Jejum ajudou a diminuir pandemia no Brasil?
Debate entre influenciadores evangélicos, mensagens nas redes sociais de políticos e até declarações do Presidente Bolsonaro provocam uma guerra de números e estatísticas. Todavia, só há uma certeza: o Brasil precisa ampliar a testagem da população, a coleta, o tratamento, análise e divulgação dos dados. Em meio à pandemia, uma das questões centrais é a necessidade de transparência, dados confiáveis e atualizados.
O Deputado Federal Marco Feliciano (PODE/SP) publicou em seu perfil no Twitter em 14 de abril:
O deputado citou “dados do Ministério da Saúde” – e não foi o único a se referir a números sobre a COVID-19 que são conflitantes. Foram muitas as postagens sobre dados com respeito a infectados e mortos que apareceram nas mídias sociais nos últimos dias. Bereia checou a guerra de índices e narrativas sobre os infectados e os óbitos por COVID-19 (nome da doença causada pelo coronavírus).
Há narrativas que tentam associar alguns números à queda de mortes devido o “Dia de Jejum Nacional de combate à COVID-19″, que aconteceu dia 05 de abril de 2020 por meio de uma convocação feita pelo Presidente Jair Bolsonaro nas mídias sociais. Essa abordagem provocou uma disseminação considerável de dados incorretos.
LETALIDADE ALTA – O vírus é mais letal que H1N1 e continua matando
A comparação entre H1N1 e COVID-19 demonstra que o vírus atual é mais letal, inclusive, porque é capaz de provocar danos no organismo, diretamente. Mesmo que a taxa de letalidade do novo vírus seja de 0,5% a 1%, como sugerem consultores científicos do governo britânico, a letalidade seria, ainda, muito maior do que a da pandemia de H1N1, que é estimada em 0,02%, segundo um estudo liderado pela cientista Maria Van Kerkhove, da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Além da letalidade dez vezes maior do que o H1N1, o impacto maior da atual pandemia é sobre os sistemas de saúde. Até os países com mais recursos sofrem com a falta de leitos. Em todo o mundo, a taxa de ocupação é de 14 a 21 dias de internação em UTIs. A noção de que somente os idosos e pessoas com doenças preexistentes ficam doentes, também não é verdade.
A GUERRA DOS NÚMEROS – De Nova York a Brasília
Nos Estados Unidos, o debate sobre o número de mortos e infectados pela COVID-19 aumentou quando o prefeito de Nova York sugeriu que o número poderia ser maior. De fato, um dos maiores desafios na estatística é a inclusão de pacientes que morreram fora de hospitais, mas que já tinham testado positivo, bem como aqueles não testados mas que manifestavam os sintomas da doença.
No Brasil, os números também estão sendo debatidos. Em parte, a confusão é provocada pelas diferenças nas métricas, comparação de números sem tratamento epidemiológico (por semanas de evolução da doença) e, principalmente, pela não testagem da população. Por falta de coordenação, prefeituras e governos estaduais estão tomando decisões em relação a testes, equipamentos e tratamentos diversos de forma desarticulada.
Enquanto o Ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) esteve à frente do processo de combate à pandemia pelo governo federal, os protocolos da OMS foram seguidos, e os óbitos e casos eram contabilizados considerando-se cada cem mil habitantes. Esta tem sido a prática adotada para taxas oficiais, em todas as epidemias. É desta forma que o Instituto Nacional do Câncer (INCA) trata o avanço dos casos, e as prefeituras e governos acompanham os casos de dengue e meningite (número/cem mil habitantes).
Em postagem no Twitter, em 15 de abril de 2020, o Presidente Jair Bolsonaro expôs outra forma de contabilização dos casos: por milhão de habitantes. Ainda que matematicamente possível, faz parecer que a mortalidade é menor. Este tipo de contagem mostra, apenas, a gravidade do problema sob outra perspectiva. Além disso, o dado atual é de que a letalidade está em 10 óbitos/milhão de habitantes.
DA ESPANHOLA à COVID-19 – a pandemia sempre nasce da mutação de um vírus
A gripe “espanhola” que se tornou uma pandemia, de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, infectou 500 milhões de pessoas em dois anos. O surto ganhou esse nome por causa da liberdade da imprensa espanhola em noticiar os casos, incluindo até a família real espanhola. Na época, não havia o sequenciamento genético dos vírus – algo que ajuda a entender melhor como as doenças se espalham, por isso, a origem acertada da “gripe espanhola” é desconhecida.
Atualmente, por conta do sequenciamento genético possível, a OMS passou a designar as doenças por siglas, como a COVID-19, causada pelo SARS-COV-2. O vírus é uma mutação de outro conhecido anteriormente, que provoca Síndrome Aguda Respiratória – ou seja, uma doença que acomete os pulmões e impede a pessoa de respirar. A falta de UTIs, de respiradores e a evolução rápida para o óbito fazem da atual pandemia um desafio global.
Ao lado da mudança de nome e da leitura dos casos a cada cem mil habitantes, os cientistas também verificam grau de contágio e, principalmente, as evoluções por semanas. Saber se o vírus contagia mais pessoas e verificar em quantas semanas os pacientes pioram é essencial para a prevenção e o tratamento. Até 19 de abril de 2020, segundo dados da Universidade Johns Hopkins (EUA), foram confirmados 2.401.379 casos de COVID-19 no mundo e 165.044 mortes . Até a mesma data, o Brasil confirmou 38.654 casos e 2.462 mortes.
No Brasil são feitos poucos testes, sendo o país com uma das menores proporções no mundo e isso impacta de forma significativa na subnotificação. Além disso, há desafios relacionados às dificuldades existentes para a atribuição da causa da morte. Com isso, o número de mortes confirmadas e divulgadas pode não ser precisa em relação ao número real de mortes por COVID-19. A cada dia somam-se aos resultados divulgados, óbitos que ocorreram entre 1 e 30 dias anteriores à essa data de divulgação. Ou seja, além da pressão sobre leitos de UTI, o país pode experimentar também uma pressão sobre a coleta de dados e registro de óbitos. Chama a atenção, em todos os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, uma nota: os dados podem ser revistos.
POR QUE PRECISAMOS SABER LER GRÁFICOS?
Em 14 de abril de 2020, o pastor Marcos de Souza Borges, também conhecido como Pr. Coty, um dos diretores da organização Jovens com uma Missão (JOCUM), publicou no Instagram que a redução do número de mortes no Brasil por coronavírus coincide com o 5 de abril, dia do Jejum Nacional. O pastor induziu seus leitores à conclusão de que a campanha religiosa convocada pelo Presidente da República foi bem sucedida no combate ao vírus.
Bereia checou vários exemplares do Boletim Epidemiológico (material publicado pelo Ministério da Saúde) de onde foi retirado o gráfico do pastor Coty (Boletim Epidemiológico 8). A cada dia, novos óbitos são incluídos nas estatísticas, isso se dá em função da demora na confirmação do laudo da causa morte por COVID-19. Há um tempo de testagem que precisa esperar e uma fila cada vez maior diante do aumento do número de casos. O colapso que se anuncia para o sistema de saúde inclui a capacidade de diagnóstico e análise de dados. E esses desafios somam-se à questão da subnotificação.
Ao analisar os boletins 8, 9 e 10 do Ministério, foi possível identificar que a cada dia é indicado um número que pode ser revisto – cerca de 20% dos óbitos anunciados ainda não tinham sido confirmados como tendo sido causados ou não por COVID-19. Além desse percentual, novos óbitos, que não eram suspeitos, podem vir a ser incluídos após o resultado dos exames. Assim, observou-se que a cada dia os novos óbitos anunciados não se concentram na véspera ou no dia em questão, mas se distribuem nos 30 dias anteriores à publicação do relatório.
É significativa a diferença na distribuição dos dados quando observado o período entre 15 de março e 6 de abril como publicado, em 6 de abril no Boletim Epidemiológico nº 7, em comparação com o mesmo período do Boletim Epidemiológico nº 10, publicado no dia 16 de abril.
Veja a seguir:
Boletim Epidemiológico nº 7
Boletim Epidemiológico nº 10
Bereia ouviu o pesquisador Alexandre Brasil (professor e diretor do Instituto de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ), para analisar os relatórios do Ministério da Saúde e concluiu que os dados estão sendo revisados a cada boletim (sempre para cima, com mais casos). Além disso, parece não existir especificidade no Brasil, seja relacionada à vacinação por BCG ou ao clima, que impeça a concretização de um quadro similar aos outros países. Até o momento, o distanciamento social parece ser, como recomendado pela OMS, o elemento mais efetivo para prolongar o tempo de contaminação e assim permitir que o sistema público de saúde e outras instituições tenham condições de atender o volume de pessoas que serão acometidas pela doença.
A observação dos gráficos acima permite identificar um evidente movimento em direção ao aumento no número de casos, o que vai se confirmando no lento processo em que ocorrem as confirmações e ajustes dos dados divulgados. Há uma pressão da pandemia sobre a coleta de dados.
O CREMESP (Conselho Regional de Médicos do Estado de São Paulo) e os Boletins Epidemiológicos do Ministério da Saúde também alertam para o problema da subnotificação, pois a demanda de testes impacta o armazenamento e a capacidade de providenciar resultados a tempo. Ou seja, os dados apresentam a fotografia de uma realidade, com até 30 dias de atraso, período em que já existem pessoas sepultadas por COVID-19, de quem o resultado do teste chegou depois da notificação do óbito. Ainda há os casos de pacientes, com testes e “causa mortis” em aberto, por falta de conclusão no inquérito epidemiológico.
O projeto de monitoramento da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) do COVID-19, o Infogripe, somados aos dados municipais de sepultamentos (municipais), também revelam que há, no mínimo, um atraso considerável nos dados oficiais do Ministério da Saúde divulgados.
AJUSTANDO O TERMÔMETRO – Os números são confiáveis?
Para que a população tenha acesso à informação mais correta e completa possível, o Ministério da Saúde precisa divulgar, juntamente com os dados de casos confirmados e de óbitos pelo coronavírus, o índice de contaminação de profissionais de saúde e os dados de ocupação de UTIs e CTIs, – ainda que a divulgação continue a oferecer os números com atraso de 7, 14 ou 21 dias.
Levantamentos na China e na Espanha, por exemplo, indicaram um expressivo número de contaminações entre agentes de saúde.
É fundamental, também, acompanhar o número de hospitalizações por SARGs (Síndromes Agudas Respiratórias Graves), pois essas hospitalizações é que provocam o colapso dos sistemas de saúde em todo o mundo.
HOSPITALIZAÇÃO – Os casos de SARG (Síndrome Aguda Respiratório Grave) internados
CONCLUSÃO
A checagem feita pelo Coletivo Bereia conclui que as informações oficiais com dados de infectados e mortos por coronavírus no Brasil, apresentadas em 5 de abril de 2020, são resultado de dias anteriores – conforme os Boletins Epidemiológicos do Ministério da Saúde indicam. Logo, não é possível afirmar que qualquer ação de combate à pandemia no campo da ciência ou de grupos religiosos tenha influenciado nos dados daquele dia e posteriormente. As indicações de pesquisadores são de que somente no final de maio será possível ter um quadro mais fidedigno desse período. Ainda assim, a tendência dos dados é de crescimento nos números de casos e óbitos.
Afirmar qualquer coisa, neste momento, seria apressado. A única informação possível é a de que os números continuam aumentando – tanto de casos novos, como de óbitos. Portanto, qualquer afirmação de que houve relação entre o jejum convocado para 5 de abril e os dados presentes nas tabelas é enganosa (em função dos atrasos na confirmação dos números) e falsa se estiver sugerindo que há redução de casos no Brasil.
O dia destacado pelos influenciadores midiáticos evangélicos citados nessa checagem corresponde à situação da pandemia nas semanas anteriores. Portanto, a correlação é FALSA se estiver sugerindo diminuição após o jejum e ENGANOSA se estiver sugerindo correlação com a data do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde. Mas, ela pode ser VERDADEIRA, se, como sugere o Ministério da Saúde, estiver medindo o impacto das medidas de isolamento social.
O número de óbitos confirmados continua aumentado (apesar da variação), com uma taxa atual de 7% em relação ao dia anterior (e o gráfico cumulativo demonstra o crescimento). Isso equivale à contabilização de um total de vendas ou de nascimentos de pessoas em determinada localidade: importa o registro total e não apenas um único dia.
Bereia ressalta que a checagem não busca refutar o poder da oração e a eficácia do jejum bíblico. Estes elementos estão fora do campo de checagem jornalística, pois são questões que dizem respeito à fé.
A responsabilidade que se deve ter com o uso de dados é que chama a atenção do Coletivo. São informações que dizem respeito a problemas graves: transparência, consistência e, principalmente, interpretação dos resultados. Isto é importante não só para a opinião pública, mas, principalmente, para o enfrentamento do vírus e da sua letalidade. Portanto, pelas evidências e orientações existentes até o momento, Bereia reforça que os leitores respeitem o distanciamento social para a preservação das vidas e para permitir que a rede pública de saúde tenha condições de atender quem está doente.
ÓBITOS DIA A DIA (TODO O BRASIL)
ÓBITOS POR UNIDADE DA FEDERAÇÃO (ESTADOS)
Referências de Checagem:
BBC – H1N1 não era mais letal. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52078906
UFMG – Comparações entre H1N1 e Covid-19. Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/h1n1-fatos-e-fakes/
Agência Brasil – Contágio, letalidade e idade. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/covid-19-nao-e-doenca-somente-de-idosos-alerta-oms
UOL – Letalidade da Covid-19. disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/04/13/covid-19-e-dez-vezes-mais-letal-que-h1n1-diz-oms.htm
OMS – Artigo acadêmico (sobre a Pandemia de H1N1 – assinado por Maria Van Kerkhove. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/irv.12074 N1):
USP – Sequenciamento, mutações e nome da doença. Disponível em: http://www.fm.usp.br/fmusp/noticias/-genoma-do-sars-cov-2-do-primeiro-caso-de-covid-19-da-america-latina-sequenciado-em-48-horas-no-instituto-adolfo-lutz
PAHO – Dados covid-19 nas Américas – Organização Panamericana de Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
FIOCRUZ – Pressão sobre sistema, leitos e SARGs. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/observatorio-covid-19
UOL – Países com mais testes tem menos mortes. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/por-que-paises-com-mais-testes-por-milhao-de-habitantes-tem-menos-mortes-por-covid-19.shtml
O GLOBO – A Gripe Espanhola. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/gripe-espanhola-menosprezada-em-1918-epidemia-parou-rio-matou-presidente-24337334 e também no link: https://oglobo.globo.com/fotogalerias/gripe-espanhola-ha-102-anos-produziu-cenas-consequencias-semelhantes-as-da-atual-pandemia-de-covid-19-veja-fotos-24341592
UOL – Subnotificação em Nova York. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2020/04/08/numero-real-de-mortes-por-covid-19-em-nova-york-e-muito-maior-diz-prefeito.html e também no link: https://www.nytimes.com/2020/04/12/nyregion/coronavirus-new-york-update.html
FIOCRUZ – Subnotificação e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARG). Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/infogripe-registra-crescimento-de-casos-de-sindrome-respiratoria-aguda-grave
Agência Brasil – Invalidação de 20 mil amostras. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/covid-19-cremesp-denuncia-instituto-por-invalidar-20-mil-amostras
BAHIA NOTÍCIAS – Nove em cada dez casos não são detectados no Brasil. Disponível em: https://www.bahianoticias.com.br/saude/noticia/23872-nove-em-cada-dez-casos-de-coronavirus-nao-sao-detectados-no-brasil-afirma-estudo.html
ESTADÃO – Cemitério de SP já tem mais enterros e abre sepulturas. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,coronavirus-cemiterio-de-sp-ja-tem-mais-enterros-e-abre-sepulturas-prefeitura-contrata-coveiros,70003258701
UOL – Mortes com suspeita de coronavírus já são até metade dos enterros em cemitérios públicos de SP. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mortes-com-suspeita-de-coronavirus-ja-sao-ate-metade-dos-enterros-em-cemiterios-publicos-de-sp.shtml
G1 – 3500 profissionais da saúde contaminados por coronavírus. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/22/quase-3-500-profissionais-da-saude-contaminados-por-coronavirus-na-espanha.ghtml
G1 – Mais de 1.700 agentes de saúde infectados na China. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/02/15/coronavirus-mais-de-1-700-agentes-de-saude-infectados-na-china.ghtml
Portal Arquivos. Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/17/2020-04-16—BE10—Boletim-do-COE-21h.pdf
Pandemia nos dados. Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10163684310075232&id=866465231