.”

Nota do CONIC

A CNBB publicou nota em que ressalta que a CFE é marca e riqueza da Igreja Católica no Brasil e diz que lhe cabe “cuidar dela, melhorá-la sempre mais por meio do diálogo, assim como nos cabe cuidar da causa ecumênica, um ideal que se nos impõe”.

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Bereia conclui que as informações do vídeo sobre a CFE são enganosas e buscam gerar pânico moral em torno dos temas do aborto e do fantasma da “ideologia de gênero”. O texto-base da campanha, na verdade, defende o fim da violência contra mulheres e pessoas LGBTQI+. 

A Campanha da Fraternidade ocorre desde 1964 e tem como objetivo promover a união entre pessoas de diversas manifestações de fé, tendo apoio do próprio Papa Francisco e de outros líderes religiosos mundiais. 

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Matéria atualizada em 11 de março de 2021 às 9h14 para correção de dado sobre ano de início da CFE.

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Foto de capa: CONIC/Reprodução

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Referências 

Nota da CNBB, https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Nota-da-presid%C3%AAncia-da-CNBB-CFE-2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Nota do CONIC, https://conic.org.br/portal/noticias/3776-leia-a-integra-do-texto-base-da-campanha-da-fraternidade. Acesso em: 09 mar. 2021.

Artigo de Romi Márcia Bencke, https://www.cfemea.org.br/images/stories/publicacoes/laicidade_direito_aborto.pdf. Acesso em: 09 mar. 2021.

Entrevista de Romi Márcia Bencke, http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/606498-bolsonaro-sabe-jogar-muito-bem-com-a-religiao-entrevista-com-a-pastora-romi-bencke. Acesso em: 09 mar. 2021.

Texto-base da Campanha da Fraternidade Ecumênica, https://www.conic.org.br/portal/files/cf_texto_base_2021.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021.

Coletivo Bereia, https://coletivobereia.com.br/o-presidente-do-brasil-e-a-falaciosa-ideologia-de-genero/. Acesso em: 10 mar. 2021.