Estado de Israel é o mesmo do Israel da Bíblia?
Especialmente nos últimos meses, há muitas postagens nas redes sociais associando o Israel da Bíblia com o Estado moderno de Israel, como se fossem uma continuidade direta e até mesmo inquestionável. Passagens bíblicas são citadas para justificar e legitimar ações militares e políticas, inclusive o genocídio do povo palestino.
Mas, o Estado de Israel é continuação do Israel bíblico — ou é outra coisa, uma construção moderna?
Apesar da semelhança no nome, a nação moderna fundada em 1948 e o povo narrado na Bíblia representam realidades distintas. Como diz o adágio popular, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”: o Estado de Israel não deve ser confundido com o Israel da Bíblia — e muito menos com o Israel da antiguidade estudado pela história e pela arqueologia. Entender essas distinções é essencial para evitar confusões entre fé, identidade religiosa e geopolítica contemporânea.
Em primeiro lugar, precisamos elucidar que, quando falamos de Bíblia, não estamos falando de um livro de relatos históricos, embora os textos possam evidenciar e elucidar muitos fatos históricos. A Bíblia não é um jornal dos tempos dos Patriarcas e Matriarcas, nem dos tempos de Jesus. Ela é uma coletânea de textos religiosos cujos objetivos são múltiplos e estão relacionados com a vivência da fé de vários grupos, a propagação das concepções teológicas e ideológicas dos diversos grupos responsáveis pela redação e edição, tanto do Primeiro (conhecido como Antigo) quanto do Segundo (conhecido como Novo) Testamentos.
Sendo assim, quando falamos de Israel da Bíblia, precisamos compreender que se trata de uma construção teológica que agrega diversas tradições, tanto de Judá quanto de Israel Norte. Do ponto de vista do texto escrito, o povo do Israel bíblico se origina a partir de Abraão (tradição de Judá), chamado por Deus para deixar sua terra, Ur dos Caldeus, e seguir rumo à terra prometida, Canaã, tendo como garantia a promessa de uma grande descendência (Gn 12,15). A promessa se desdobra nas gerações seguintes por meio de Isaque (tradição de Judá), Jacó (tradição de Israel Norte), que teve seu nome alterado para Israel (Gn 32,28) e seus filhos. Durante um período de fome, a família de Jacó migra para o Egito em busca de sobrevivência, porém o que de início foi acolhimento, por conta de José, tornou-se depois um longo período de opressão até a libertação mediada por Moisés, Miriã e Arão. A posse da terra prometida, segundo o texto da Bíblia, se dá sob a liderança de Caleb e Josué, após 40 anos de caminhada no deserto.
Todavia, do ponto de vista arqueológico e histórico, o povo de Israel se desenvolveu a partir das cidades-estado do Levante e de grupos nômades. Além disso, nunca houve um reino unido; desde o início, Israel Norte e Judá foram reinos independentes. Faço esta distinção porque é fundamental compreender a diferença entre a construção teológica da origem do Israel bíblico e a história, para que não se utilize textos sagrados para legitimar domínio e colonização em nome de Deus. Além disso, essa distinção é fundamental para reduzir o preconceito contra os samaritanos, perpetuado por leituras bíblicas marcadas por uma perspectiva judaíta e interpretações cristãs posteriores.
Há vasta pesquisa no Brasil que demonstra a riqueza e produção teológica de Israel Norte, até mesmo após a queda de Samaria, em 722 a.C. Estudos como os de Cecília Toseli, por exemplo, revelam que tradições como o Êxodo, a aliança e os vínculos com Javé continuaram a ser reelaborados nesse contexto pós-exílio de Samaria, mostrando que Israel Norte teve papel ativo na formação da fé israelita e da Bíblia Hebraica. Essa abordagem amplia a compreensão bíblica e valoriza vozes historicamente marginalizadas pela tradição dominante.
Nos textos do Segundo (Novo) Testamento, o conceito de Israel bíblico foi elaborado como categoria teológica que ultrapassa a identificação étnica e territorial, especialmente nos escritos paulinos. Paulo reinterpreta a identidade de Israel à luz da fé em Cristo, ampliando-a para incluir tanto judeus quanto gentios como parte do povo de Deus (Gl 3,28-29; Rm 9-11). No entanto, uma leitura simplista dos textos bíblicos leva a interpretações equivocadas, como, por exemplo, mobilizar pessoas cristãs a defenderem, indistintamente, as ações do Estado moderno de Israel sob o argumento de “somos o mesmo Israel”, ignorando as diferenças históricas e políticas entre Israel bíblico e Estado moderno de Israel.
Como mencionado no início do artigo, o Estado de Israel, que existe hoje, foi criado em 1948. Entretanto, suas raízes estão no final do século 19, com o surgimento do movimento sionista, liderado por Theodor Herzl, que buscava estabelecer uma pátria nacional judaica na região da Palestina, na época sob o domínio do Império Otomano, e após a Primeira Guerra mundial sob o domínio britânico.
Essa busca pela pátria judaica está inserida em um longo histórico de dispersão do povo judeu, vivenciado desde as deportações promovidas pelo império assírio (722 a.C) e babilônico (586 a.C), bem como as imigrações que ocorrram decorrentes destas ações. A destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos romanos, no ano 70 d.C, é marco importante para a diáspora judaica, pois simbolizou não apenas o colapso das instituições religiosas e políticas do judaísmo antigo, mas também intensificou os processos de dispersão e reorganização das comunidades judaicas em diferentes regiões do império romano e, mais tarde, em outras partes do mundo.
Todavia, é preciso salientar que a terra nunca ficou totalmente vazia. Grupos judaicos continuaram vivendo na região ao longo dos séculos, em convivência — nem sempre pacífica — com outras populações locais, como cristãos, muçulmanos e samaritanos. Diante desse contexto da diáspora, o movimento sionista buscava o retorno à “Terra Prometida”, com um discurso que articulava elementos históricos, religiosos e políticos para legitimar, em nome de Deus, sua proposta nacionalista.
A Declaração Balfour (1917) manifestou o apoio britânico à criação de um “lar nacional para o povo judeu”, o que impulsionou a imigração judaica, mas também aumentou os conflitos com os palestinos. O Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial intensificou a urgência internacional por um Estado judeu soberano. Portanto, em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclamou a independência de Israel, desencadeando imediatamente a guerra com os países árabes vizinhos. Desde então, há muitos desafios geopolíticos na região, especialmente relacionados aos territórios.
Portanto, instrumentalizar a Bíblia para fazer esta associação indevida entre Israel da Bíblia e Estado moderno de Israel nada mais é do que uma teologização da geopolítica a fim de legitimar políticas violentas e coloniais, tendo a Bíblia como escudo para massacres e opressões, especialmente do povo palestino. Esta instrumentalização alimenta fundamentalismos que inflamam o ódio religioso e manipulam a fé em prol de políticas autoritárias e excludentes.
É urgente conhecer os conceitos para não cair nessa manipulação e, principalmente, prezar pela justiça, paz e dignidade dos povos. Assim, torna-se imprescindível reafirmar que a fé não pode ser utilizada como legitimadora de opressões ou políticas de dominação. Frente à instrumentalização da fé para justificar projetos coloniais, ocupações violentas ou políticas de exclusão, a teologia não pode permanecer neutra. Aliás, silenciar diante da opressão é trair o próprio sentido ético da fé.
Portanto, a teologia é desafiada a construir interpretações contextualizadas da Bíblia, pautadas pela justiça e reconhecimento da dignidade dos povos, que denunciem as estruturas de poder e anunciem alternativas fundadas na solidariedade, nos direitos humanos e na defesa da vida digna e extraordinária (Jo 10,10) para todas as pessoas.
PARA SABER MAIS
1- Para a discussão da formação do povo de Israel e Judá leia:
FINKELSTEIN, Israel. O Reino Esquecido: Arqueologia e História de Israel Norte. Tradução de Silas Klein Cardoso; Élcio Valmiro Sales de Mendonça. São Paulo: Paulus, 2015, p. 29-55;
LIVERANI, Mario. Para Além da Bíblia: história antiga de Israel. 2.ed. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Paulus/Loyola, 2014, p. 27-84.
2 – Os estudos de Cecília Toselli sobre a produção teológica de Israel Norte
TOSELLI, Cecília. O Êxodo como tradição fundante de Israel Norte a partir de 1Rs 12,26-32 (Dissertação de Mestrado). Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016.
TOSELLI, Cecília. Entre o fim e a continuidade: A memória norte-israelita do exílio de Samaria, história, tradição e literatura. São Paulo: Fonte Editorial, 2023.
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Imagem de Capa: Unplash