Publicações que exaltam desempenho positivo economia da Argentina escondem grave crise social no país

“A Argentina hoje tem inflação controlada e a moeda que mais se valoriza no mundo. Já o real é a moeda que mais se desvaloriza. Como é bom ter um presidente”. Esta foi a afirmação do deputado federal de identidade evangélica Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em publicação de 2 de dezembro no seu perfil no X. A declaração foi feita no compartilhamento de uma publicação que apresenta um ranking de variação cambial das moedas em 2024.

Imagem: Reprodução/X

O mesmo ranking foi divulgado pelo presidente da Argentina Javier Milei, em seu perfil no Instagram. A informação sugere uma valorização de 40,1% do peso argentino entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, com dados atribuídos à GMA Capital baseados no BIS (Bank for International Settlements). 

O conteúdo divulgado pelo deputado faz parte de um conjunto de publicações que circulam no Brasil em exaltação da condução da economia pelo governo da direita extremista argentina Javier Milei, não só em mídias sociais mas também na grande imprensa. Essas postagens e matérias jornalísticas têm servido como material crítico ao governo Lula com forte circulação em ambientes digitais religiosos.

Imagem: Reprodução Estadão e O Globo

O levantamento utilizou como fonte o GMA Capital, com base em dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), e mostrou que entre dezembro de 2023 e outubro de 2024, o peso argentino valorizou, enquanto o real apresentou desvalorização. 

Ao compartilhar os dados no Instagram, o presidente Milei afirmou que, embora ainda não tenha encerrado as atividades do Banco Central da Argentina, como planeja, conseguiu proporcionar aos argentinos “a melhor moeda do mundo”.

Imagem: Reprodução/Instagram

Bereia analisou as informações e verificou a veracidade das informações. 

O que dizem os dados

Os dados divulgados por Milei e Bolsonaro foram produzidos pela GMA Capital, consultoria financeira argentina, com base em informações do Bank for International Settlements (BIS). O BIS é uma organização internacional que atua como banco central dos bancos centrais, estabelecendo metodologias padronizadas para análise de dados financeiros globais.

Bereia fez uma verificação dos dados do  BIS, entre os meses de dezembro de 2023 e outubro de 2024,  que revela algumas discrepâncias em relação ao ranking divulgado, entretanto não foi possível determinar a metodologia utilizada pela GMA Capital. 

Imagem: Gráfico do Bank for International Settlements – entre dezembro 2023 e outubro 2024 

Segundo os dados oficiais, o real brasileiro e o peso argentino, assim como demonstra o gráfico acima e o compartilhado pelo deputado, foram as moedas que mais se desvalorizaram e se valorizaram, respectivamente. O BIS utiliza o conceito de taxa de câmbio real efetiva, que considera não apenas a variação nominal da moeda, mas também outros fatores econômicos como inflação e fluxos comerciais entre países. 

A inflação na Argentina está controlada mas…

Em outubro de 2024, a inflação na Argentina atingiu 2,7%, o menor valor desde novembro de 2021, conforme o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) divulgado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) daquele país. O resultado ocorre em meio a um ajuste econômico conduzido pelo presidente Javier Milei, que assumiu o cargo em dezembro de 2023, nas bases ultraliberais anunciadas por ele desde a campanha eleitoral. 

Entre as medidas, o governo Milei paralisou obras federais, suspendeu os repasses financeiros para os estados e retirou subsídios para serviços essenciais, incluindo água, gás, luz e transporte público. A justificativa é a contenção da recessão e a redução dos gastos públicos.

Como resultado dos cortes, no primeiro trimestre de 2024, o governo Milei alcançou o primeiro superávit fiscal desde 2008. Ele alega que o objetivo é atingir o “déficit zero” até o final do ano. Porém,  a retirada dos incentivos provocou um aumento expressivo nos preços ao consumidor e a consequente redução na capacidade de consumo da população.

Outro resultado é que a inflação na Argentina também desacelerou significativamente, tendo passado de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,7% em outubro de 2024. Essa redução é atribuída à queda no potencial de consumo da população e às medidas que restringiram a emissão de moeda pelo governo.

A desaceleração da inflação na Argentina ainda não trouxe alívio significativo para a vida da população. Os preços de serviços públicos, transporte e alimentos permanecem elevados, enquanto o salário mínimo, de 271,5 mil pesos (equivalente a 1.600 reais), não acompanha a inflação de três dígitos.  

Por outro lado, a economia enfrenta retração. O Produto Interno Bruto (PIB) caiu 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo trimestre de 2024, em relação ao mesmo período do ano anterior, resultados piores do que o esperado por analistas. Enquanto isso, cortes de subsídios e o aumento no custo de produtos básicos pressionam ainda mais os argentinos, em um cenário de salários estagnados e perda de poder de compra.

Dados positivos para quem?

Apesar de apoiadores do presidente argentino e o mercado financeiro aclamarem os resultados do dólar e  da queda da inflação argentina, os custos têm sido altos para a qualidade de vida da população. Bereia levantou os principais pontos críticos resultantes dessa política econômica conforme análises publicadas por diferentes fontes.

1. Aumento da Pobreza

Em setembro de 2024, um levantamento do Indec revelou que o número de argentinos vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou no primeiro semestre de 2024, e alcançou 15,7 milhões de pessoas, o que corresponde a 52,9% da população, ou 4,3 milhões de famílias. O Indec considera abaixo da linha da pobreza os cidadãos cujo rendimento familiar não cobre necessidades básicas como alimentação, vestuário, transporte, educação e saúde.  

Durante os primeiros seis meses do governo de Javier Milei, 3,4 milhões de pessoas ingressaram nessa faixa, o que representa um aumento de 11,2 pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023. Naquele período, 41,7% da população (12,3 milhões) viviam na pobreza. 

A pesquisa também apontou que 5,4 milhões de pessoas (18,1% da população) vivem em situação de indigência, um aumento em relação ao fim de 2023, quando esse grupo somava 3,5 milhões (11,9%). Entre as famílias, 1,4 milhão foram classificadas como indigentes, ante 870 mil no segundo semestre de 2023.  Indigentes são definidos pelo Indec como aqueles sem acesso a alimentos suficientes para atender às necessidades diárias de energia e proteínas. Esse aumento representa o maior crescimento da pobreza nos últimos 20 anos na Argentina.

2. Vulnerabilidade de crianças 

    Com quase 25 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza na Argentina, segundo o relatório recente do Indec, mais da metade da população, aproximadamente 53%, é pobre. A situação mais alarmante, no entanto, é a das crianças: mais de 66% dos menores de 14 anos estão na pobreza, o que significa que duas em cada três crianças vivem em condições precárias.

    Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), publicado em agosto passado, destacou que, diariamente, um milhão de crianças na Argentina vão dormir sem jantar, enquanto 1,5 milhão pulam refeições ao longo do dia. Para aqueles que ainda têm acesso à comida, o aumento nos preços dos alimentos mais nutritivos tem dificultado a alimentação saudável. A desnutrição infantil pode afetar gravemente a saúde das crianças, e comprometer o futuro do país.

    3. Queda na renda e no emprego

      Embora o desemprego na Argentina esteja relativamente baixo, com taxa de 7,6% após um aumento de 1,9 ponto no primeiro semestre de 2024, o aumento da pobreza é atribuído a outros fatores. Embora os mais vulneráveis recebam “planos sociais”, que surgiram após a crise de 2001-2002, a explicação para o crescimento da pobreza está na queda do poder de compra. Os salários não acompanharam a inflação, e isso resulta em um fenômeno novo no país: o aumento do número de trabalhadores pobres.

      Esse problema é ainda mais agravado pelo crescimento do emprego informal, que hoje representa cerca de 47% dos trabalhadores. De acordo com o Instituto Gino Germani, da Universidade de Buenos Aires, 70% dos trabalhadores informais vivem abaixo da linha da pobreza. Além disso, 30% dos trabalhadores formais, ou mais de 2 milhões de pessoas, também estão em situação de pobreza. 

      Esta crise social tem gerado protestos da população em manifestações de rua, como as realizadas nos primeiros dias de dezembro de 2024. 

      Imagem: Reprodução Veja e Clarín

      Uso dos dados positivos argentinos para criticar o governo do Brasil

      Classificado como um bom presidente pelos aliados do Brasil, como na postagem do deputado Eduardo Bolsonaro checada pelo Bereia, Milei e seus números positivos têm sido usados em contraposição ao governo Lula e a alta taxa do dólar em relação ao real nas últimas semanas.

      A desvalorização do real, que já acumula cerca de 15% desde o início de 2024, revela um cenário complexo onde os fundamentos econômicos contrastam com as movimentações do mercado financeiro. Os dados econômicos apresentados pelo ministro da Casa Civil Rui Costa, mostram um país com crescimento do PIB de 3,2% em 2023, projeção de 3,5% para 2024 e o menor índice de desemprego da série histórica, atingindo 6,2% segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

      O movimento especulativo contra o real que coloca o dólar em patamares bem superiores, ocorre em um momento em que o país mantém reservas internacionais superiores a 350 bilhões de dólares e apresenta superávit na balança comercial de US$ 1,13 bilhão e registra IPCA acumulado de 2,27% até maio de 2024, dentro da meta estabelecida.

      A pressão sobre a moeda brasileira tem características específicas do chamado “mercado”. Na prática, este se resume a cerca de 160 pessoas, principalmente executivos de bancos e instituições financeiras que participam da pesquisa Focus do Banco Central. São estes atores que dominam as operações cambiais, representando grandes conglomerados financeiros.

      A movimentação do mercado financeiro representa, no Brasil,   oposição às políticas econômicas desenvolvidas pelo atual governo,  que alega ter como prioridade garantir direitos e reduzir a pobreza e a fome. Para os atores do mercado, isto representa peso aos gastos públicos.

      Os gastos governamentais atuais são criticados por estarem em níveis elevados, conforme o discurso do mercado financeiro que pressiona por cortes no orçamento federal, ainda que o governo busque aumentar a arrecadação para atingir o déficit zero. No entanto, foi enviado ao Congresso um projeto econômico pelo governo, com foco na redução de privilégios e manutenção de direitos. Contudo, essa abordagem não atendeu às expectativas do mercado financeiro, o que resultou na alta do dólar.

      De acordo com a jornalista especializada em economia Miriam Leitão, a principal preocupação do mercado financeiro está no aumento da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) para os bancos, com o objetivo de financiar a desoneração da folha salarial de 17 setores e dos municípios com até 156 mil habitantes. Em contraste, a questão que, segundo ela, interessa a quem tem “bom coração”, é a diminuição da carga tributária sobre armas, prevista na reforma tributária.

      Mesmo com dados econômicos favoráveis, como o menor desemprego da série histórica e crescimento econômico acima do esperado, o mercado financeiro mantém pressão constante por redução de gastos públicos. A conjuntura evidencia uma postura ideológica que transcende os indicadores econômicos reais e que são centrais no pensamento neoliberal: a constante pressão por redução do papel do Estado na economia, mesmo em momentos onde os indicadores econômicos, como crescimento do PIB e geração de empregos, mostram resultados positivos.

      Bereia ouviu a jornalista argentina Cláudia Florentin Mayer, integrante do Conselho Editorial do Bereia sobre as informações que circulam com exaltação às medidas econômicas do governo Milei. Ela afirma que a valorização da moeda em relação ao dólar está atrelada à redução de 40% no valor do peso argentino necessário para a compra de dólares, em comparação com dez meses atrás. A jornalista ainda observa que essa valorização pode ser vista como um aspecto da avaliação da moeda, mas que leva em consideração apenas a taxa de câmbio.

      “Para que uma moeda seja forte, outros aspectos devem ocorrer: a produção nacional – que está em queda -, o volume do PIB (que está em queda atualmente), a renda per capita que está muito abaixo do necessário, o salário mínimo que não cobre a cesta básica, etc. Existem muitos outros fatores de falta de proteção social e de pobreza que não são medidos quando vemos apenas a queda da inflação e da moeda”. 

      Claudia Mayer também observa que as análises apontam que o governo Milei parece enfatizar unicamente o objetivo do “déficit zero”, sem considerar outros aspectos socioeconômicos relacionados à vida da população .

      ***

      Bereia classifica o conteúdo sobre a valorização do peso argentino, divulgado pelo deputado  Eduardo Bolsonaro (PL-SP), para criticar a desvalorização recente do real brasileiro como impreciso. Embora os dados do Bank for International Settlements (BIS) confirmem que o peso argentino foi a moeda mais valorizada e o real a mais desvalorizada no período analisado, este dado isolado omite os contextos econômicos mais amplos dos países.

      O deputado, ao compartilhar o ranking de valorização monetária sem o devido contexto, desinforma pois induz o público a uma interpretação equivocada da situação econômica, utilizando dados isolados para construir um conteúdo que não reflete a realidade completa. Quando comparada a taxa de inflação, a Argentina acumula 193%, enquanto no Brasil a taxa é de 4,76%. Quando levados em conta os índices sociais de qualidade de vida na Argentina, a situação é bastante crítica em relação à do Brasil.

      Bereia alerta seus leitores sobre a importância de avaliar dados econômicos dentro de seu contexto mais amplo. Números são frios e precisam ser interpretados em relação a outros elementos da realidade local. Indicadores isolados, como a valorização de uma moeda, podem favorecer especuladores financeiros mas mascarar problemas econômicos estruturais quando não são analisados em conjunto com outros dados macroeconômicos relevantes. A verificação do Bereia ressalta a necessidade de buscar fontes diversas e análises mais abrangentes para compreender adequadamente a situação econômica de qualquer país.

      Referências de checagem:

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/11/13/inflacao-argentina-outubro.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/06/24/pib-argentina.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/19/recessao-na-argentina-se-aprofunda.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      G1. https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/09/26/argentina-pobreza.ghtml Acesso em: 3 dez 2024

      Gazeta do Povo. https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/milei-divulga-ranking-mostra-peso-argentino-como-moeda-mais-valorizada-2024/ Acesso em: 3 dez 2024

      BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cr4x931xnzro Acesso em: 3 dez 2024

      Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/12/16/interna_internacional,1331930/cronologia-da-crise-argentina-de-2001.shtml Acesso em: 3 dez 2024

      InfoMoney. https://www.infomoney.com.br/politica/rui-costa-diz-que-reacao-do-mercado-e-ataque-especulativo-contra-o-real/ Acesso em: 4 dez 2024

      IHU Unisinos. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/640974-o-que-esta-por-tras-do-ataque-especulativo-a-moeda-brasileira Acesso em: 4 dez 2024

      Seu Dinheiro. https://www.seudinheiro.com/2024/bolsa-dolar/dolar-real-ataque-especulativo-o-que-e-rens/ Acesso em: 4 dez 2024

      ii. Documentos e bases de dados:

      Bank for International Settlements (BIS). https://www.bis.org/ Acesso em: 3 dez 2024

      Trading View – Indicadores Econômicos Globais. https://br.tradingview.com/markets/world-economy/indicators/inflation-rate/ Acesso em: 3 dez 2024

      Meio. https://www.canalmeio.com.br/2024/12/04/miriam-leitao-mercado-financeiro-teme-incerteza-fiscal-mas-aceita-autoritarismo/. Acesso em: 5 de dezembro de 2024.

      Candidato extremista nas eleições argentinas Javier Milei usa falsidades contra o Papa Francisco em campanha

      Javier Milei, o economista ultraliberal que lidera a corrida presidencial na Argentina,  concedeu entrevista para Tucker Carlson, jornalista símbolo da extrema-direita estadunidense. Além de apresentar suas polêmicas propostas,  Milei fez duras acusações ao Papa Francisco.

      O candidato representante da extrema-direita afirmou: “o Papa faz política. Ele tem uma forte influência política. Ele também mostrou grande afinidade com ditadores como Castro e Maduro. Em outras palavras, ele está do lado de ditaduras sangrentas”.

      Milei também disse que o Papa Francisco considera a justiça social um elemento central, e “isso é muito complicado, porque justiça social é roubar o fruto do trabalho de uma pessoa e dar a outra”. 

      As críticas ao Papa Francisco, como a “afinidade com comunistas assassinos” receberam destaque na matéria publicada pelo portal gospel Pleno.News, em 15 de setembro passado. O material foi compartilhado centenas de vezes e circulou por diversos grupos de mensagens de igrejas e entre perfis religiosos. 

      Imagem: Matéria do Pleno.News checada pelo Bereia

      Quem é Javier Milei e por que um site de notícias gospel do Brasil lhe dá destaque

      De acordo com o jornal El Observador,  que analisou as dez últimas pesquisas eleitorais, o economista ultraliberal e deputado do parlamento argentino Javier Milei lidera as pesquisas de intenção de voto em todos os cenários para a corrida presidencial no país. 

      Segundo os números mais recentes, ele tem entre 36% e 40,4%  dos votos e está à frente do atual ministro da Economia, Sergio Massa, representante do presidente Alberto Fernandez. O candidato do governo tem de 27,4%  a 33%.  Já a  ex-ministra de Segurança Patrícia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente Maurício Macri, alcança entre 23,1% a 29,7%. Se os números forem confirmados nas urnas, o candidato da extrema-direita estará no segundo turno.

      Milei se autointitula libertário e promete “acabar com a classe política do país”. O livro “La rebeldia se volvió de derecha”, do historiador argentino Pablo Stefanoni,  expõe como a chamada “nova direita” surgiu no cenário político com a apresentação de uma suposta rebeldia contra “o sistema”. O capítulo “o que querem os libertários e por que deram um giro à direita?”  apresenta a trajetória de Milei e mostra como os temas morais que caracterizam a retórica das chamadas “guerras culturais” se conectam e se entrelaçam com o ultraliberalismo econômico. Este mesmo processo ocorreu nos Estados Unidos e no Brasil, com as campanhas vencedoras de Donald Trump (2016) e de Jair Bolsonaro (2018)

      O libertarianismo, movimento nascido nos EUA nos anos 1990, estabeleceu pontes entre a direita e à esquerda políticas, pelo viés dos extremos. O Estado é sempre um inimigo que une as correntes libertárias. 

      Por isso, o discurso gira em torno do fortalecimento das instituições tradicionais que estimulem a vida pública: a família, a igreja e as empresas, com o descarte do Estado. A autoridade social deve ser representada por essas instituições.

      Nessa lógica, explica o livro de Stephanoni, o mercado livre é um imperativo moral e prático. Já o Estado de bem-estar social é um roubo organizado, a ética igualitária é moralmente condenável por ser destrutiva da propriedade e da autoridade social,  qualquer “privilégio” racial e de grupo deve ser os valores judaico-cristãos são essenciais para uma ordem livre e civilizada.

      Para chegar ao poder, explica o historiador argentino, estes libertários extremistas abraçaram o populismo de direita com teorias que envolvem satanismo, pedófilos, partidos de esquerda e o Papa, entre outros, todos conspirando, em um “sistema”, contra “o povo”. Nos Estados Unidos, o grupo apresentou um salvador para conter esta trama, Donald Trump, e na Argentina, agora, se apresenta Javier Milei.

      No Brasil, Jair Bolsonaro também foi apresentado como um político antissistema que prometia governar sem acordos ou concessões à classe política.  As mídias sociais colaboram para a propagação desse perfil, mesmo tendo o militar ocupado uma cadeira de deputado federal por décadas e passado por diversos partidos políticos.

      O professor da Universidade de Buenos Aires, Ariel Goldstein, explica: “enquanto Bolsonaro se apresentava como um representante conservador da família tradicional e tentava o apoio dos mercados com Paulo Guedes, Milei se apresenta, de cara, como um representante dos mercados e que, agora, faz um movimento mais em direção a faixas conservadoras”. 

      O portal gospel Pleno News,  alinhado a essas políticas econômicas e pautas conservadoras deu amplo espaço à campanha e às declaração de Jair Bolsonaro e agora dá a mesma visibilidade a Javier Milei.

      O que Milei falou em entrevista de campanha contra o Papa

      Imagem: Reprodução da entrevista de Carlson com Milei no X

      Os temas destacados – ideologia de gênero, aborto, afinidade do Papa com ditadores, entre outros – representam o caminho trilhado por Milei e Tucker Carlson durante a entrevista: pânico moral e teorias da conspiração. 

      Estudos mostram que as posturas do Papa Francisco em sua maneira de conduzir a Igreja Católica tem incomodado políticos de direita, em especial extremistas ultraliberais, e personagens da própria igreja. O líder religioso e chefe do Estado do Vaticano  denuncia constantemente as condições precárias dos trabalhadores, o racismo e a liberdade de movimento para os imigrantes. Além disso, “defendendo que a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia’, o bispo de Roma ganhou fama de herege”. Francisco também tem relativizado o direito absoluto à propriedade privada e, por isso, tem sido  chamado de comunista. 

      Com estas bases é possível compreender os ataques do candidato argentino ao Papa Francisco, divulgados na matéria do Pleno News. Na entrevista ao jornalista dos Estados Unidos, objeto do texto, ele expôs publicamente que o pontífice é um “representante maligno na terra”, atrelou-o à esquerda e manteve a comum acusação de que o Papa é comunista.

      Bereia ouviu o pastor da Igreja Metodista na Argentina, jornalista e presidente da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC) Leonardo Felix sobre o ataque público do candidato ao Papa Francisco. Felix explica que “[Jorge Mario] Bergoglio [o Papa Francisco] sempre representou, quando era cardeal da cidade de Buenos Aires, uma abordagem clara na síntese do peronismo [o ex-presidente Juan Domingo Perón procurou avançar através três pilares: justiça social, independência econômica e soberania política. Para alcançar um consenso mais amplo, elaborou propostas relacionadas ao tema da justiça social, na busca da paz baseada no amor ao próximo], com as diversas tendências do peronismo, mais até à direita. Porém, para a ultradireita na Argentina, isto não é bem visto”.

      O diretor da WACC informa que como reação ao discurso de ataque de Milei ao Papa, houve missas em desagravo, em “villas”, espaços equivalentes às favelas no Brasil. De acordo com Felix, “Milei acusa o Papa no campo político, já que o conectou imediatamente com o peronismo e com a esquerda e por fim com o comunismo, coisa que não pode ser assim vista de nenhum ponto de vista. No caso de Francisco, não há nenhuma ideia que permita entender isso além da retórica do Evangelho.”

      Quem é o entrevistador de Milei, Tucker Carlson

      O jornalista Tucker Carlson comandava um dos programas de maior audiência nos EUA, pela rede de TV Fox News, notoriamente  identificada com a direita política. A rede de TV, inclusive, foi acusada de espalhar informações falsas de que as urnas foram manipuladas para impedir a vitória de Trump nas eleições. Carlson já esteve no Brasil para entrevistar o ex-presidente Jair Bolsonaro em junho de 2022.

      Reprodução da matéria de O Globo, de 30 de junho de 2022.

      A popularidade de Carlson e sua influência definiam a agenda dos conservadores estadunidenses e consequentemente do Partido Republicano. O programa exibido pela Fox News oferecia abordagens conservadoras populistas em questões como imigração, criminalidade, raça, gênero e sexualidade e a chamada ideologia “woke”. 

      O termo woke tornou-se sinônimo de políticas liberais ou de esquerda, que defendem temas como igualdade racial e social, feminismo, o movimento LGBTQIA+, o uso de pronomes de gênero neutro, o multiculturalismo, a vacinação, o ativismo ecológico e o direito ao aborto. São políticas associadas, nos Estados Unidos, ao Partido Democrata do presidente Joe Biden e à ala mais liberal.

      O analista político Guga Chacra afirma que Carlson só perde em popularidade para Donald Trump, entre eleitores do Partido Republicano. Chacra acrescenta que o papel fo jornalista foi fundamental para moldar a nova ideologia do partido  e “com um discurso isolacionista e focado na classe trabalhadora branca em temas sociais e econômicos, alterou em parte o discurso conservador americano, antes focado mais em questões fiscais na economia e bélico em questões internacionais”. 

      Carlson foi demitido da Fox News e passou a atuar nas mídias sociais digitais. Seu último programa na rede TV estadunidense foi transmitido em 21 de abril deste ano. Atualmente tem um programa de entrevistas  independente na plataforma X (antigo Twitter), no qual conta com dez milhões de seguidores. A entrevista concedida por Milei e destacada pelo portal Pleno.News foi concedida no programa de Carlson no Twitter. 

      ***

      Bereia avalia que os ataques de Javier Milei ao Papa Francisco se valem de falsidades, estão no campo da política e funcionam como estratégia eleitoral, na direção do que é praticado comumente por lideranças da extrema-direita. 

      Ao se apresentar como candidato antipolítico e relacionar o Papa com o peronismo e o comunismo, atrelando-os à esquerda, que busca confrontar, Milei alcança uma grande parcela da população que nega a política e os políticos.

      O Papa Francisco, reconhecido por suas posições progressistas na Igreja Católica, está no espectro político oposto ao de Javier Milei, que busca colocar todos os outros políticos e personagens com atuação política como inimigos, na linha das práticas de extrema-direita.

      Como não há registros de declarações do Papa sobre apoiar qualquer ditadura, as acusações de Milei podem ser consideradas mais uma teoria da conspiração, ferramenta tão difundida por políticos de extrema-direita em todo o mundo.

      Bereia classifica, portanto,  a matéria do site religioso, Pleno News como desinformativa, pois não oferece apuração do que o candidato argentino pronuncia na entrevista a Tucker Carlson, apenas reproduz. Desta forma,  Pleno News atua como promotor da campanha política de Milei.

      Referências de checagem:

      El Observador https://www.elobservador.com.uy/nota/elecciones-2023-dos-encuestas-dan-ganador-a-milei-en-primera-vuelta-2023923111922 Acesso em 26 SET 23

      Resenha do livro: O que querem os libertários e por que deram um giro à extrema-direita?

      https://periodicos.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/48454 Acesso em 19 SET 23

      El País https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-12/teorias-conspiratorias-do-qanon-varrem-o-mundo-e-sao-mais-perigosa-do-que-parecem.html Acesso em 19 SET 23

      BBChttps://www.bbc.com/portuguese/internacional-63547369 Acesso em 19 SET 23

      https://www.bbc.com/portuguese/articles/c512yk8pl8go Acesso em 26 SET 23 

      https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63547369 Acesso em 19 SET 23

      O Globo https://oglobo.globo.com/blogs/guga-chacra/post/2023/04/demitido-da-fox-carlson-moldou-partido-republicano.ghtml Acesso em 19 SET 23

      https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/noticia/2022/06/thucker-carlson-as-ideias-extremistas-do-jornalista-que-entrevistou-bolsonaro.ghtml Acesso em 26 SET 23 

      G1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/14/quem-e-javier-milei-candidato-presidencia-argentina.ghtml Acesso em 19 SET 23

      UOL https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/06/30/quem-e-tucker-carlson-jornalista-conservador-que-entrevistou-bolsonaro.htm Acesso em 19 SET 23

      https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2023/09/05/buenos-aires-celebra-missa-de-desagravo-ao-papa-francisco.htm Acesso em 25 SET 2023

      Folha de São Paulo https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/09/padres-argentinos-defendem-papa-francisco-contra-ataques-de-javier-milei.shtml Acesso em 19 SET 23 

      IHU On Line https://www.ihu.unisinos.br/categorias/631605-preocupacao-na-igreja-pela-ascensao-de-javier-milei-e-seus-ataques-ao-papa Acesso em 19 SET 23 

      https://www.ihu.unisinos.br/categorias/592611-francisco-um-papa-que-incomoda-artigo-de-victor-codina Acesso em 26 SET 2023

      https://www.ihu.unisinos.br/categorias/603702-herege-e-comunista-a-direita-excomunga-o-papa Acesso em 20 SET 2023

      https://www.ihu.unisinos.br/categorias/593752-as-raizes-peronistas-do-papa-bergoglio Acesso em 20 SET 2023

      El País https://brasil.elpais.com/internacional/2021-01-12/teorias-conspiratorias-do-qanon-varrem-o-mundo-e-sao-mais-perigosa-do-que-parecem.html Acesso em 19 SET 23 

      Aci digitalhttps://www.acidigital.com/noticia/29432/a-resposta-de-francisco-aos-que-o-chamam-de-comunista-antipapa-e-questionam-se-e-catolico Acesso em 21 SET 2023