Do bom uso da razão cordial e sensível

Face à crise atual que afeta o planeta inteiro de forma perigosa, pois pode desembocar na Terceira Guerra Mundial e que poria em risco a biosfera e a vida humana, devemos resgatar o que poderia mudar o rumo da história.

Comungo da interpretação  que sustenta ser o atual estado do mundo a derivação  de, pelo menos,  duas grandes injustiças. A primeira,  social, com a geração, por um lado, de desigualdades sociais perversas e, por outro, uma acumulação de riqueza como jamais houve na história (a ponto de 8 pessoas (não empresas) deterem mais riqueza que mais da metade da população mundial). A outra é a injustiça ecológica: o planeta Terra com seus biomas está sendo, há séculos, depredado a ponto de que precisamos de mais de mais de uma Terra e meia para atender o consumo humano, especialmente dos países consumistas do Norte Global.

A reação de Gaia, a Terra, como Super-Organismo vivo, se mostra por uma gama significativa de vírus e pelo aquecimento crescente,  provavelmente irreversível, que causa tufões, ciclones e tornados altamente destrutivos, ameaçando a biodiversidade, crianças e idosos, incapazes de se adaptar e condenados a morrer.

Retomo o tema: esta tragédia ecossocial é fruto de um tipo de razão que degenerou em racionalismo (despotismo da razão) e se traduziu em técnicas, por um lado benéficas à nossa vida moderna e, por outro, tão mortais que podem destruir tudo o que temos construído em milênios de história, ameaçando as bases ecológicas que sustentam o sistema-vida.

Sua origem se dá no Ocidente, lá no passado, pelo século Vº a.C, na virada do pensamento mítico para o pensamento racional dos mestres gregos. Inicialmente mantinha-se grande equilíbrio entre os principais elementos existenciais: do Pathos (capacidade de sentir), do  Logos (forma de compreender o real), o Ethos (nossa forma de bem viver e conviver), do Eros (nossa potência de vida) e do Daimon (a voz da consciência).

Esse ideal foi excelentemente expresso por Péricles (495-429 a.C),grande estadista democrático, general, exímio orador, em Atenas: ”Amamos o belo mas não o vulgar; dedicamo-nos à sabedoria, mas sem vanglória; usamos a riqueza para empreendimentos necessários, sem ostentações inúteis; a pobreza não é vergonhosa para ninguém; vergonhoso é não se fazer o possível para evitá-la”.

Eis um exemplo da justa medida. Não sem razão em todos os pórticos dos templos gregos, podia-se ler: “méden ágan”(nada de excessivo).

Mas logo, a fome de poder, característica de Alexandre, o Grande (356-323a.C), aquele que com 33 anos de idade estendeu seu império até a Índia, rompeu o equilíbrio. A razão, transformada em vontade de poder e de instrumento de dominação dos outros e da natureza, ganhou a primazia. É o que ainda subjaz ao atual modo de organizarmos nossas sociedades, especialmente a sua forma mais excessiva e desumana, o Capitalismo, que tomou conta de todo o orbe. Esse tipo de razão instrumental-analítica ocidental se tornou global. Poderia ser diferente? Era inevitável? O que podemos dizer é que foi uma opção histórico-social, o nosso “destino manifesto” hoje numa radical crise de seus fundamentos.

Quero dar o exemplo de uma cultura que colocou o coração e não a razão, como eixo estruturador de sua organização social: cultura náuatle do México e da América Central, (hoje são cerca de 3,3 milhões de habitantes), sendo desta etnia os astecas e toltecas. A língua náuatle é falada em vários estados mexicanos por 1,6 milhão de pessoas. Para os nauatles o coração ocupa a centralidade. A definição de ser humano não é, como entre nós, a de um animal racional, mas a de  um “dono de um rosto e de um coração”.

O tipo de rosto  identifica e distingue o ser humano de outros rostos. No rosto a rosto, no cara a cara, nasce o imperativo ético, nos ensinou Levinas. No rosto fica estampado se  acolhemos o outro,  se dele desconfiamos, se o excluímos. O coração, por sua vez,  define o modo-de-ser e o caráter da pessoa, a sensibilidade face ao outro a acolhida cordial e a compaixão com quem sofre.

A educação refinada dos náuatles, conservada em belíssimos textos, visava formar nos jovens um “rosto claro, bondoso e sem sombras”, aliado a um “coração  firme e caloroso, determinado e hospitaleiro, solidário e respeitoso das coisas sagradas”. Segundo eles, era do coração que nasce a religião que utiliza “a flor e o canto” para venerar suas divindades. Colocam coração em todas as coisas que fazem. Essa cor-dialidade passava às belíssimas obras de arte a ponto de encantar o pintor renascentista alemão Albert Dürer ao contemplá-las.

Tiremos algumas lições desta cultura do coração e da cor-dialidade:

1.Em tudo o que pensar e fizer coloque coração. A fala sem coração soa fria e formal. Palavras ditas com coração tocam o coração das pessoas. É isso que facilita a compreensão e conquista a adesão.

2. Procure, junto com o raciocínio articulado, colocar a emoção cordial. Não a force porque ela deve espontaneamente revelar a profunda convicção naquilo que crê e diz. Só assim comove o coração do outro  e se faz convincente.

3. A inteligência intelectual, indispensável para organizar nossas sociedades complexas, quando recalca a inteligência cordial gera uma percepção reducionista e parcial da realidade. Mas também o excesso da inteligência cordial e sensível pode decair para o sentimentalismo adocicado e para proclamas populistas. Importa sempre buscar a justa medida entre mente e coração, mas articulando os dois polos a partir do coração.

4. Quando tiver que falar a um auditório ou a um grupo, não fale só a partir da cabeça mas dê primazia ao coração. É ele que sente, vibra e faz vibrar. Só são eficazes as razões da inteligência intelectual quando elas vêm amalgamadas pela sensibilidade do coração.

5. Crer não é pensar Deus. Crer é sentir Deus a partir da totalidade de nosso ser, começando pelo interior, pelo  coração. Então nos damos conta de que não estamos submetidos a um Deus julgador, mas a uma Realidade amorosa e poderosa que sempre nos acompanha.

** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

Foto de capa: Tom/Pixabay

Nos salvaremos a partir do princípio-esperança

A grande enchente que está assolando o Rio Grande do Sul é um dos sinais  mais inequívocos, dado pela Mãe Terra, dos efeitos extremamente danosos das mudança climática. Já estamos dentro dela. Não adianta os negacionistas se recusarem em aceitar a esse dado. Os fatos falam por si. Dentro de pouco chegarão na vida de todas as pessoas, ricos e pobres, como chegou a todos na maioria cidades ribeirinhas daquele estado.

Ocorreu uma surpreendente aceleração do processo de aquecimento global e não se cumpriu o decidido no Acordo de Paris de 2015 segundo o qual se previa uma redução drástica de  gazes de efeito estufa para não aumentarmos a temperatura de 1,5ºC até 2030. Quase nada se fez: em 2022 foram lançadas na atmosfera 37,5 bilhões de toneladas de CO² e em 2023 foram 40,8 bilhões de toneladas. Tudo foi excessivo. Em razão disso  alguns climatólogos sustentam que antes de 2030 como previsto, o aquecimento se antecipou. Por volta de 2026-2028 o clima da Terra se estabilizaria em torno de 38-40ºC e em alguns lugares com números mais elevados.

A temperatura de nosso corpo está por volta de 36,5ºC. Imaginem se pela noite a temperatura ambiente se mantiver por volta de 38ºC? Muitos, entre os idosos e crianças, não aguentarão e poderão até morrer. E para todos será uma grande agonia. Sem falar da perda da biodiversidade e das safras de alimentos, necessários para a sobrevivência.

Quem viu claro o estado da Terra foi um representante dos povos originários, aqueles que se sentem Terra e parte da natureza, uma liderança yanomami Dário Kopenawa:” A Terra é nossa mãe e sofre há muito tempo. Como um ser humano que sente dor, ela sente quando invasores, o agronegócio, mineradoras e petroleiras derrubam milhares de árvores e cavam fundo no solo, no mar. Ela está pedindo ajuda e dando avisos para que os não indígenas parem de arrancar a pele da Terra.”

Como continuamos arrancando a pele da Terra e agravando a mudança climática, o potencial de esperança está chegando ao limite. Cientistas deixaram claro que a ciência e a técnica não poderão reverter esta situação, apenas advertir da chegada de eventos extremos e mitigar suas consequências desastrosas. Chegamos à atual situação global simplesmente porque grande parte da população desconhece a real situação da Terra e a maioria dos chefes de Estado e os CEOs das grandes empresas preferem continuar a lógica da produção ilimitada, arrancada da natureza e do consumo sem limites, a ouvir as advertências das ciências da Terra e da vida. Não se fez a lição de casa. Agora a fatura amarga chegou.

O que ocorreu no Sul do Brasil é apenas o começo. Os desastres ecológicos vão se repetir com mais frequência e de forma cada vez mais grave em todas as partes do planeta.

Onde vamos buscar energias para ainda crer e esperar? Como foi dito com sabedoria: “quando não há mais razão para crer, então começa a fé; quando não há mais razão para esperar,então começa a esperança”. Como disse com acerto o autor da epístola aos Hebreus (por volta dos anos 80):” A fé é o fundamento do que se espera e a convicção das realidades que não se vêem”(11,1).A fé vê o que não se vê com os simples olhos carnais. A fé vê, com os olhos do espírito que é o nosso profundo, a possibilidade de um mundo que ainda virá, mas que, seminalmente mas ainda invisível, está entre nós. Por isso a fé se abre à esperança que é sempre ir além do que é dado e verificado. A fé e a esperança fundam o mundo das utopias que forcejam por se realizar historicamente.

Aqui vale o princípio-esperança. O filósofo alemão Ernst Bloch cunhou a expressão principio-esperança. Ele representa um motor interior que sempre está funcionando e alimentando o imaginário e o inesgotável potencial da existência humana e da história. O Papa Francisco na Fratelli tutti afiança: “a esperança nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive” (n. 55). Assumir este princípio-esperança hoje,nesta nova fase da Terra, é extremamente urgente.

O princípio-esperança é o nicho de todas as utopias. Ele permite continuamente projetar novas visões, novos caminhos ainda não trilhados e sonhos viáveis. O sentido da utopia é sempre nos fazer andar (Eduardo Galeano), sempre superar dificuldades e melhorar a realidade. Como humanos, somos seres utópicos. É o princípio-esperança que nos poderá salvar e abrir  uma direção nova para a Terra e seus filhos e filhas.

Qual a nossa utopia mínima, viável e necessária? Ela implica, antes de mais nada, a busca da humanização do ser humano. Ele se desumanizou pois se transformou no anjo exterminador da natureza. Só recuperará sua humanidade se começar  a viver a partir daquilo que é de sua natureza: um ser de amorização, de cuidado, de comunhão, de cooperação, de compaixão, de ser ético e de ser espiritual que se responsabiliza por seus atos para que sejam benfazejos para o todos. Pelo fato de não ter criado espaço a esses valores e princípios, fomos empurrados na crise atual que pode nos conduzir ao abismo.

Essa utopia viável e necessária se concretiza sempre, caso tenhamos tempo, dentro das contradições, inevitáveis em todos os processos históricos. Mas ela significará um novo horizonte de esperança que alimentará a caminhada da humanidade na direção do futuro.

Desta ótica nasce uma nova ética.  Por todos os lados surgem forças seminais que buscam e já ensaiam um novo padrão de comportamento humano e ecológico. Representará aquilo que Pierre Teilhard de Chardin desde seu exílio na China em 1933 chamava de noosfera. Seria aquela esfera na qual as mentes e os corações (noos em grego) entrariam numa nova sintonia fina, caracterizada pela amorização, pelo cuidado, pela mutualidade entre todos, pela espiritualização das intencionalidades coletivas.Dizia um aforisma antigo:”quando não sabes para onde vais, regresse para saber de onde vens”. Temos que regressar à nossa própria natureza de onde viemos e  que contém as  indicações para onde vamos: àqueles valores acima enunciados que poderão nos tirar desta dramática situação.

No meio de tanto abatimento e melancolia pela situação grave do mundo, nisso cremos e esperamos.

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Foto de capa: Gaspar Rocha/Pixabay

A conta chegou: a tragédia climática no Rio Grande do Sul

Interrompo minha reflexão sobre os vetores da crise sistêmica atual e as eventuais saídas da crise, em razão da tragédia ambiental ocorrida no Rio Grande do Sul. As intensas chuvas e as catastróficas enchentes, com as águas invadindo cidades  inteiras, destruindo-as em parte, deslocando centenas de famílias, causando milhares de refugiados ou de desaparecidos e mortos, nos fazem pensar.

Antes de mais nada nossa profunda solidariedade às populações atingidas por esta calamidade de proporções bíblicas. Expressamos nossa compaixão, pois como ensinava Santo Tomás na Suma Teológica “a compaixão em si é a virtude maior. Pois faz parte da compaixão derramar-se sobre os outros – e o que é mais ainda-  ajudar a fraqueza e a dor dos outros”. Todo o país se mobilizou. O povo brasileiro mostrou o melhor de si, sua capacidade de solidariedade e disposição de ajuda, a despeito dos perversos que exploram a desgraça para fins particulares e por mentiras e calúnias.

Seria errôneo pensar que se trata apenas de uma catástrofe natural, pois de tempos em tempos ocorrem fenômenos semelhantes. Desta vez a natureza da tragédia possui outra origem. Temos a ver com a nova fase em que entrou o planeta Terra: a instalação de um novo estágio, caracterizado pelo aumento do aquecimento global. Tudo isso de origem antropogênica, quer dizer, produzida pelos seres humanos mas mais especificamente pelo capitalismo anglo-saxão, devastador dos equilíbrios naturais.

Há negacionistas em todos as esferas, especialmente entre os CEOs das grandes empresas e naqueles que se sentem bem na situação de privilégio, assentados sobre uma situação de conforto. Mas a avalanche de transtornos nos climas, a irrupção de eventos extremos, as ondas de calor intenso e de secas severas, os grandes incêndios, os tornados e as enchentes apavorantes, constituem fenômenos inegáveis. Está tocando a pele dos mais resistentes. Começaram também eles a pensar.

Considerando a história do planeta que já existe há mais de 4 bilhões de anos, constatamos que  aquecimento global participa da evolução e do dinamismo do universo;  este está sempre em movimento e se adaptando às circunvoluções energéticas que ocorrem no decorrer do processo cosmogênico. Assim o planeta Terra conheceu muitas fases, algumas de extremo frio, outras de extremo calor como há 14 milhões de anos. Nesta época de calor extremos não existia ainda o ser humano que somente irrompeu na África há 7-8 milhões de anos e o homo sapiens atual há apenas 200 mil anos.

 O próprio ser humano percorreu várias etapas em seu diálogo com a natureza: inicialmente predominava uma interação pacífica com ela; depois passou a uma intervenção ativa nos seus ritmos, desviando cursos de rios para a irrigação, cortando territórios para estradas; passou para uma verdadeira agressão da natureza, precisamente a partir do processo industrialista que se aproveitou dos recursos naturais para a riqueza de alguns à custa da pobreza das grandes maiorias; esta agressão foi levada por tecnologias eficientes a uma verdadeira destruição da natureza, ao devastar inteiros ecossistemas, pelo desflorestamento em função da produção de commodities, pelo mau uso do solo impregnando-o de agrotóxicos, contaminando as águas e os ares. Estamos em plena fase de destruição das bases naturais que sustentam nossa vida. Digamos o nome: é o modo de produção/devastação do sistema capitalista anglo-saxão hoje globalizado, com seus mantras: maximização do lucro através da superexploração dos bens e serviços naturais, no quadro de severa competição sem qualquer laivo de colaboração.

Este processo teve um pesado custo, sequer tomado em conta pelos  operadores deste sistema. Os danos naturais e sociais  eram considerados como efeitos colaterais que não entravam na contabilidade das empresas. Ao estado e não a eles cabia enfrentar tais taxas de iniquidade.

A Terra viva começou a reagir enviando vírus, bactérias, todo tipo de doenças, tufões, tempestades rigorosas e por fim um aumento de sua temperatura natural. Ela entrou em ebulição. Iniciamos um caminho sem volta. São os gases de efeito estufa: o CO2, o metano (28 vezes mais danoso que o CO2), o óxido nitroso e o enxofre entre outros.Só em 2023 foram lançados na atmosfera 40,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono, com consta no relatório da COP 28, realizada no Cairo.

Vejamos os níveis de crescimento desse gás: em 1950 as emissões eram de  6 bilhões de toneladas; em 2000 já eram 25 bilhões;em 2015 subiu para 35,6 bilhões; em 2022 foram 37,5 bilhões e finalmente em 2023,como referimos, foram 40,9 bilhões de toneladas anuais.Esse volume de gazes funciona como uma estufa, impedindo que os raios do sol retornem para o universo, criando uma capa quente, ocasionando o aquecimento do inteiro planeta. Acresce dizer que o dióxido de carbono,CO2, permanece na atmosfera por cerca de 100 a 110 anos.

Como a Terra pode digerir semelhante poluição? O acordo de Paris na COP de 2015 estabelecia cotas de redução desses gases com  a criação de energias alternativas (eólica, solar, das marés). Nada de substancial foi feito. Agora chegou a conta a ser paga por toda a humanidade: um aquecimento irreversível que tornará algumas regiões do planeta na África, na Ásia e também entre nós, inabitáveis.

O que estamos assistindo no Rio Grande do Sul é apenas o começo de um processo que, mantido o tipo atual de civilização dilapidadora da natureza, tende a piorar. Os próprios climatólogos alertam: a ciência e a técnica despertaram tarde demais para essa mudança climática. Agora não poderão evitá-la, apenas advertir da chegada de eventos extremos e de  mitigar seus efeitos danosos.

Terra e Humanidade deverão adaptar-se a essa mudança climática. Idosos e crianças e muitos organismos vivos terão dificuldade de adaptação e irão sofrer muito e até morrer. A Mãe Terra daqui por diante conhecerá transformações nunca dantes havidas. Algumas podem dizimar as vidas de milhares de pessoas. Se não cuidarmos, o planeta inteiro poderá ser hostil à vida da natureza e à nossa vida. No seu termo, poderemos até desaparecer. Seria o preço de nossa irresponsabilidade, desumanidade e descuido da natureza que  tudo nos dá para viver. Não conseguimos pagar a conta.

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Foto de capa: Flickr do Governo do Estado do Rio Grande do Sul

A ameaça mais sensível: a mudança climática

Há várias ameaças que assolam a vida, especialmente, a humana, em nosso planeta: a ameaça nuclear, a do colapso mundial do sistema econômico-social,  a da ultrapassagem da Sobrecarga da Terra (insuficiência dos bens e serviços naturais que susententam a vida), a da escassez mundial de água doce, entre outras.

Talvez a mais sensível seja a mudança climática, pois está atingindo a pele de inteiras populações. Ligada a ela está a crise hídrica que já  afeta boa parte das nações. Pessoalmente estou vivendo este drama hídrico. No limite de meu terreno, corria um riozinho com abundante água.Canalizava-se uma pequena porção dele para produzir uma cascata frequentada por muitos,durante todo o ano. Lentamente, entretanto, o rio foi diminuindo, a cascata sumindo até, numa longa extensão, o rio secar totalmente, aparecendo depois com visível diminuição de água. Ele nasce do meio de uma floresta vizinha totalmente preservada. Não haveria razão para que suas águas diminuíssem.Entretanto, sabemos, que o fator hídrico é sistêmico, está todo interligado.Mundialmente cresce a escassez de água potável.

O risco mais próximo e com consequências danosas é a mudança climática, de origem antropogênica, vale dizer, produzida pela forma com os seres humanos, especialmente, os donos das grandes complexos industriais e financeirostêm tratado a natureza nos últimos três séculos. O projeto que animava e ainda anima esse o modo de viver na terra é o crescimento ilimitado de bens e serviços no pressuposto de que a Terra possuiria também esses bens de forma ilimitada. Entretanto, depois que se publicou o  Relatório “Os limites do crescimento” em 1972 pelo Clube de Roma ficou claro que a Terra é um planeta pequeno com bens e serviços limitados. Ela não suporta um crescimento ilimitado. Hoje para atender a demanda dos consumistas precisamos de mais de uma Terra e meia, o que estressa totalmente o planeta. Ele reage, pois é um super Ente que se rege sistemicamente como um ser vivo, aquecendo-se, produzindo eventos extremos e enviando mais e mais vírus perigosos, até letais, como temos visto com o coronavírus.

Conclusão: ultrapassamos o ponto crítico. Já estamos dentro do aquecimento global. Produziu-se uma desregulação ecológica. Aumentaram exponencialmente os gases de efeito estufa, produtores de aquecimento. Vejamos alguns dados. Em 1950 emitiam-se anualmente 6 bilhões de toneladas de CO2.Em 2000, 25 bilhões de toneladas. Em 2015 já eram 35,6 bilhões de toneladas. Em 2022/23,atingiou-se 37,5 bilhões de toneladas anuais.Ao todo circulam na atmosfera cerca 2,6 trilhões de toneladas de CO2, que permanecem nela por cerca de 100 anos. Acresce o fato de que os analistas não estarem incluindo  ainda no agravamento do aquecimento global, a interação sinergética entre a comunidade de plantas, massas de terra, oceanos e gelo, o que torna dramática a situação climática. Nós encostamos nos limites intransponíveis da Terra. A prosseguir o nosso modo de atuar e consumir, a vida está ameaçada ou a Terra não nos quererá mais sobre sua superfície.

O acordo de Paris firmado em 2015 de todos os países se empenharem na redução de gases de efeito estufa para evitarmos ultrapassar 1,5C ou até 2C em relação à era industrial, se frustrou. Os países não fizeram sua lição de casa. Era necessária a redução imediata de 60-80% das emissões de CO2. Caso contrário, haveria o risco real de mudanças irreversíveis, o que deixaria vastas regiões da Terra inabitáveis. A última COP28 mostrou que tem aumentado o uso de energia fóssil, petróleo, gás e minérios.

Bem disse o presidente Lula na COP28: “O planeta está farto de acordos climáticos não cumpridos. Precisamos de atitudes concretas. Quantos líderes mundiais estão de fato comprometidos em salvar o planeta?”

O que predomina é o negacionismo. Diz-se que o aquecimento é efeito do El Niño. O El Niño entra na equação, mas ele não explica, apenas agrava o processo em curso já iniciado e sem retorno. Os próprios cientistas da área confessam: a ciência e a técnica chegaram atrasadas, Elas não têm condições de reverter essa mudança, apenas advertir a sua chegada e minorar os efeitos danosos.

Mesmo assim são propostas duas maneiras para enfrentar o atual aquecimento: o primeiro, usando organismos fotossintéticos, para absorver o C02 através da fotossíntese das plantas e transformá-lo em biomassa. É o caminho correto mas insuficiente. O segundo, seria lançar partículas de ferro nos oceanos aumentando sua capacidade de fotossíntese. Mas este método não é cientificamente aconselhado por danos previsíveis  à vida nos oceanos.

Na verdade não temos soluções viáveis. O certo  é que temos que nos adaptar à mudança climática e organizar nossa vida, as cidades oceânicas, os processos produtivos para minorar os danos inevitáveis. No fundo, temos que volver ao mito do cuidado sobre nós e sobre todas as coisas como venho insistindo há anos, já que o cuidado pertence à essência do humano e de todos os viventes.

Imaginemos se um dia, a humanidade tomar consciência de que a  vida poderá desaparecer e fizer com que toda a população mundial, num fim de semana, se pusesse a plantar árvores e assim sequestrar o carbono e criar condições para o sistema-vida e a humanidade sobreviverem? Seria uma tentativa que podemos implementar e quiçá nos salvar. O imponderável sempre pode acontecer como a história tem mostrado. Vale a advertência de um eminente filósofo alemão Rudolf-Otto Apel: “Pela primeira vez na história do gênero humano, os seres humanos foram postos, na pratica, diante da tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em um parâmetro que envolve todo o planeta” (O a priori da Comunidade de Comunicação, São Paulo: Editora Loyola, 2000 p. 410). Ou nos responsabilizamos, sem exceção de ninguém, pelo nosso futuro comum ou poderá acontecer que não contaremos mais entre os viventes do planeta Terra.

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Foto de capa: Julio Perez/Pexels

Natal: Netanyahu (Herodes) e a matança de inocentes em Gaza

Nos dias atuais estamos assistindo a atualização do relato bíblico: um feroz rei, cioso de seu poder, manda matar todas as crianças abaixo de um ano. O Herodes de hoje tem um nome: Benjamin Netanyahu. Em seu furor vingativo, sua força militar, aérea, marítima e terrestre assassinou milhares de crianças, sendo que muitas delas jazem sob os escombros, além de outros milhares de civis que sequer pertencem ao grupo Hamas. Não podemos deixar que esta tragédia obscureça a festa radiosa do Natal. Ela é demais preciosa para não ser recordada  e celebrada.

Voltemos ao relato que nos enche de encanto, mesmo depois de mais de dois séculos. José e Maria, sua esposa, grávida de nove meses, estão a caminho vindo de Nazaré, do norte da Palestina para o sul, em Belém. São pobres como a maioria dos artesãos e camponeses mediterrâneos. Às portas de Belém, nos dias de hoje arrasada pelas tropas de Netanyahu, Maria entra em trabalho de parto: segura a barriga pois a longa caminhada acelerou o processo de gestação. Batem à porta de uma hospedaria. Ouvem o que os pobres na história sempre ouvem: “não tem lugar para vocês na hospedaria”(Lc 2,7).

Abaixam a cabeça e se afastam preocupados. Como ela vai dar à luz? Sobrou-lhes, na vizinhança, uma estrebaria  de animais. Ai há uma manjedoura com palhas,  um boi e um jumento que, estranhamente, permanecem quietos, observando. Ela dá a luz a um menino entre os animais. Faz frio. Ela o envolve com panos e ajeita-o nas palhinhas. Choraminga alto como todos os recém nascidos.

Há pastores que velam à noite, vigiando o rebanho. Segundo os critérios de pureza legal da época, os pastores, são considerados impuros e por isso desprezados, por estarem sempre às voltas com os animais, seu sangue e seus excrementos. Diferente era a visão idílica dos gregos e dos romanos que idealizam a figura dos pastores. Mas são estes pobres e impuros pastores hebreus os primeiros a verem o Puer divinus, a divina criança.

 Surpreendentemente, uma luz os envolveu e escutaram do Alto uma voz lhes anunciando: “não temais anuncio-vos uma grande alegria que é para todo o povo; acaba de nascer o  Salvador; este é o sinal: encontrareis um menino envolto em panos, deitado numa manjedoura”. Ao porem-se, pressurosos, a caminho ouviram um cântico mavioso, de muitas vozes, vindo do Alto: “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens  por Deus amados”(Lc 2,8-18). Chegam e se confirmou tudo o que lhes fora comunicado: aí está um menino, tiritando, enfaixado em panos e deitado na manjedoura, na companhia de animais.

Algum  tempo depois, eis que vem descendo o caminho, três sábios do Oriente. Sabiam interpretar as estrelas. Chegam. Extasiam-se pela misteriosidade da situação. Identificam no menino aquele que iria sanar a existência humana ferida. Inclinam-se, reverentes, e deixam presentes simbólicos: ouro, incenso e mirra. Com o coração leve e maravilhados, tomam o caminho de volta, evitando a cidade de Jerusalém, pois aí reinava um “Netanyahu” terrivelmente belicoso, pronto a mandar  matar quem visitara a criança divina.

Lição: Deus entrou no mundo, na calada da noite, sem que ninguém o soubesse. Não há pompa nem glória, que imaginaríamos adequadas a um menino que é Deus. Mas preferiu chegar fora da cidade, entre animais. Não constou na crônica da época, nem em Belém, nem  em Jerusalém, muito menos em Roma. No entanto, aí está Aquele que o universo estava gestando dentro de si há bilhões de anos, aquela “luz verdadeira que ilumina cada pessoa que vem a este mundo”(Jo 1,10). Deus não veio para divinizar o ser humano, Ele veio para se humanizar junto conosco.

Devemos respeitar e amar a forma como Deus quis entrar neste mundo: anônimo como anônimas são as grandes maiorias pobres e menosprezadas da humanidade. Quis começar lá em baixo para não deixar ninguém de fora. A situação humilhada e ofendida deles foi aquela que o próprio Deus  quis fazer sua.

Mas há também sábios e homens estudiosos das estrelas do universo, os cosmólogos e que captam atrás das aparências o mistério de todas as coisas. Entreveem neste menino de corpinho tiritante, que molha os paninhos, choraminga e busca, faminto, o seio da mãe, o Sentido Supremo de nossa caminhada e do próprio universo. Para eles é também Natal.

É verdade o que se diz por aí: “Todo menino quer ser homem. Todo homem quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino”.

Esse é um lado, alvissareiro: um raio de luz no meio da noite escura. Um pouco de luz tem mais direito que todas as trevas.

Mas há o outro lado, sombrio e também trágico, referido anteriormente. Há um “Netanyahu” que não teme assassinar inocentes. José, atento, logo se dá conta: ele quer mandar matar o menino recém-nascido. Foge para o Egito com Maria e o menino ao colo que dorme, busca o seio e volta a dormir.

Milhares de crianças foram assassinadas em terras da Faixa de Gaza. Então se ouviu um dos lamentos mais comoventes de todas as Escrituras: “Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e gemido: é Raquel que chora os filhos assassinados e não quer ser consolada porque os perdeu para sempre”(Mt 2,18).

Os Herodes se perpetuam na história também durante quatro anos no Brasil sob o Inelegível e atualmente na Palestina. Não obstante, haverá sempre uma estrela, como a de Belém, a iluminar nossos caminhos. Por mais perverso que sejam os Herodes, eles não podem impedir que o sol nasça cada manhã nos trazendo esperança, especialmente aquele que foi chamado “O Sol da Esperança”.

Essa alegria é inaudita: a nossa humanidade, fraca e mortal, a partir do Natal começou a pertencer ao próprio Deus. Por isso algo nosso já foi eternizado pelo Puer aeternus que nos garante que os Herodes da morte jamais triunfarão. Feliz Natal a todos com muita compaixão por tantas vítimas em Gaza, com luz e discreta alegria.

** Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

*** Foto de capa: Gerd Altmann / Pixabay

Solidariedade: num israelense bate um coração palestino

Em meio a uma guerra profundamente desproporcional entre Israel e o Hamas, com atos de terrorismo em Israel por um grupo do Hamas em 7 de outubro e consequentemente uma retaliação por parte do governo de Israel, chefiada por Benjamin Netanyahu, tão violenta que  se chegou a denunciar como um genocídio. São 3345 crianças mortas e 2060 mulheres, até a presente data (31/10), mais de 8 mil civis mortos e milhares de feridos. Depois de tapetes de bombardeios que arrasaram os principais centros e centenas moradias de palestinos, iniciou-se uma perigosa invasão israelense da Faixa de Gaza. Como é notório em tais casos, ocorre um número incalculável de vítimas de ambos os lados. Há os que se desesperam em sua fé num Deus justo e bom (“Senhor, onde estás?Por que permites tanta destruição?”) e na própria humanidade, agora negada inequivocamente.

Mesmo assim continuamos a crer que pode haver surpreendente humanidade entre palestinos e judeus. Vejamos dois testemunhos, um de um palestino e outro de um israelense. O primeiro foi relatado pelo jornalista espanhol Ferran Sale no El Pais no dia 7 de junho de 2001 e o segundo testemunhado por mim mesmo.

Eis o primeiro, do palestino: Mazen Julani era um farmacêutico palestino, de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. Certo dia quando estava tomando café com amigos num bar foi vítima  de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era vingança contra o grupo palestino do Hamas que, quarenta e cinco minutos antes, em 5 de junho de 2000, havia matado numa discoteca de Tel Aviv inúmeras pessoas mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital de entregar todos os órgãos do filho morto, o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritatamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Com tanto que ajudem a salvar vidas. Mas achamos os órgãos bem empregados com nossos vizinhos israelenses.  Com efeito, no isralense Yigal Cohen late agora um coração palestino.

A mulher de Mazen Julani tinha dificuldades em explicar à filha de quatro anos  a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora  viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente. Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu meus filhos vamos visitar a Yigal Cohen na parte israelense de Jerusalém.                                                                                                                                        

Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso é carregado de significação simbólica.  No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, como atualmente, surge uma flor de esperança e de paz. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana alimenta atitudes de perdão, de reconciliação e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que supera os limites de religião, de raça e de ideologia política. São tais virtudes que nos fazem crer numa possível cultura da paz.

Na imaginação de um dos mais perspicazes intérpretes da cultura brasileira, Gilberto Freyre, em nosso ensaio civilizatório (Casa Grande e Senzala), não obstante as muitas contradições, consistiu em ter criado um povo capaz de conviver com as positividades de cada cultura e com uma enorme potencialidade de lidar com conflitos.

Eis o segundo, de um israelense, assistido por mim pessoalmente em Estocolmo na Suécia. Por ocasião da concessão do título The Rigth Livelihood Award, considerado  o Nobel Alternativo da Paz nos começos de dezembro de 2001 quando entre outros, eu mesmo fui contemplado. Mas um dos galardoados impressionou a todos. Foi o testemunho de um alto oficial israelense, encarregado da repressão aos palestinos. Num enfrentamento foi ferido. Um palestinense o socorreu, prontamente em seu jipe, levando-o para o hospital palestino. Acompanhou-o até ficar são.

De volta a Israel este oficial criou uma ONG de diálogo entre israelenses e palestinos. Tal iniciativa foi considerada como alta traição, levado ao tribunal militar, pois se tratava de estabelecer um diálogo com o inimigo. Mas acabou sendo absolvido e  continuou com seu diálogo e foi, por fim, contemplado com o prêmio por suas persistência na busca da paz entre judeus e palestinos.

Aqui se mostra, uma vez mais, a capacidade humana de socorrer o um ferido que o reprimia, como um bom samaritano, na parábola de Jesus. Reconheceu nele  um ser humano a ser prontamente acudido.

Já dissemos repetidas vezes em nossas intervenções que o amor e a solidariedade pertencem à essência do humano e estão inscritas até em nosso DNA. Por ser assim, não nos é concedido desesperar face à crueldade e à barbárie que estamos assistindo nas guerras atuais. Elas também são possibilidade do negativo de nossa condition humaine. Mas não podemos deixar que prevaleçam, caso contrário nos devoraremos uns aos  outros. Estes dois exemplos são expressão de nossa humanidade num momento dos mais sombrios de nossa história atual. Eles nos atualizam o esperançar, quer dizer, a invenção das condições reais que garantam o amor e a solidariedade, presentes em cada um de nós. São elas que nos salvarão.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Libertinus/Creative Commons

Começou a era da ebulição global do planeta?

A expressão não é minha, mas do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, proferida no dia 27 de julho de 2023, ao tomar conhecimento da aceleração inesperada do aquecimento global. Este chegou ao ponto de o planeta entrar num processo de ebulição, dada a incúria dos processos humanos, especialmente do industrialismo e produtivismo capitalista (incluída a China) que usam abusivamente de energia fóssil, carvão e outros elementos produtores de efeito estufa.

O clima normal médio da Terra é de 15 graus Celsius. Mas esta média começou a subir tanto que ultrapassou em julho de 2023 a mais de 17 graus Celsius.

Isso tudo se deve ao fato de por ano serem lançadas na atmosfera cerca de 40 bilhões de toneladas de CO2 que permanece na atmosfera por mais de 100 anos, acrescido ainda do ácido nitroso e do metano que é 28 vezes mais danoso que o CO2, embora fique na atmosfera por uns 9-10 anos.

As consequências deste aumento se mostram por secas prolongadas, por inundações de inteiras regiões e cidades, furacões, ciclones extratropicais como no Sul do país, queimadas em quase todo o planeta. A inflexão sobre as vidas humanas é de grande monta. A conhecida revista Nature Medicine calculou que o alto calor de 2022 provocou só na Europa 61 mil mortes. Nem falemos de África e da Ásia ou de países mais pobres que vitimaram milhares de crianças e de pessoas idosas, particularmente na parte central da Índia, onde a temperatura chegou a 50 graus centígrados.

A observar o pouco que as grandes corporações e os estados fazem para deter essa lenta, mas permanente ascensão da temperatura, tudo indica que já atingimos o ponto de não retorno. A ciência e a técnica chegaram atrasadas, não conseguem deter o aumento, apenas ajudam a minorar os efeitos danosos que serão inevitáveis.

Mas nem tudo é fatal. Cabe lembrar que o improvável pode acontecer: os seres humanos sob a percepção do risco de desaparecer, deem um salto de consciência, rumo à noosfera como projetava Teilhard de Chardin ainda em 1933, vale dizer, unindo coração e mente (noosefera) para mudar a forma de produzir, de consumir e particularmente de se relacionar com a natureza, sentindo-se parte, não seus senhores e cuidando dela.

Se observarmos a biografia da Terra, constatamos que o aquecimento pertence à evolução de nosso planeta. Quando ainda não existíamos como espécie sobre a Terra, há 250 milhões de anos, o clima chegou e permaneceu por milhares e milhares de anos a 32 graus Celsius. Ocorreu uma massiva extinção de espécies de seres vivos. Mais tarde, há 50 milhões e anos, a Terra chegou a 21 graus Celsius; os crocodilos e as palmeiras adaptaram-se a esse aquecimento mas houve também  grande extinção de organismos vivos. Mais perto de nós, há 130 mil anos, a Terra alcançou a temperatura que neste momento estamos verificando, de 17 graus Celsius. Muitos seres desapareceram e o mar subiu entre 6-9 metros, o que teria encoberto toda a Holanda e as partes baixas do norte europeu.

Esse aumento do clima terrestre pertence à geoevolução. Mas o atual é causado pelos próprios seres humanos, não tanto pelas grandes maiorias pobres, mas pelas populações dos países opulentos, sem a justa medida em suas ações seja no assalto sobre a natureza seja nas formas de consumo suntuoso e nada solidário. Fala-se que inauguramos uma nova era geológica, o antropoceno. Por este conceito se quer identificar que a grande ameaça à vida do planeta e ao futuro da natureza depende dos seres humanos. Estes, na expressão do biólogo da biodiversidade Edward Wilson, se comportaram como o Satã da Terra e transformaram o Jardim do Éden num matadouro. Alguns vão mais longe ainda e referem-se ao necroceno, dado o crescente processo de morte (necro) de espécies de seres vivos na ordem de 70-100 mil por ano. Ultimamente se tem falado do piroceno, quer dizer, da era do fogo. Este é causado também pelos seres humanos, mas particularmente porque o solo ficou mais seco, as pedras se terem aquecido; basta folhas secas e gravetos sobre elas para produzirem grandes e devastadores incêndios por quase todo o planeta, mesmo na úmida Sibéria.

Que cenários poderemos enfrentar? São todos sombrios, caso não ocorrer um salto quântico que defina outro caminho e outro destino para o sistema-vida e o sistema-Terra. Não se pode negar que o planeta, dia após dia, está se aquecendo. Os órgãos da ONU que acompanham a evolução deste evento desastroso nos alertam que entre os anos 2025-2027 teremos ultrapassado os 1,5 graus Celsius, previstos para 2030 pelo acordo de Paris em 2015. Tudo se antecipou e nesta data, entre 2025-2027, chegaremos ao que está ocorrendo atualmente, um clima que poderá se estabilizar acima de 35 graus, chegando a 38-40 graus em algumas regiões do planeta. Milhões deverão emigrar por não poderem mais viver em suas pátrias queridas e safras serão totalmente perdidas. O Brasil, atualmente, um dos maiores exportadores de alimentos, verá sua produção profundamente reduzida. Segundo James Lovelock, (Veja, Páginas Amarelas de 25 de outubro de 2006), o Brasil, por causa de sua vasta extensão ensolarada, será um dos mais atingidos pelo aquecimento global e pelas mudanças climáticas. Os do agronegócio deveriam estar atentos a estas advertências, pois como escreveu o Papa Francisco na encíclica Laudato Si: como cuidar da Casa Comum, dirigida a toda a humanidade e não apenas aos cristãos: “As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia; deixaríamos para as próximas gerações demasiadas ruínas, desertos e lixo” (n.161).

É o que ninguém quer para seus filhos e netos. Mas para isso devemos nos munir de coragem e de ousadia para mudar de rumo. Só uma radical mudança ecológica poderá salvar as condições que permitirão nossa continuidade sobre esse esplêndido planeta Terra.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Como se vive o cristianismo hoje

Os grandes analistas da história nos confirmaram que já há um século vivemos uma fase nova do espírito de nossa cultura. É a fase da secularização. Com isso se quer significar que o eixo estruturador da sociedade moderna não reside mais no mundo religioso, mas na autonomia das realidades terrestres, no mundo secular. Daí falar-se em secularização. Isso não significa negar Deus, mas apenas que Ele não representa mais o fator de coesão social. Em seu lugar entra a razão, os direitos humanos, o processo de desenvolvimento científico que se traduz numa operação técnica, produtora de bens materiais e o contrato social.

Não cabe aqui discutir os avatares desse processo. Cabe assinalar as transformações que trouxe para o campo religioso, nomeadamente, pelo cristianismo de versão romano-católica.

Havia um descompasso enorme entre os valores da modernidade secularizada (democracia, direitos humanos,liberdade de consciência, diálogo entre as igrejas e religiões etc) e o catolicismo tradicional. Essa desconexão foi superada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) no   qual a Igreja hierárquica procurou acertar o passo que veio sob o nome de aggiornamento, pôr em dia o caminhar da Igreja com o caminhar do mundo moderno.

O transfundo de todos os textos conciliares era o mundo desenvolvido moderno. Na América Latina, nas várias conferências episcopais, se procurou assumir as visões do Vaticano II no contexto do mundo subdesenvolvido, coisa praticamente ausente nos textos conciliares. Daí nasceu uma leitura libertadora, pois se entendeu o subdesenvolvimento como desenvolvimento da pobreza e da miséria, portanto, da opressão que demanda libertação. Aqui se encontram as raízes da Teologia da Libertação que tem por base a prática das Igrejas, empenhadas na superação da pobreza e da miséria, a partir dos valores da prática de Jesus e dos profetas.

O processo de secularização trouxe à luz três formas de se viver a mensagem cristã no continente latino-americano e brasileiro.

Há uma forma que chamaríamos de um cristianismo cultural, que desde a colonização impregnou a sociedade. As pessoas respiram o cristianismo em seus valores humanísticos de respeito aos direitos humanos, de cuidado dos pobres, mesmo sob a forma de assistencialismo e paternalismo, a aceitação da democracia e a convivência pacífica com outras igrejas ou caminhos espirituais. Dos mais de 70% de católicos, são apenas 5% que frequentam as missa. Não negam o valor da Igreja mas ela não é uma referência existencial. Seja porque não renovou substancialmente sua estrutura clerical-hierárquica, sua linguagem doutrinária e seus símbolos herdados do passado.

Há um outro tipo de cristianismo de compromisso. Trata-se de pessoas que, ligadas à Igreja hierárquica, assumem a sua fé em suas expressões sociais e políticas. A referência maior não é a Igreja institucional mas a categoria do Jesus histórico, do Reino de Deus. O Reino não é um espaço físico nem se assemelha aos reis deste mundo. É uma metáfora para uma revolução absoluta que implica novas relações individuais – a conversão – sociais- relação de fraternidade, ecológicas – guardar e cuidar do Jardim do Éden, vale dizer da Terra viva e por fim, uma nova relação religiosa – uma total abertura a Deus, tido como Abba – paizinho querido, cheio de amor e misericórdia. Estes cristãos criaram seus movimentos como a JUC, a JEC, o Movimento Fé e Política, a Economia de Francisco e Clara e outros.

Há uma outra forma de se viver o Cristianismo, sem se referir conscientemente a ele, de forma secularizada. Trata-se de pessoas que podem se qualificar como  agnóstica ou como ateias ou simplesmente sem se auto-definir. Mas seguem um caminho ético de centralidade ao amor, de fidelidade à verdade, de respeito a todas as pessoas sem discriminação, preocupação para com os empobrecidos e de cuidado com o Criado e outros valores humanísticos.

Ora, estes valores são os conteúdos da pregação do Jesus histórico. Como se lê nos quatro evangelhos, ele sempre esteve ao lado da vida e daqueles que menos vida têm, curando-os, compadecendo-se deles, defendendo as mulheres, contra a tradição extremamente patriarcal da época, e convocando para uma abertura irrestrita a todos, chegando a afirmar que “quem vem a mim eu não mandarei embora”(Jo 6,37). No evangelho de São Mateus (25,41-46) que podemos denominar como o evangelho dos ateus humanísticos se diz que quem “atendeu a um faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia….foi a mim que o fizeste”(v.45).

Portanto, para viver o cristianismo é preciso viver o amor, ter compaixão e sentir a dor outro. Quem não vive estes valores, por mais piedoso que seja, está longe do Cristo e suas preces não chegam a Deus.

São João em suas epístolas enfatiza:”Deus é amor e quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele”(1Jo 4,16). Num outro lugar afirma: “quem pratica o bem é de Deus”(3Jo 1,11).

Aqui se realiza o que dizia o grande teólogo [evangélico] alemão que participou de um atentado frustrado a Hitler, Dietrich Bonhöffer: “viver como se Deus não existisse”( etsi Deus non daretur).

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Pixabay/Concerdesign

Um Brasil em fazimento

*Extrato de artigo enviado ao Bereia

Que Brasil queremos” nunca sai da pauta de nossas discussões, especialmente na bases que sofrem o peso de um tipo de Brasil marcado por imensas desigualdades.

Para dar consistência ao projeto-Brasil, importa trabalhar  sobre três eixos dialeticamente imbricados: a educação libertadora, a democracia integral e o desenvolvimento socio-ecológico. Resumidamente, é mister  desenvolver  uma educação libertadora que nos abra para uma democracia integral, capaz de produzir um tipo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentado.

Partimos do pressuposto de que a Terra não tem mais condições de aguentar a depredação produzida pela voracidade produtivista e consumista do ethos do capital. Esta ordem na desordem somente perdura porque se utiliza a força dura e doce  para manter as grandes maiorias  em estado de penúria crônica. Dezoito por cento da população mundial consome, irresponsavelmente, 80% dos recursos não-renováveis com nenhum  sentido de solidariedade geracional e de respeito ao patrimônio natural de toda a vida. 

Com acerto assinalava Celso Furtado: “O  desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de  tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos” (Brasil, A construção interrompida, Paz e Terra 1993. p.76).

Novo paradigma de desenvolvimento

O que  aqui se postula é uma mudança no paradigma do desenvolvimento, indispensável para resguardar a natureza, salvar a humanidade e possibilitar um projeto-Brasil alternativo. A Declaração Sobre o Direito dos Povos ao Desenvolvimento da ONU de 18 de outubro de 1993 assimilava já esta necessidade ao definir que o desenvolvimento é “um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante melhoramento do bem-estar de toda a população e de cada indivíduo na base de sua participação ativa, livre e significativa, e na justa distribuição dos benefícios resultantes dele” (Declaration on the Right to Development, ECOSOC  18.10.1993). Nos acrescentaríamos ainda, no sentido da integralidade, a dimensão psicológica e espiritual.

Portanto, postula-se que a economia, como produção dos bens materiais é meio para a possibilitar o desenvolvimento cultural, social e espiritual do ser humano. Errônea e com funestas consequências  é a visão que entende o ser humano apenas como um ser de necessidades e de desejo de acumulação ilimitada, e por isso da economia como crescimento ilimitado, como se ele fosse meramente um animal faminto e não um ser criativo, com fome de beleza, de comunhão e de espiritualidade. O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si, chama este pressuposição de “mentira” (n.106).

Faz-se mister produzir e consumir o que é necessário e decente, e não produzir e consumir o que é supérfluo, excessivo e abusivo. Precisamos passar de um economia da produção ilimitada para uma economia multidimensional da produção do suficiente generoso, para todos os humanos  e também para os demais seres da comunidade de vida à qual pertencemos.

O sujeito central do desenvolvimento, portanto, não  é a mercadoria, o mercado, o capital, o setor privado e o estado, mas o ser humano e os demais seres vivos como os principais documentos sobre a ecologia o enfatizam.

Construção da democracia integral

É dentro deste  contexto que se planteia a questão da democracia integral. Primeiro como valor universal a ser vivido em todos os âmbitos onde o ser humano se encontra com outro ser humano, nas relações familiares, comunitárias, produtivas e sociais. Em seguida como forma de organização política. Seria o sistema  que garante a cada um e a todos os cidadãos a participação  ativa e criativa em todas as esferas de poder e de saber da sociedade. Essa democracia seria, por definição, popular (mais ampla que a democracia burguesa e liberal), solidária (não excluiria ninguém, em razão de gênero, de  raça ou ideologia), respeitadora das diferenças (pluralista e ecumênica), sócio-ecológica (porque incluiria como cidadãos e sujeitos de direitos também o meio-ambiente, as paisagens, os rios, as plantas e os animais).  Numa palavra, uma democracia verdadeiramente integral.

Para ser cidadão-sujeito são exigidos três processos: o primeiro, o empoderamento, isto  é, a conquista de poder  para ser sujeito pessoal e coletivo de todos os processos relacionados com o seu desenvolvimento pessoal e coletivo; o segundo  é  a cooperação para além da competição  e da concorrência, motor da cultura do capital, que faz dos cidadãos protagonistas do bem comum. O terceiro, a autoeducação contínua para exercer sua cidadania e con-cidadania junto com outros sujeitos. Como asseverava Hannah Arendt: alguém pode  conhecer a vida inteira sem se auto-educar.

Educação da práxis

É nesse ponto que o desenvolvimento centrado no ser humano e na democracia integral   se articula com  a educação integral. A educação integral é um processo pedagógico permanente que abrange a todos os cidadãos em suas várias dimensões e que visa educá-los no exercício sempre mais pleno do poder, tanto na esfera de sua subjetividade quanto na de suas relações sociais.  Sem esse exercício de poder solidário e cooperativo não surgirá uma democracia integral nem um desenvolvimento centrado na pessoa e na natureza e por isso  o único verdadeiramente sustentado.

A prática, portanto, é a fonte originária do aprendizado e do conhecimento humano, pois o ser humano é, por natureza constitutiva, um ser prático. Ele não tem a existência como um dado, mas como um feito, como uma tarefa que exige uma prática de permanente construção. Não tendo nenhum órgão especializado, tem que continuamente se construir a si mesmo e ao seu habitat pela prática cultural, social, técnica e espiritual. Isso sublinhou com profundidade o economista e educador popular Marcos Arruda, discípulo de Paulo  Freire, em seu  livro Tornar o real possível (Vozes 2003).

Cabe reconhecer que  conhecimento sozinho não transforma a realidade; transforma a realidade somente  a conversão do conhecimento em ação. Entendemos por práxis exatamente esse movimento dialético entre  a conversão do conhecimento em ação transformadora e a conversão da ação transformadora em conhecimento. Essa conversão não apenas muda a realidade, mas muda também o sujeito. 

Práxis, portanto, é o caminho de todos na construção da consciência humana e universal. É acessível a todos os humanos que têm uma prática. O trabalhador manual, portanto, não precisa,  para aprender,  memorizar uma quantidade ilimitada de conteúdos. O essencial é que aprenda a pensar a sua prática individual e social, articulando o local com o global e vice-versa.

A educação da práxis visa atingir esses três objetivos principais:

1. A  apropriação dos instrumentos adequados para pensar a sua prática individual;

2. Apropriação do conhecimento científico, político, cultural e espiritual acumulado pela humanidade ao longo da história para garantir-lhe a satisfação de suas necessidades e realizar suas aspirações;

3. Apropriação dos instrumentos de avaliação crítica do conhecimento acumulado, para reciclá-lo e acrescentar-lhe novos conhecimentos que incluam a afetividade, a intuição, a memória biológica e histórica contida no próprio corpo e na psiqué, os sentidos espirituais como da ética, o da unidade do Todo, da beleza, da transcendência e do amor.

Educação: a maior revolução

Investir em educação, como sempre repetia Darcy Ribeiro, é inaugurar a maior revolução que se poderá realizar na história, a revolução da consciência que se abre ao mundo, à sua complexidade e aos desafios de ordenação que apresenta. Investir na educação é fundar a autonomia de um povo e garantir-lhe as bases permanentes de seu refazimento face a crises que o podem abalar  ou desestruturar. Investir em educação é investir na qualidade de vida social e espiritual do povo. Investir em educação é investir em mão de obra qualificada. Investir em educação é garantir uma produtividade maior. 

O estado brasileiro nunca promoveu a revolução educacional. É refém histórico das elites proprietárias que precisam manter o povo na ignorância e na incultura para ocultar a perversidade de seu projeto social, que é reproduzir seus privilégios e perpetuar-se no poder.

O projeto-Brasil, do Brasil em fazimento, fará da revolução educacional sua alavanca maior, criando o espaço para o povo poder expressar sua alta capacidade de criação artística e inventividade prática, finalmente, para plasmar-se a si mesmo como gostaria de se plasmar.

**Os artigos da seção Areópago são de responsabilidade de autores e autoras e não refletem, necessariamente, a opinião do Coletivo Bereia.

***Foto de capa: Vinicius Vieira/Pexels

“A jaula de ferro” do capital produzirá “uma noite polar, gélida, sombria e árdua”?

*Texto escrito no final de 2021

Seguimos ainda em 2021, ano que não acabou porque o Covid-19 anulou a contagem  do tempo por continuar sua obra letal. O 2022 não pôde, por ora, ser inaugurado. O fato é que o vírus colocou de joelhos todos os poderes, especialmente os militaristas, pois  seu arsenal de morte fez-se totalmente ineficaz. 

No entanto, o gênio do capitalismo, a propósito da pandemia, fez com que a classe capitalista transnacionalizada se reestruturasse mediante o Great Reset (a Grande Reinicialização), expandindo a recente economia digital mediante a integração dos gigantes: Microsoft,  Facebook, Apple, Amazon, Google, Zoom e outros com o complexo militar-industrial e de segurança. Tal evento representa a formação de um poder imenso, nunca havido antes. Notemos que se trata de um poder econômico de natureza capitalista  e que, portanto, realiza seu propósito essencial, o de maximização  dos lucros de forma ilimitada, explorando, sem consideração, os seres humanos e a natureza. A acumulação não é meio para um bem viver mas é um fim em si mesmo, vale dizer, a acumulação pela acumulação, o que é irracional.

A consequência desta radicalização do capitalismo  confirma o que  um sociólogo da universidade da Califórnia em Santa Bárbara, William I. Robinson, num artigo recente, bem observou (ALAI 20/12/2021): “À medida em que o mundo vai se livrando da pandemia, haverá mais desigualdade, conflitos, militarismo e autoritarismo e nesta mesma medida aumentarão as convulsões sociais e os conflitos civis; os grupos dominantes se empenharão por expandir o estado policial global para conter os descontentes em massa, vindos de baixo”. Com efeito, utilizar-se-á a inteligência artificial com seus bilhões e bilhões de algoritmos para controlar cada pessoa e a sociedade inteira. Esse brutal poder levará a humanidade para onde?

Sabendo da lógica implacável do sistema capitalista, Max Weber, um dos que melhor a analisou criticamente, um pouco antes de morrer, asseverou: “O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele é uma “jaula de ferro” (Stahlartes Gehäuse) que não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf. a pertinente análise de M. Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México 2017). Essa opinião é compartilhada por grandes nomes como Thomas Mann, Oswald Spengler, Ferdinand Tönnies, Eric Hobsbawn entre outros.

Vários modelos de sociedade-mundo estão sendo discutidos para o pós-pandemia. Os mais importantes além do Great Reset dos bilhardários, são: o capitalismo verde, o ecossocialismo, o bien vivir e convivir dos andinos, a biocivilização, de vários grupos e  do Papa Francisco entre outros. Não cabe aqui detalhar tais projetos, coisa que fiz no livro Covid-19: A Mãe Terra contra-ataca a Humanidade (Vozes 2020). Apenas diria: ou mudamos de paradigma de produção, de consumo, de convivência e,  especialmente, de relação para com a natureza, com respeito e cuidado, sentindo-nos parte dela e não  sobre ela como donos e senhores, ou então realizar-se-á o prognóstico de Max Weber: poderemos de 2030 até no máximo 2050, conhecer um armagedon ecológico-social extremamente danoso para a vida e para a Terra.

Neste sentido, meu sentimento do mundo me diz que quem irá destruir a ordem do capital, com sua economia, política e cultura, não seria nenhum movimento ou escola de pensamento crítico. Seria a própria Terra, planeta limitado que não suporta mais um projeto de crescimento ilimitado. A visível mudança climática, objeto de discussão e de tomada de decisão (praticamente nenhuma) das últimas COPs da ONU, o esgotamento crescente dos bens e serviços naturais, fundamentais para a vida (The Earth Overshoot) e a ameaça de  rompimento das principais das nove barreiras do desenvolvimento que não podem ser rompidas a preço do colapso da civilização, são alguns indicadores de uma iminente tragédia. 

Um número significativo de especialistas em clima  afirma que chegamos tarde demais. Com o já acumulado de gases de efeito estufa na atmosfera não poderemos conter a catástrofe, apenas, com ciência e tecnologia, minorar seus efeitos desastrosos. Mas a grande crise irreversível  virá. Por isso se fizeram céticos e  até tecno fatalistas.

Seremos pessimistas resignados ou, no sentido de Nietzsche, adeptos da “resignação heroica”? Estimo, como dizia um pré-socrático: devemos esperar o inesperado, pois, se não o esperarmos, quando ele vier, não o perceberemos. O inesperado pode ocorrer, dentro da perspectiva quântica: o sofrimento atual por causa da crise sistêmica não será em vão; ele está acumulando  energias benfazejas que, ao atingir certo nível de complexidade e de acumulação, darão um salto para uma outra ordem mais alta com um novo horizonte de esperança para a vida e para o planeta vivo, Gaia, a Mãe Terra. Paulo Freire cunhou a expressão esperançar: não ficar esperando que um dia a situação irá melhorar, mas criar as condições para que a esperança não seja vazia, senão que, com nosso empenho, a façamos efetiva.

Creio que esse salto, com a nossa participação, poderá ocorrer e estaria dentro das possibilidades da história do universo e da Terra: do atual caos destrutivo, podemos passar para um caos generativo de um novo modo de ser e de habitar o planeta Terra. A arca de Noé está sendo construída pelos movimentos ecológicos, pelo eco feminismo e pelos modelos alternativos de economia circular, pelos grupos políticos engajados numa biocivilização. É nisso que creio e espero, reforçado pela palavra da Revelação que afirma: “Deus criou todas as coisas por amor porque é o apaixonado amante da vida”(Sabedoria 11,26). Ele não permitirá que terminemos assim tragicamente. Ainda viveremos sob a luz benevolente do sol.

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Imagem de capa: Jeso Carneiro / Flickr

Despojar-se de tudo para ganhar tudo: o boneco de sal

Nos últimos tempos temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente à questão do Covid-19, de seu contexto que é a superexploração da Terra viva e da natureza pelo capitalismo globalizado, incluindo a China. Elas se defenderam enviando-nos uma gama de vírus (zika, ebola, febre aviária e suína e outros) e agora este que atacou a humanidade inteira, poupando outros seres vivos. A corrida desenfreada da acumulação desigual e todos tivemos que parar, entrar no isolamento social, evitar conglomerações e usar as incômodas máscaras. Acolhemos estas limitações em solidariedade uns com os outros e com os sofredores do mundo inteiro.

Essa situação severa enseja a ocasião de não apenas pensarmos no que virá após a pandemia mas de voltarmos sobre nós mesmos, sobre as questões cotidianas como a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca terminada mesmo sob o confinamento social. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.

Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe inúmeras barreiras: de profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo e outras. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes face a dados que não podemos mudar como a presença de uma pessoa com seus altos e baixos ou de um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível.

Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental:”se alguém sente profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância”. Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para os outros.

A outra tarefa consiste na busca da autorrealização. Esta, essencialmente, é a capacidade de desapegar-se. O zen-budismo coloca como teste de maturidade pessoal e de liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno, em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, dos parentes e das pessoas amigas. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irrefragavelmente vão diminuindo até cessarem e aí nos despedirmos da própria vida. Nestas despedidas temos crescido em nossa identidade mas à custa de deixarmos um pouco de nós mesmos para trás.

Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não guarda um sentido existencial a ser buscado pelo espírito? Se, na verdade, comparecemos como um projeto infinito e um vazio abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e de misericórdia, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca finalmente descansará, como o cor inquietum de Santo Agostinho?

Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que esta foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre Teresa, de Irmã Dulce e, creio eu, também do Papa Francisco, o maior dos humanos de hoje.

Talvez um estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda que produz um ganho.

“Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia compreendê-lo. Perguntou o boneco de sal:” Quem és tu? E o mar respondeu:”eu sou o mar”. Tornou o boneco de sal: “Mas que é o mar?” E o mar respondeu:” Sou eu”. “Não entendo”, disse o boneco de sal. “Mas gostaria muito de compreender-te; como faço”? O mar simplesmente respondeu: “toca-me”.

Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que o mar começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar, veja o que fizeste comigo”? E o mar respondeu:”Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te dares todo para me compreender todo”.

E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o boneco continuava perguntando: “que é o mar”? Até que uma onda o cobriu totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no mar: “Sou eu”.

Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.

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Foto de Capa: Pixabay/Reprodução

Lamento de cativeiro e de libertação

Neste dia, 20 de novembro de 2020, quando celebramos o dia da consciência negra, dia de reflexão contra o racismo e de reconhecimento da dignidade da população negra no Brasil (mais da metade da população), foi covardemente assassinado, a pancadas e sufocado até à morte, o negro João Alberto Freitas, de 40 anos, por dois seguranças e um policial num Carrefour de Porto Alegre. As cenas mostram inominável brutalidade e covardia e revelam todo o racismo presente em setores da sociedade e o quanto desumanos e cruéis podemos ser.

Em homenagem a João Alberto Freitas republico um texto lançado tempos atrás, mas que guarda permanente atualidade.

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A Paixão de Cristo continua pelos séculos afora no corpo dos crucificados. Jesus agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único de seus irmãos e irmãs que esteja ainda pendendo de alguma cruz, à semelhança dos bodhisatwas budistas (os iluminados) que param no umbral do Nirvana para retornarem ao mundo da dor – samsara – em solidariedade com quem sofre, pessoas, animais e plantas. Nesta convenção, a Igreja Católica, na liturgia da Sexta-feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras pungentes:

”Que te fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito, com maná de alimentei. Preparei-te bela terra, tu, a cruz para o teu rei”.

Celebrando a abolição da escravatura a 13 de maio de 1888, nos damos conta de que ela não foi completada ainda. A paixão de Cristo continua na paixão do povo negro. Falta a segunda abolição, da miséria e da fome. Ouvem-se ainda os ecos dos lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das favelas ao redor de nossas cidades. A população negra ainda nos fala em forma de lamento:

“Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.

Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da opressão.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu te dei em herança o prato do dia a dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica do Brasil. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.

Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, peça, escravo. Fui a mãe preta para teus filhos. Cultivei os campos, plantei o fumo e a cana. Fiz todos os trabalhos. Fui eu que construí as belas igrejas que todos admiram e os palácios que os donos de escravos habitavam. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre, mas livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu enviaste o capitão do moto para me caçar como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza, seja para sempre verdade cotidiana e efetiva.

Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Invadiste meus terreiros, jogando sal e destruindo nossos altares. Não raro, fizeste da macumba caso de polícia. A maioria dos jovens assassinados nas periferias, na idade entre 18 e 24 anos são negros, pelo fato de serem negros ou suspeitos de estarem a serviço das máfias da droga. A maioria deles são simples trabalhadores.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo:que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!

Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca diminuindo assim o valor de nossa alma de negros dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre tu decides em favor de um branco.

E quando se pensaram políticas que reparassem a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me negaste, estudar e me formar nas universidades e nas escolas técnicas assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social.

Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!”

Meus irmãos e irmãs negros, nesse dia 20 de novembro, dia de Zumbi e da consciência negra quero homenagear todos vocês que conseguiram sobreviver porque a alegria, a música e da dança está dentro de vocês, apesar de toda a via-sacra de sofrimentos que injustamente lhes são impostos.

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Foto de capa: Pixabay/Reprodução

Dentro de um inferno, algo do paraíso não se perdeu

Se olharmos os cenários mundiais, temos a impressão de que a dimensão de sombra, o impulso de morte e a porção demente tomou conta das mentes e dos corações de muitas pessoas. Particularmente em nosso país, criou-se até o “gabinete do ódio” onde grupos maus maquinam maldades, calúnias, distorções e todo tipo de perversidades contra seus adversários políticos, feitos inimigos que devem ser liquidados senão fisicamente, pelo menos simbolicamente.

Várias janelas do inferno se abriram e suas labaredas incineraram celebridades, alimentaram as fake news e destroçaram porções do Estado Democrático de Direito e em seu lugar introduziram um Estado sem lei e post-democrático e, no caso do Brasil, em sua cabeça, um chefe de Estado demente, cruel e sem compaixão.

Historiadores nos asseguram que há momentos na história de uma nação ou de um povo nos quais o dia-bólico (o que divide) inunda a consciência coletiva. Tenta afogar o sim-bólico (o que une) no intento de fazer regredir toda uma história aos tempos sombrios, já superados pela civilização. Então surgem ideologias de exclusão, mecanismos de ódio, conflitos e  genocídios de inteiras etnias. Conhecemos a Shoah, fruto do inferno criado pelo nazifascismo de extermínio em massa de judeus e de outros.

Na América Latina por ocasião da invasão/ocupação dos europeus, ocorreu talvez o maior genocídio da história. No México, em 1519 com a chegada de Hernán Cortez, viviam 22 milhões de aztecas; depois de 70 anos restaram somente 1,2 milhões. Foram católicos anticristãos que perpetraram extermínios em massa. Os gritos das vítimas clamam ao céu contra a “Destruição das “Índias” (Las Casas) e têm o direito de reclamar até o juízo final. Nunca se viu algum ato de reconhecimento deste genocídio por parte das potências colonialistas nem se dispuseram a fazer a mínima compensação aos sobreviventes destes massacres. São demasiados desumanos e arrogantes.

Mas dentro deste inferno dantesco, há algo do paraíso que nunca se perdeu e que constitui a permanente saudade do ser humano: saudade da situação paradisíaca na qual tudo se harmoniza, o ser humano trata humanamente outro ser humano, sente-se confraternizado com a natureza e filho e filha das estrelas, como dizem tantos indígenas. Em tempos maus como o nosso, vale ressuscitar esse sonho que dorme no profundo de nosso ser. Ele nos permite projetar outro tipo de mundo que, para além das diferenças, todos se reconhecem como irmãos e irmãs. E se entreajudam.

Narro um fato real que mostra a emergência desse pedaço de paraíso, ainda existente entre nós, lá onde a inimizade e a violência são diárias.

Essa não é uma história inventada mas real, recolhida por um jornalista espanhol do El País no dia sete de junho de 2001. Ocorreu no ontem, mas seu espírito vale para o hoje.

Mazen Julani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. No dia 5 de junho de 2001 quando estava tomando café com amigos num bar, foi vítima de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era a vingança contra o grupo palestinense Hamás que, quarenta e cinco minutos antes, havia matado inúmeras pessoas numa discoteca de Tel Aviv mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

Mas eis que a porção adormecida do paraíso em nós foi acordada. O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do filho morto: o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Essencial é que ajudem a salvar vidas. Por isso, arrematava ele: os órgãos serão destinados aos nossos vizinhos israelenses.

Com efeito, ocorreu um transplante. No israelense Yigal Cohen bate agora um coração palestino, o de Mazen Julani.

A mulher de Mazen teve dificuldades em explicar à filha de quatro anos a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente.

Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos iremos visitar a Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém. Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós, encostar o ouvido ao peito de Ygal e escutar o coração daquele que tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso demonstra que o paraíso não se perdeu totalmente. No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, surgiu um Jardim do Éden, de vida e de reconciliação. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana, alimenta atitudes de perdão e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que confere sentido à vida e que move, segundo Dante Alignieri da Divina Comédia, o céu e todas as estrelas. E eu diria, também o coração da esposa de Mazen Julani e o nosso.

São tais atitudes que nos fazem crer que o ódio reinante do Brasil e no mundo, as fake news e as difamações não terão futuro. É joio que não será recolhido, como o trigo, no celeiro dos homens nem de Deus. Esse tsunami de ódio e seu promotor maior que desgoverna nosso país, irá descobrir, um dia em que só Deu sabe, as lágrimas, os lamentos e o luto que provocaram em milhares de seus compatriotas que por sua falta de amor e de cuidado para com os afetados pelo Covid-19 perderam a quem tanto amavam. Oxalá neles não esteja totalmente perdida a parcela do Jardim do Éden.

Foto: Pixabay/Reprodução

O bispo poeta Pedro Casaldáliga e a tradição da mística poética espanhola

O bispo Pedro Casaldáliga (não gostava do título de Dom) foi transfigurado no dia 8 de agosto de 2020 com 92 anos de idade. Catalão, veio ao Brasil e foi sagrado bispo em 1971 para a Prelazia São Félix do Araguaia-MT. Foi pastor exemplar, profeta corajoso, poeta de grande altura e místico dos olhos abertos. Notabilizou-se por ficar decididamente do lado dos indígenas e peões expulsos de suas terras pelo avanço do latifúndio. Sua Carta Pastoral de 1971 “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social” provocou várias ameaças de morte e de expulsão do país pela ditadura Militar.

Aqui atenho-me apenas a alguns tópicos de sua poesia e de sua mística que se alinham à grande tradição espanhola de poetas místicos como São João da Cruz e como Santa Tereza d’Avila. Alguns estão em espanhol, outros em português.

Viveu a pobreza evangélica em grau extremo:

“Não ter nada
não levar nada
não poder nada
e de passagem, não matar nada
não calar nada.
Somente o Evangelho como faca afiada
e o pranto e o riso no olhar
E a mão estendida e apertada
e a vida,a cavalo, dada.
E este sol e estes rios e esta terra comprada
como testemunhas da ressurreição já estalada.
E mais nada”.

Corajoso, diz ao enfrentar os opressores:

“Onde tu dizes lei, eu digo Deus.
Onde tu dizes paz, justiça, amor
eu digo Deus.
Onde tu dizes Deus
eu digo liberdade, justiça, amor”

Estes valores são os verdadeiros nomes de Deus. Ameaçado de morte, escreve uma Cantiga à morte:

“Ronda a morte rondeira
a morte rondeira ronda
já o disse Cristo antes de Lorca. Que me rondarás,morena,
vestida de medo e sombra. Que te rodarei,morena,
vestido de espera e glória. Tu me rondas em silêncio
eu te rondo na canção. Tu me rondas de aguilhão eu te rondo de laurel.
Que me rondarás
que te rondarei. Tu para matar
eu para nascer. Que te rondarei
que me rondarás. Tu com guerra e morte
eu com guerra e Paz. Que me rondarás em mim;
ou nos pobres de meu Povo
ou nas fomes dos vivos
ou nas contas dos mortos. Me rondarás bala
me rondarás noite
me rondarás asa
me rondarás carro. Me rondarás ponte
me rondarás rio/sequestro, acidente
tortura, martírio,
temida. Chamada
vendida
comprada
mentida
sentida
calada
cantada. Que me rondarás
que te rondarei que me rondaremos
todos
eu
e Ele
Se com Ele morremos
com Ele viveremos
Com Ele morro vivo
por
Ele vivo morto
Tu nos rondarás
mas nós te pegaremos”.
Mas nada teme: Leva tranquilo suas visitas aos pobres.”
E chegarei de noite
com o feliz espanto
de ver
por fim
que andei
dia após dia;
sobre a própria palma de Tua Mão”.

Este poema nos remete a São João da Cruz do Cântico Espiritual, um dos mais belos da língua espanhola.

“Por aqui ya no hay camino”.
Hasta donde no lo habrá?
Si no tenemos su vino
la chicha no servirá”?
“Legarán a ver el dia
quanto con nosostros van?
Como haremos compañia
si no tenemos ni pan?”
Por donde iréis hasta el cielo
si por la tierra no vais?
Para quién vais al Carmelo
Si subis y no bajáis”?
Sanará viejas feridas
las alcuzas de la ley?
Son banderas o son vidas
las batallas de este Rey”?
“Es le curia o es la calle;
donde grana la misión?
Si dejáis que el Viento calle
que oiréis en la oración?”
“Si no oís la voz del Viento
qué palabra llevaréis?
Que daréis por sacramento
si no os dais en lo que teneis”?
“Si cedéis ante el imperio
la Esperanza y la Verdad
Quién proclamará el misterio
de la entera Libertad”?
“Si el Señor es Pan y Vino
y el Camino por do vais
Si al andar se hace camino
qué camino esperáis?”

Vivia num “palácio” de madeira de terceira qualidade, totalmente desnudado. Era tão identificado com os indígenas e os peões assassinados, que quis ser enterrado no “Cemitério do Sertão” onde eles, anônimos, jazem:

“Para descansar
quero só esta cruz de pau
como chuva e sol;
estes sete palmos e a Ressurreição”.

E assim imaginou o Grande Encontro com o Amado que serviu nos condenados da terra:

“Ao final do caminho me dirá
E tu, viveste? Amaste?
E eu, sem dizer nada,
Abrirei o coração cheio de nomes”

O clamor de sua profecia, a total entrega de Pastor aos mais oprimidos, a poesia que nutre nossa beleza e sua mística de olhos abertos e das mãos operosas, permanecerão como um legado perene às comunidades cristãs, ao nosso país índio e caboclo que ele tanto amou e à humanidade inteira.

O que poderá vir depois do coronavírus?

Muitos já sentenciaram: depois do coronavírus não será mais possível levar avante o projeto do capitalismo como modo de produção, nem do neoliberalismo como sua expressão política. O capitalismo é somente bom para os ricos; para os demais é um purgatório ou um inferno e, para a natureza, uma guerra sem tréguas.

O que nos está salvando não é a concorrência – seu motor principal – mas a cooperação; nem o individualismo – sua expressão cultural – mas a interdependência de todos com todos.

Mas vamos ao ponto central: descobrimos que a vida é o valor supremo, não a acumulação de bens materiais. O aparato bélico montado, capaz de destruir por várias vezes, a vida na Terra se mostrou ridículo face a um inimigo microscópico invisível, que ameaça a humanidade inteira. Seria o Next Big One (NBO) o qual temem os biólogos, “o próximo Grande Vírus”, destruidor do futuro da vida? Não cremos. Esperamos que a Terra tenha, ainda compaixão de nós e nos dê apenas uma espécie de ultimato.

Já que o vírus ameaçador provém da natureza, o isolamento social nos oferece a oportunidade de nos questionarmos: qual foi e como deve ser nossa relação com a natureza e, em termos mais gerais, face à Terra como Casa Comum? Não são suficientes a Medicina e a Técnica, por mais que necessárias. A função destas é atacar o vírus até exterminá-lo.

Mas, se continuarmos a agredir a Terra viva, “nosso lar com uma comunidade de vida única” como diz a Carta da Terra (Preâmbulo) ela contra-atacará de novo com pandemias mais letais, até uma que nos exterminará.

A maioria da humanidade e dos chefes de Estado não têm consciência de que estamos dentro da sexta extinção em massa. Até hoje não nos sentíamos parte da natureza e nós, humanos, a sua porção consciente. Pelo contrário; nossa relação não com um ser vivo, Gaia, que possui valor em si mesmo e deve ser respeitado, mas sim de mero uso em função de nossa comodidade e enriquecimento. Exploramos a Terra violentamente a ponto de 60% dos solos terem sido erodidos; na mesma proporção as florestas úmidas e causamos uma espantosa devastação de espécies, entre 70-100 mil por ano. É a vigência do antropoceno e do necroceno. A continuar nesta rota vamos ao encontro de nosso próprio desaparecimento.

Não temos outra alternativa senão fazermos, nas palavras da encíclica papal “sobre o cuidado da Casa Comum” uma radical conversão “radical conversão ecológica”.

Nesse sentido o coronavírus é mais que uma crise como outras, mas a exigência de uma relação amigável e cuidadosa para com Natureza.

Como implementá-la num mundo montado sobre a exploração de todos os ecossistemas? Não há projetos prontos. Todos estão em busca. O pior que nos pode acontecer, seria, passada a pandemia, voltarmos ao que era antes: as fábricas produzindo a todo vapor ainda que com certo cuidado ecológico. Sabemos que grandes corporações estão se articulando para recuperar o tempo e os ganhos perdidos.

Mas há que conceder que esta conversão não poderá ser repentina, mas processual. Quando o Presidente francês Macron disse que “a lição da pandemia era de que existem bens e serviços que devem ser colocados fora do mercado” provocou a corrida de dezenas de grandes organizações ecológicas, tipo Oxfam, Attac e outras pedindo que os 750 bilhões de Euros do Banco Central Europeu destinados a sanar as perdas das empresas fossem direcionados à reconversão social e ecológica do aparato produtivo buscando assim mais cuidado para com a natureza, mais justiça e igualdade sociais. Logicamente isso só se fará ampliando o debate, envolvendo todo tipo de
grupos, desde a participação popular ao saber científico, até surgir uma convicção e uma responsabilidade coletivas.

De uma coisa devemos ter plena consciência: ao crescer o aquecimento global e ao aumentar a população mundial devastando habitats naturais e assim aproximando os seres humanos aos animais, estes transmitirão mais vírus que encontrarão em nós novos hospedeiros para os quais não estamos imunes. Daí surgirão as pandemias devastadoras.

O ponto essencial e irrenunciável é a nova concepção da Terra, não mais como um mercado de negócios colocando-nos como senhores (dominus), fora e acima dela, mas, como um super Ente vivo, um sistema autoregulador e autocriativo, do qual somos a parte consciente e responsável, junto com os demais seres como irmãos (frater). A passagem do dominus (dono) a frater (irmão) exigirá uma nova mente e um novo coração. Isto é, ver de modo diferente a Terra e sentir com o coração a nossa pertença a ela e ao Grande Todo. Junto a isso o sentido de inter-retro-relacionamento de todos com todos e uma responsabilidade coletiva face ao futuro comum. Só assim chegaremos, como prognostica a Carta da Terra, a “um modo sustentável de vida” e a uma garantia de futuro da vida e da Mãe Terra.

A atual fase de recolhimento social pode significar uma espécie de retiro reflexivo e humanístico para pensarmos sobre tais coisas e sobre a nossa responsabilidade face a elas. O tempo é curto e urgente e não podemos chegar tarde demais.

*Leonardo Boff escreveu “Como cuidar da Casa Comum”, Vozes 2018 e “A opção Terra: a solução da Terra não cai do céu”, Record 2009.

Pentecostes: vem Espírito de vida e salva-nos!

Todos nos sentimos perdidos.

Investigadores, médicos e médicas, epimiologistas, biólogos e todos os saberes que instauramos, todos não conhecemos o Covid-19 nem sabemos como enfrentá-lo eficazmente com uma vacina. Oxalá não seja o que alguns biólogos, há muito, temem: o NBO (Next Big One) “o próximo grande” vírus que fará desaparecer a espécie humana.

Além do Covid-19 e dos vários vírus já conhecidos, enfrentamos tempos ecologicamente ameaçadores, com  o aquecimento global, a sexta extinção em massa, a erosão da biodiversidade e outras.

Além de usarmos os meios científicos que nos estão deixando desamparados, temos uma referência de uma outra ordem que não é contra a inteligência, mas vai além de seu alcance, que é a inteligência espiritual, que capta o Espírito Criador. Ela é uma dimensão de nossa realidade quando entendida holisticamente.

Este Espírito Criador responde pelo surgimento do Universo com suas bilhões de galáxias e trilhões de estrelas e planetas, Aquele que existia antes do antes e que fez surgir aquele ínfimo ponto, carregado de energia e que, explodindo (big bang).. deu origem ao Universo. Ele continua presidindo todo o processo cosmogênico, o nosso planeta, e a cada um de nós, pois é o Spiritus Creator, o Pneuma, o Sopro de Vida. Nas linguas médio-orientais ele é sempre feminino, ligado à mulher que gera.

Nesses momentos de crise, surge a ocasião de invocá-Lo e suplicar-Lhe:

Tu que és Fonte de Vida, salva nossas vidas, as vidas dos mais vulneráveis, as vidas de toda a humanidade”.

Ele, diz o Gênesis logo no início, pairava sobre o “touwabou” (em hebraico), o caos originário; dele tirou todas as coisas e as colocou em sua devida ordem, no céu e na terra e por fim ,nos seres humanos, homens e mulheres.

Alargando o horizonte, releva reconhecer que sua criação está ameaçada para além dos efeitos letais da Covid-19. A ameaça não vem de algum meteoro rasante, como há 65 milhões de anos, que exterminou os dinossauros depois de viverem por mais de cem milhões de anos por sobre a Terra. O meteoro rasante atual se chama homo sapiens e demens, duplamente demens (inteligente e demente e duplamente demente). Por sua relação agressiva para com a Terra e para com todos os seus ecossistemas, pode eliminar a vida humana, destruir nossa civilização e afetar gravemente toda a biosfera.      

É num contexto assim que refletiremos sucintamente e invocaremos a ação sanadora e recriadora do Espírito Santo. Nossas fontes referenciais são os textos dos dois Testamentos judaico-cristãos e a experiência humana, cujo espírito é animado pelo Espírito Criador, chamado pela liturgia desta festa de “luz beatíssima”.

Pensar o Espírito Santo nos obriga a ir além das categorias clássicas com as quais se elaborou o discurso ocidental, tradicional e convencional da Teologia. Deus, Cristo, a graça e a Igreja foram pensadas dentro de categorias metafísicas da filosofia grega, de substância, de essência e de natureza. Portanto, por algo estático e sempre já circunscrito de forma imutável. Este paradigma foi feito oficial pela teologia cristã.

Entretanto, pensar o Espírito implica assumir outro paradigma: o do movimento, da ação, do processo, da emergência, da história e do novo e do surpreendente. Este não pode ser apreendido com a terminologia substancialista, mas com a do vir-a-ser.

Este paradigma nos aproxima da moderna cosmologia e da física quântica. Estas veem todas as coisas em gênese, emergindo a partir de um fundo de Energia Inominável, Misteriosa e Amorosa que está antes do antes, no tempo e no espaço zero. Ela sustenta o universo e todos os seres nele existentes e penetra de ponta a ponta o cosmos e nos penetra totalmente. Essa Energia de Fundo, chamada também de o Abismo Originador de todo o ser, é a melhor metáfora do Espírito Criador, que é tudo isso e ainda mais.

Redizer o terceiro artigo do Credo cristão: ”Creio no Espírito Santo” nestes moldes, significa uma tarefa nova,  cientes de que ficamos sempre aquém daquilo que deveríamos dizer sobre o Espírito Criador.

Finalmente, cabe reconhecer que tocamos no mistério. Este não se opõe ao conhecimento, pois o mistério é o ilimitado de todo conhecimento. Este sempre conhece mais e mais, mas o mistério permananece em todo o conhecimento. Este é, por natureza, sempre limitado. Este mistério se revela mas também se vela. A missão dos que o acolhem e se entregam à sua reflexão sistemática, como os teólogos e as teólogas, também os que se dedicam à filosofia (como F. Hegel, cuja categoria central é o Espírito Absoluto) é buscar incessantemente esta revelação.

É próprio do Espírito esconder-se dentro dos processos evolucionários e da história. É próprio do ser humano descobri-Lo. Ele “sopra onde quer e não sabemos nem de onde vem nem para onde vai” (cf. Jo,38). Mas isso não nos exime da tarefa de des-ocultá-Lo.

É o que esperamos ardentemente: que este Espírito se manifeste e inspire os espíritos de nossos investigadores para que descubram uma vacina que salve nossas vidas. E quando através da pesquisa deles, Ele irrompe surpreendentemente, nos alegramos e celebramos, ébrios de gratidão por sua ação mediada pelo espírito humano.

O Pentecostes, uma das maiores das Igrejas cristãs. É uma festa sem fim, pois o Espírito está permanente em ação e se prolonga ao longo e ao largo de toda a história, e nos alcança até nos dias em que sofremos, nos angustiamos e tememos a letalidade do coronavírus.

Spiritus Creator nunca abandonou sua criação, mesmo nas 15 grandes dizimações pelas quais ela passou. E não nos vai abandonar agora. Veni Creator Spiritus et salva nos”.

***

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu O Espírito Santo: fogo interior, doador de vida e pai dos pobres, Vozes 2013.

O dia internacional da mulher nos desafia a pensar

O dia internacional da mulher nos oferece a oportunidade de pensar o desafio que o movimento feminista mundial nos lança.

Esse movimento, mais que outros, fez duas revoluções: colocou em questão o machismo e o patriarcalismo. O machismo, como a dominação do homem sobre a mulher, que já se perpetua há séculos.

A luta das mulheres nos desperta para a questão de gênero que envolve relações de poder, que no sistema patriarcal é somente. É necessário haver partilha entre homem e  mulher, evitar divisão sexual de trabalho e priorizar a lógica da distribuição e coparticipação em todo o projeto de vida a dois. Daí surge uma relação mais justa e harmoniosa.

Em segundo lugar, o movimento feminista fez, talvez, a crítica mais consistente à cultura patriarcal, que organizou toda a sociedade e as várias instâncias da vida e também da religião. O homem assumiu o poder através do qual submete os demais, chefia o Estado, cria a burocracia, organiza o exército e faz guerras. Quase todos os heróis e a maioria das divindades são masculinas. Ele ocupa a vida pública e relega à mulher à vida privada e familiar. O patriarcado, pela crítica feminista, foi teoricamente desmantelado, embora na prática, tente sempre de novo dominar a mulher. Um refúgio especial do patriarcado é a mídia e o marketing, que usam a mulher não só no seu todo, mas partes dela, os seios, as pernas, as partes íntimas. É uma forma de transformar a mulher em objeto e uso.

A grande contribuição do feminismo foi ter mostrado que todas ou quase todos as culturas, nos dias de hoje, são patriarcais. Como consequência, a manutenção da desigualdade na relação homem-mulher se perpetua em todos os âmbitos. Seja nos USA, na Alemanha ou no Brasil, uma mulher pode fazer o mesmo trabalho do homem, até o mais competente, mas pelo fato de ser mulher, ganha pelos menos 20-30% a menos que o homem que executa a mesma função. Não basta a consciência da superação teórica do patriarcado, mas a demolição de seus hábitos mantidos nas instituições e comportamentos sociais.

Mas nem sempre foi assim. O ser humano existe há 7-8 milhões de anos. Na primeira fase, que durou milhões de anos, as relações homem-mulher eram de harmonia e de equilíbrio com a natureza. Contrariamente do que crê o pensamento patriarcal, a verdadeira convivência humana não foi regida pela violência de uns sobre outros mas pela solidariedade e cooperação. A violência é recente no processo da antropogênese. Ela começou com o homo faber há dois milhões de anos, que na busca dos alimentos, especialmente da caça, começou a usar o instrumento e a força. O masculino passa, então, a ser o gênero predominante. Ela ganhou hegemonia ao surgir, há 8 mil anos, a agricultura, as vilas, as cidades e os impérios. As relações homem-mulher passam a ser de desigualdade: ele ocupa toda a vida pública, governa sozinho e relega a mulher à função de procriadora e cuidadora do lar.

As mudanças que sempre se buscaram, culminaram no século XX com a segunda revolução industrial, quando a mulher entra no domínio público porque o sistema competitivo faz mais máquinas que machos. Já no final do século XX e até hoje as mulheres são maioria na humanidade e praticamente 50% da força de trabalho mundial. Com isso se cerra, de certa forma, o ciclo patriarcal e se inicia um novo paradigma de valorização das diferenças e a busca da igualdade ainda a ser alcançada.

As mulheres trazem para o sistema produtivo e para o Estado algo radicalmente novo. Não será só competitivo e autoritário. A mulher traz o que viveu no domínio privado: os valores da solidariedade, da partilha e do cuidado. Milenarmente foi educada para o altruísmo. Se um bebê não tiver à sua disposição alguém altruísta que o ampare, não consegue durar, sequer, uns dias. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público masculino é condição essencial de humanização e mais cooperação no mundo do trabalho e, o que é fundamental, reverter o processo de destruição da natureza e da espécie humana.

Isso ficou claro na consciência coletiva no Relatório da ONU para o Fundo para a População (FNUAP) que sustenta: “a raça humana vem saqueando a Terra de forma insustentável e dar às mulheres maior poder de decisão sobre o seu futuro pode salvar o planeta de sua destruição”. Veja que aqui não se fala de “poder de participação”que elas sempre tiveram, mas de “poder de decisão”.

São elas que entendem de vida, pois a geram. Serão elas as principais protagonistas na decisão de uma biocivilização acentada no cuidado, na solidariedade e na lógica do coração, sem as quais a vida não viceja. Elas, junto com os homens que desentranharam a sua dimensão de “anima”(cuidado, gentileza e amorosidade) que se articula com a dimensão de “animus” (razão, organização,direção) presentes, em proporções próprias em cada pessoa, poderão dar um rumo novo à nossa existência neste planeta e nos afastar do caminho sem retorno, caminho de perdição.

Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro o livro Feminino & Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças, Record, Rio 2010.

A vantagem da imperfeição

Em tempos de risco à nossa liberdade é fundamental pensarmos na sua importância. Nascemos completos, mas imperfeitos. Não possuímos nenhum órgão especializado, como a maioria dos animais. Para sobreviver, temos que trabalhar e intervir na natureza. Os mitos esclarecem esta situação.

Os indígenas guaicuru, do Mato Grosso do Sul, perguntaram-se o porquê da imperfeição e do alto significado da liberdade. Demoraram longo tempo para chegar a uma resposta. A explicação veio pelo seguinte mito, portador de verdade.

O Grande Espírito criou todos os seres, e colocou grande cuidado na criação dos humanos. Cada grupo recebeu uma habilidade especial para sobreviver sem maiores dificuldades. A alguns deu a arte de cultivar a mandioca e o algodão, deste modo, podiam se alimentar e vestir. A outros deu a habilidade de fazer canoas leves e o timbó, desta forma, podiam se locomover rapidamente e pescar.

Assim fez com todos os grupos humanos na medida em que se distribuíam pelo mundo, mas com os guaicuru não aconteceu de igual modo. Quando quiseram sair para as vastas terras, o Grande Espírito não lhes conferiu nenhuma habilidade. Esperaram, suplicando por muito tempo e nada lhes foi comunicado. Mesmo assim resolveram partir. Sentiram muita dificuldade em sobreviver e logo resolveram procurar intermediários do Grande Espírito para receber uma habilidade.

Primeiro, dirigiram-se ao vento, que soprava aos quatro cantos: “Tio vento, tu que sopras pelas campinas, sacodes as matas e passas por cima das montanhas, venha nos socorrer”. Mas o vento que sacudia as folhas sequer ouviu o pedido dos guaicuru. Em seguida, se voltaram para o relâmpago, que estremece toda a terra. “Tio relâmpago, você que é parecido com o Grande Espírito, ajude-nos”. Mas o relâmpago passou tão rápido que sequer escutou o pedido deles. Suplicaram às árvores mais altas, aos cumes das montanhas, às águas correntes dos rios: “Meus irmãos, intercedam por nós junto ao Grande Espírito para não morrermos de fome”, mas nada acontecia.

Desesperados, vagavam por várias paragens, até que pararam debaixo do ninho de um gavião-real. Este, ouvindo seus lamentos, resolveu intervir e disse: “Vocês, guaicuru, estão todos errados e são uns grandes bobos”.

“Como assim?”, responderam juntos. “O Grande Espírito se esqueceu de nós. Você que deve ser feliz, recebeu o dom de um olhar penetrante e consegue até perceber um ratinho na boca da toca e caçá-lo”.

“Vocês não entenderam nada da lição do Grande Espírito”, retrucou o gavião-real. “A habilidade que Ele lhes deu está acima de todas as outras. Ele vos deu a liberdade. Com ela vocês podem fazer o que desejarem.”

Os guaicuru ficaram perplexos e cheios de curiosidade. Pediram ao gavião-real que lhes explicasse melhor esta curiosa habilidade. Ele, cheio de garbo, esclareceu: “Vocês podem caçar, pescar, construir malocas, fazer belas flechas, pintar os corpos, os potes, viajar para outros lugares e até decidir o que querem de bom para vocês e para a própria natureza”.

Os guaicuru se encheram de alegria e diziam uns aos outros: “Que bobos nós fomos, pois nunca discutimos juntos a vantagem de sermos imperfeitos. O Grande Espírito nunca se esqueceu de nós. Deu-nos a melhor habilidade, de não estarmos presos a nada, mas de podermos inventar coisas novas, sabendo das vantagens de nossa imperfeição“.

O cacique guaicuru perguntou ao gavião-real: “Posso experimentar a liberdade?”. “Pode”, respondeu o gavião. O cacique tomou uma flecha e derrubou do alto de uma jaqueira uma grande fruta. E todos se deliciaram.

Desde aquele momento os guaicuru exerceram a liberdade. Tornaram-se grandes cavaleiros e nunca puderam ser submetidos por nenhum outro povo. A liberdade os conduzia a novas formas de se defender e garantir a melhor habilidade dada pelo Grande Espírito.

Os mitos nos inspiram grandes lições, especialmente nos dias atuais, quando forças poderosas, nacionais e internacionais, nos querem submeter, limitar e até tirar nossa liberdade. Devemos ser como os guaicuru: saber defender o maior dom que temos, a liberdade. Devemos resistir, nos indignar e nos rebelar, pois só assim faremos o nosso próprio caminho como nação soberana e altiva. E jamais aceitarmos que nos imponham o medo, ou que roubem a nossa liberdade.

Um desafio: a salvaguarda da unidade da família humana

Há o risco real de que a família humana seja bifurcada, entre aqueles que se beneficiam dos avanços tecnológicos, da biotecnologia, da inteligência artificial e da nanotecnologia e dispõem de todos os meios possíveis de vida e de bem-estar, cerca de 1,6 bilhões de pessoas, podendo prolongar a vida até aos 120 anos que corresponde à idade possível das células. E a outra humanidade, os restantes mais de 5,4 bilhões, barbarizados, entregues à sua sorte, podendo viver, se tanto, até os 60-70 anos com as tecnologias convencionais num quadro perverso de pobreza, miséria e exclusão.

Esse fosso deriva do horror econômico que tomou a cena histórica sob a dominação do capital globalizado especialmente do especulativo sob a regência cruel do neoliberalismo radical. Considerando-se triunfante face ao socialismo real cuja derrocada se deu no final dos anos 80, exacerbou seus princípios como a competição,o individualismo, a privatização e a difamação de todo tipo de política e satanização do Estado, reduzido ao mínimo. Cerca de 200 megacorporações, cujo poder econômico equivale a 182 países, conduzem junto com os organismos da ordem capitalista como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio a economia mundial sob o princípio da competição sem qualquer sentido de cooperação e de respeito ecológico da natureza. Tudo é feito mercadoria, do sexo à religião, numa volúpia de acumulação desenfreada de riquezas e serviços à custa da devastação da natureza e da precarização ilimitada dos postos de trabalho.

Há o risco real de que a família humana seja bifurcada, entre aqueles que se beneficiam dos avanços tecnológicos, da biotecnologia, da inteligência artificial e da nanotecnologia e dispõem de todos os meios possíveis de vida e de bem-estar, cerca de 1,6 bilhões de pessoas, podendo prolongar a vida até aos 120 anos que corresponde à idade possível das células. E a outra humanidade, os restantes mais de 5,4 bilhões, barbarizados, entregues à sua sorte, podendo viver, se tanto, até os 60-70 anos com as tecnologias convencionais num quadro perverso de pobreza, miséria e exclusão.

O risco consiste em que os muito ricos criem um mundo só para si, que rebaixem os direitos humanos a uma necessidade humana que deve ser atendida pelos mecanismos do mercado (portanto só tem direitos quem paga e não quem é simplesmente pessoa humana), que façam dos diferentes desiguais e dos desiguais dissemelhantes, aos quais se nega praticamente a pertença à espécie humana. São outra coisa, óleo gasto,zeros econômicos.

No Ocidente que hegemoniza o processo de globalização, a ideia de igualdade politicamente nunca triunfou. Ela ficou limitada ao discurso religioso-cristão, de conteúdo idialístico. Esse déficit de uma cultura igualitária impediria a bifurcação da família humana. Pode triunfar uma idade das trevas mundial que se abateria sobre toda a humanidade. Seria a volta da barbárie.

O desafio a ser enfrentado é fazer tudo para manter a unidade da família humana, habitando a mesma Casa Comum. Todos são Terra, filhos e filhas da Terra, para os cristãos, criados à imagem e semelhança do Criador, feitos irmãos e irmãs de Cristo e templos do Espírito. Todos têm direito de serem incluídos nesta Casa Comum e de participarem de seus dons.

Para dar corpo a este desafio precisamos de uma outra ética humanitária que implica resgatar os valores ligados à solidariedade, à empatia e à compaixão. Importa recordar que foi a solidariedade/cooperação que permitiu a nossos ancestrais, há alguns milhões de anos, darem o salto da animalidade à humanidade. Ao saírem para recoletar alimentos, não os comiam individualmente como o fazem os animais. Antes, reuniam os frutos e a caça e os levavam para o grupo de coiguais e os repartiam solidariamente entre todos. Deste gesto primordial nasceu a socialidade, a linguagem e a singularidade humana. Será hoje ainda a solidariedade irrestrita, a partir de baixo, a compaixão que se sensibiliza diante do sofrimento do outro e da Mãe Terra, que garantirão o caráter humano de nossa identidade e de nossas práticas. Foi o que vergonhosamente faltou aos grandes credores internacionais que face à tragédia do tsunami do sudeste da Ásia não perdoaram os 26 bilhões de dívidas daqueles países flagelados, Apenas protelaram por um ano, o seu pagamento.

Sem o gesto do bom samaritano que se verga sobre os caídos da estrada ou a vontade de infinita compaixão do bodhisatwa que renuncia penetrar no nirvana por amor à pessoa que sofre, ao animal quebrantado ou à árvore mirrada, dificilmente faremos frente à desumanidade cotidiana que está se naturalizando a nível brasileiro e mundial.

Na perspectiva dos astronautas, daqueles que tiveram o privilégio de ver a Terra de fora da Terra, Terra e Humanidade formam uma só entidade, complexa mas una. Ambas estão agora ameaçadas. Ambas possuem um mesmo destino comum e comparecem juntas diante do futuro. Sua salvaguarda constitui o conteúdo maior de um ancestral sonho: todos sentados à mesa, numa imensa comensalidade, desfrutando dos frutos da boa e generosa Mãe Terra.

 Se o cristianismo e os demais caminhos espirituais não ajudarem a realizar esse sonho e não levarem as pessoas a concretizá-lo, não teremos cumprido a missão que o Criador nos reservou no conjunto dos seres, que é a de sermos o anjo bom e não o Satã da Terra. Nem teremos escutado e seguido Aquele que disse: “Vim trazer vida e vida em abundância”(Jo 10,10).

Importa conscientizarmo-nos de nossa responsabilidade, sabendo que nenhuma preocupação é mais fundamental do que cuidar da única Casa Comum que temos e de alcançar que toda a família humana, superando as contradições sempre existentes, possa viver unida dentro dela com um mínimo de cuidado, de solidariedade, de irmandade, de compaixão e de reverência face ao Mistério de todas as coisa, que produzem a discreta felicidade pelo curto tempo que nos é concedido passar por esse pequeno, belo e radiante Planeta.

 Uma utopia? Sim, mas necessária se quisermos sobreviver.