A fé na construção de chapas: o quadro da identidade confessional nas candidaturas a vice-prefeitos/as das capitais do Brasil
*Com colaboração de Pedro Vasconcellos.
A campanha eleitoral para prefeituras e câmaras de vereadores em todo o país começou em 16 de agosto. Desde então, Bereia tem acompanhado a forma como as religiões e temas religiosos são apresentados por cada candidato, para verificar se há uso de desinformação por parte dos políticos que almejam o cargo mais alto do executivo do município. Para tanto, foi produzido um levantamento das identidades confessionais dos candidatos a prefeitos e vice-prefeitos que concorrem às Prefeituras das 26 capitais brasileiras.
Na primeira matéria desta série de reportagens, foram apurados os perfis de candidatos a prefeito/a. Bereia identificou suas identidades confessionais e vínculos religiosos, além de situações em que esses candidatos foram checados por disseminar desinformação anteriormente. Nesta segunda etapa, vamos analisar os postulantes a vice-prefeitos/as das capitais dos estados do País, com os mesmos critérios.
O que faz um vice-prefeito/a?
O vice-prefeito/a atua como substituto/a imediato/a do/a prefeito/a, em caso de ausência ou impedimento, assumindo as funções e responsabilidades do cargo principal. No Brasil, esse representante é eleito através de voto direto juntamente com o prefeito, de modo vinculado (Constituição Federal Artigo 29, I e II). Assim como o titular do cargo, o/a vice-prefeito/a tem mandato de quatro anos, com possibilidade de reeleição para outro período de mesma duração.
Além de auxiliar a Prefeitura nas atividades administrativas e na execução das políticas públicas, o/a vice pode ser designado/a para coordenar projetos específicos ou áreas de interesse da administração municipal, como o cargo de secretário/a municipal. O/a vice é, em muitos momentos, um/a articulador/a político/a ao auxiliar o/a titular com o possível.
A escolha de vices acontece em convenções partidárias, para composição da chapa. Nesses eventos são decididas as candidaturas de cada partido e as coligações que serão formadas. As coligações podem influenciar na escolha de vices, com o intuito de formar chapas mistas com nomes de diferentes partidos.
A escolha dos vices também pode ser feita de forma estratégica, com o intuito de atrair votos de bases eleitorais que o candidato titular não consegue alcançar devido a diferenças ideológicas. A apuração dos dados realizada pelo Bereia destaca uma diversidade maior de identidades e vínculos religiosos entre candidatos a vice e do que entre os candidatos a titular das prefeituras das capitais brasileiras, o que ilustra esse movimento estratégico.
O perfil das candidaturas a vice-prefeitos/as
Conforme foi abordado na primeira etapa desta série de reportagens, houve um aumento considerável de candidaturas com vínculo religioso. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem (IPRI), da FSB Holding, as candidaturas com Identidades Religiosas aumentaram 225% nas últimas sete eleições municipais.
Em contrapartida, a presença de títulos religiosos e termos que denotam identidades confessionais está reduzida nestas eleições: de acordo com dados do Observatório da Religião e Interseccionalidades do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) a queda é de 22,04% em comparação ao pleito de 2020. A série histórica, iniciada em 2000 com 2.429 candidatos usando indicadores religiosos, registrou um crescimento expressivo até 2020, quando o número chegou a 10.117.
Em 2024, serão 7.940 os nomes de urna com alcunhas como “pastor” (41,36%), “pastora”, “irmão” (28,90), “irmã” (7,8%), “padre” (3%), “missionária” (2,1%) e “bispo” (1,2%). Também estarão presentes termos como “guru”, “ogum”, “abade”, “xangô”, “monge”, “rabino” e “xamã”, mas que não chegam a 0,1% do total. Apesar do amplo uso de indicadores religiosos, é importante destacar que nem todos os candidatos com identidade confessional expressão usam seu vínculo religioso em suas candidaturas.
O levantamento exclusivo, realizado pelo Bereia, sobre as candidaturas com identidade confessional para vice-prefeito nos municípios das 26 capitais brasileiras, em 2024 baseou-se em dados fornecidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Foram contabilizados 191 candidatos de diversos partidos. Assim como na primeira apuração, para identificar quais desses candidatos possuem uma identidade confessional, Bereia recorreu à base de dados do Instituto de Estudos da Religião (ISER), utilizada nas eleições de 2020 e 2022, para obter informações sobre candidaturas à reeleição e outras reapresentadas.
No caso das novas candidaturas, a equipe do Bereia seguiu a metodologia do ISER, examinando as mídias sociais dos candidatos para verificar como se autoidentificam e se expõem, ou não, uma confessionalidade, além de consultar outros registros públicos.
O levantamento aponta que 99 candidaturas a vice-prefeito/a nas capitais brasileiras expõem publicamente sua confissão religiosa. Dessas, 45 são católicas, 27 se identificam como cristãs de forma genérica, 19 são evangélicas e três têm vínculo com religiões de matriz africana. A diversidade religiosa entre os candidatos a vice-prefeito/a é maior, com nove confissões distintas identificadas, em comparação com as quatro predominantes entre os candidatos a prefeito/a.
Acesse a lista dos candidatos a vice com identidade religiosa
A equipe do Bereia observou que entre as candidaturas a vice-prefeitos/as há mais diversidade religiosa do que nas de prefeitos/as, porém a visibilidade na campanha é menor. Ao mesmo tempo, fica evidente algumas composições de chapa, em que vices são explicitamente apresentados como representantes de um grupo religioso, especialmente o evangélico.
É o caso da candidatura a vice-prefeita de Goiânia, da Tenente-Coronel Claudia da Silva Lira (MDB), na chapa do católico Sandro Mabel (União Brasil). Segundo o noticiário local, a candidata atende aos requisitos definidos por Mabel no início da pré-campanha, de que a vice fosse uma mulher evangélica.
Imagem: Página CBN Goiânia, 5/9/2024
Também o caso do Pastor Valcenir, candidato a vice-prefeito de Porto Velho, pelo União Brasil. O pastor da Igreja Missionária Catedral da Família usa o título religioso no nome de urna e aciona explicitamente a identidade evangélica na campanha na chapa de Mariana Carvalho (União Brasil), de confissão cristã não determinada.
Imagem: Instagram Pastor Valcenir
Bereia ouviu o doutor em Ciências Sociais e coordenador do Observatório Evangélico Vinícius do Valle sobre esta maior diversidade religiosa entre as candidaturas a vice-prefeitos/as. Ele ressalta a importância deste cargo na construção de alianças políticas, em todas as esferas do Poder Executivo (municipal, estadual e federal). “Pode ser, sim, uma tentativa de composição com denominações ou grupos religiosos. Mas é preciso ver se os candidatos são uma construção das comunidades religiosas ou se fazem parte dessa cultura brasileira de expressar a fé em público. Isso só se confirma ao observarmos a atuação dos candidatos na campanha”, concluiu.
Falsidades como estratégia política
Entre candidatos a vice-prefeitos de capitais do Brasil, dois foram checados pelo Bereia por propagarem desinformação. A candidata na chapa de Alexandre Ramagem (PL), à Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Índia Armelau (PL), que expõe sua imagem como cristã, na qualidade de deputada estadual (PL-RJ), em 2023, publicou vídeo com apelo ao pânico moral antiesquerdas, no contexto do processo eleitoral para Conselhos Tutelares. Em vídeo publicado no X, em 22 de setembro de 2023, Armelau fez campanha para candidaturas alinhadas à extrema direita. Na gravação, ela diz que é preciso “zunir a esquerda do conselho tutelar”, por considerar que a atuação deste grupo político tem interesse de desvirtuar a vida de crianças e jovens.
Bereia tem checado várias personagens públicas que fazem uso da tática de inventar um problema com o intuito de criar espaço para oferecer a solução, que neste caso foi apresentada como os candidatos a conselheiros tutelares ideais indicados por elas. Índia Armelau explorou ainda outra tática frequente que é a figura de um “inimigo”, no caso, “a esquerda”, de forma genérica, para contrapor campanhas opositoras e convencer por apoio a determinadas candidaturas.
Já o candidato Sérgio Queiroz (Partido Novo), vice na chapa que busca a Prefeitura de João Pessoa (PB), com Marcelo Queiroga (PL), ex-ministro da Saúde do governo de Jair Bolsonaro, foi checado pelo Bereia, em 2022, por produzir informação enganosa. Queiroz, que é pastor batista, e procurador da Fazenda Nacional, nomeado pelo governo de Jair Bolsonaro, quando era secretário de Proteção Global do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos daquele governo, afirmou à imprensa que “tomou para si” e conseguiu “resolver um dos mais enigmáticos casos da Paraíba e do Brasil, que se arrastava em cortes internacionais” – a reparação e indenização da família da sindicalista católica Margarida Maria Alves, assassinada pela repressão da ditadura militar.
Bereia checou que a reparação simbólica e a indenização, de fato, foram alcançadas pela família de Margarida Alves no primeiro ano do governo Bolsonaro, mas foram a culminância de ações de organizações de direitos humanos, juntamente com a Pastoral da Terra da Igreja Católica, que duraram mais de 20 anos. Foram as comissões de anistia e de indenizações em ação durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva, de Dilma Rousseff e de Michel Temer e a mediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que tornaram possível este ato de justiça, cumprido em protocolo pelo governo Bolsonaro. Ao contrário do que o então secretário do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos propagou, o governo Bolsonaro agiu para impedir novos processos de reparação e para negar os efeitos nefastos produzidos pelos governos militares na vida de centenas de pessoas, diretamente atingidas, e de todo o país.
Imagem e texto: PB Agora, 12/03/2022
Bereia levantou que há candidatos a vice-prefeitos que estão envolvidos em processos judiciais por conta da propagação de falsidades que interferem em temas de interesse público. Um deles é o candidato do PL a vice-prefeito de Curitiba (PR) Paulo Martins, católico, na chapa de Eduardo Pimentel (PSD). Martins é um dos investigados em uma das 16 ações ajuizadas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por ilegalidades na campanha eleitoral de 2022. A ação que cita Paulo Martins denuncia abuso de poder, abuso de autoridade e uso indevido de meios de comunicação (propagação de fake news). Paulo Martins é citado como um dos 43 perfis que interagiam com o perfil de Carlos Bolsonaro no Twitter, entre 13 de maio a 10 de outubro de 2022, responsáveis por mais de cem publicações com desinformação.
Bereia visitou as páginas do candidato nas mídias sociais e verificou que ele segue priorizando postagens sobre o mesmo tipo de conteúdo sobre o qual é investigado. Chama a atenção que Paulo Martins não ofereça nestas publicações material que faça menção a propostas de sua chapa para a população de Curitiba.
Outro é o candidato a vice-prefeito de Maceió, o senador licenciado Rodrigo Cunha (Podemos/AL), católico, na chapa do evangélico JHC (PL), que busca a reeleição. Eleito senador de Alagoas, em 2018, pelo PSDB, Rodrigo Cunha foi derrotado no pleito ao governo do Estado de Alagoas em 2022, pelo União Brasil. Naquele ano, ele foi condenado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas (TRE/AL) cinco vezes por propagação de falsidades em campanha. Em uma das sentenças o TRE/AL afirma que, à época, Rodrigo Cunha possuía aproximadamente 104 mil seguidores em seu perfil no Instagram, o que equivale a 4,75% do eleitorado total de Alagoas, “sendo capaz de afetar a escolha dos destinatários porquanto relaciona o fato inverídico diretamente aos pré-candidatos Paulo Dantas e Renan Calheiros”.
Imagem: A Notícia Alagoas, 30/09/2022
A fé na construção de candidaturas
O cientista social Vinícius do Valle também falou ao Bereia sobre o conjunto dos dados levantados nas matérias sobre a identidade religiosa dos candidatos das chapas para Prefeituras nas capitais brasileiras. Para ele, os números estão em sintonia com a cultura religiosa do país, onde cerca de 90% da população professa a fé cristã, com uma predominância de católicos e evangélicos. “É comum que candidatos expressem publicamente sua fé, assim como grande parte da população brasileira”, afirmou.
No entanto, o pesquisador do Observatório Evangélico alertou para a complexidade da relação entre religião e política. Para ele, a simples declaração de fé de um candidato não implica necessariamente em uma campanha voltada para alianças religiosas. “Nem sempre a fé professada é a base das propostas políticas. É preciso diferenciar a expressão de fé da construção de uma candidatura fundamentada em alianças religiosas”, observou.
Valle também ponderou que a exposição pública da identidade religiosa pode, sim, ser usada como estratégia para conquistar apoio de comunidades religiosas.
Referências:
Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2024-08/candidaturas-com-identidade-religiosa-crescem-225-em-24-anos Acesso 05 set 2024
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https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/comissao-da-anistia-deve-rever-casos-negados-partir-de-quarta-feira. Acesso em 05 set 2024
A Notícias Alagoas https://anoticiaalagoas.com.br/2022/09/30/mentiroso-compulsivo-rodrigo-cunha-e-condenado-pela-5a-vez-por-espalhar-informacoes-inexistentes/ Acesso 05 set 2024
CBN https://cbnmaceio.com.br/noticia/11118/pela-5ovez-cunha-e-condenado-pela-justica-por-espalhar-fake-news Acesso 05 set 2024
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https://www.tre-al.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/tre-reconhece-propaganda-antecipada-e-multa-rodrigo-cunha-por-divulgar-fatos-inveridicos-no-instagram Acesso 05 set 2024
UOL https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2023/06/24/filhos-zambelli-roger-do-ultraje-os-70-investigados-com-bolsonaronotse.htm Acesso 05 set 2024
TSE
https://consultaunificadapje.tse.jus.br/#/public/resultado/0601522-38.2022.6.00.0000 Acesso 05 set 2024
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CEBRAP https://cebrap.org.br/religiosos-nas-eleicoes-municipais/ Acesso 05 set 2024
Nexo Jornal
https://www.nexojornal.com.br/podcast/2020/03/31/o-negacionismo-do-governo-bolsonaro-sobre-o-golpe-de-64 Acesso 5 set 2024
CBN Goiânia
Capa: Severino Silva/Fotos Públicas