Evangélico é agredido em vigília pró-Bolsonaro após ter espaço de fala e dizer que a justiça está sendo feita

Circula com muita intensidade pela imprensa e nas mídias sociais um vídeo em que um homem evangélico é agredido fisicamente por participantes da vigília religiosa realizada no sábado, 22 de novembro passado, em protesto contra a prisão, em regime fechado, do ex-presidente Jair Bolsonaro. No mesmo vídeo, ao final, o homem aparece sendo entrevistado por vários veículos da imprensa, quando é autoidentificado como Ismael Lopes, morador de Brasília e integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, a qual representa no Conselho de Participação Social da Presidência da República.
Com a viralização do vídeo nas redes, o Irmão Ismael, como pediu ao Bereia para ser chamado, apesar de ser apresentado como pastor e teólogo pela imprensa, tornou-se um dos nomes mais comentados do país por conta da postura crítica em meio ao ato bolsonarista, que resultou nas agressões. Bereia buscou reunir informações sobre o caso, que ainda terá desdobramentos, uma vez que o religioso registrou um boletim de ocorrência e busca o reconhecimento dos agressores.

A “vigília de oração”
A vigília já havia sido convocada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), nas mídias sociais, um dia antes, 21 de novembro, para a frente do condomínio, em Brasília, onde o pai, Jair Bolsonaro, cumpria prisão domiciliar, com tornozeleira eletrônica, desde 4 de agosto, como medida cautelar por obstrução da justiça. Com a aproximação do final do processo em que o ex-presidente foi condenado por vários crimes referentes à tentativa de golpe de Estado em 2022 e 2023, a vigília de “oração pela saúde de Bolsonaro e pela liberdade do Brasil” tinha o objetivo de pressionar parlamentares pela votação do projeto de anistia e os agentes judiciários pelo cumprimento da pena em regime domiciliar.
A convocação da vigília foi realizada em tom bélico, com a indicação de que seria um primeiro momento de ação. O senador citou a Bíblia e conclamou: “Vem com a gente, vamos lutar. Nesse primeiro momento a gente vai buscar o Senhor dos exércitos. Eu te convido para uma vigília que começa neste sábado”. “Vamos pedir a Deus que aplique a sua justiça […]. E com a sua força, a força do povo, a gente vai reagir e resgatar o Brasil desse cativeiro que ele se encontra hoje”, afirmou Flávio Bolsonaro.

Na noite do mesmo 21 de novembro, porém, o quadro mudou. O Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu, por meio do ministro responsável pelo caso, Alexandre de Moraes, uma ordem de prisão de Jair Bolsonaro em regime fechado, que foi cumprida na manhã do sábado, 22 de novembro. O documento registra “risco concreto e iminente de fuga” por conta de tentativa de violação da tornozeleira, que foi confessada pelo réu, somada à convocação da aglomeração em frente ao condomínio onde Bolsonaro cumpria prisão domiciliar.
Flávio Bolsonaro manteve a realização da vigília religiosa para o mesmo dia e horário, agora, após a realização da prisão em regime fechado. O evento reuniu, segundo a imprensa, cerca de cem pessoas no local e foi onde ocorreu a fala do Irmão Ismael e as agressões a ele.
A ação de Ismael Lopes
A presença de Ismael Lopes na vigília religiosa não estava prevista. Em entrevista ao Bereia, o religioso contou que a oportunidade surgiu quando percebeu que um pastor listado na programação não compareceu. “Eu fui (à vigília) com a intenção de gravar um vídeo para as minhas redes sociais. Entretanto, houve uma oportunidade. Parecia que tudo estava organizado para acontecer, pedi ao Flávio para dar uma palavra no lugar do pastor que faltou e ele deixou. Confesso que achei graça quando me deixaram falar e, ao mesmo tempo, fiquei nervoso, obviamente, com a situação”, conta Lopes.
Por volta das 20h10, já com o microfone na mão, Ismael leu Eclesiastes 10:8: “Quem cava uma cova cairá nela.” Em seguida, diante de centenas de apoiadores e ao lado do senador, completou: “Nós temos orado por justiça nesse país, nós temos orado para que aqueles que abrem covas, caiam nelas, não mortos, porque não é isso que a gente deseja, a gente deseja que sejam julgados e condenados pelo mal que fizeram, como o seu pai, que abriu 700 mil covas durante a pandemia, seja julgado pelo devido processo legal, tenha seu direito de defesa, mas que seja condenado e responda pelos crimes que cometeu. Assim, como todos os aliados que compuseram essa horda do mal contra o nosso estado…” Nesse momento foi interrompido. Apoiadores arrancaram o microfone das mãos de Ismael Lopes e o empurraram para fora da aglomeração.
Vídeos mostram pontapés, xingamentos e tentativas de perseguição. Ainda nos arredores da manifestação, Lopes concedeu entrevista a vários veículos de imprensa. Mesmo diante das câmeras, apoiadores do ex-presidente continuaram agredindo verbalmente o religioso. A Polícia Militar interveio com spray de pimenta e precisou escoltá-lo até um carro de aplicativo. Depois, Ismael Lopes seguiu para uma delegacia para registrar a ocorrência.“Eu fiz o BO, fiz o exame de corpo de delito, vai ser anexado ao inquérito, e agora está na fase de identificar os agressores. Fisicamente estou bem, alguns hematomas, alguns arranhões, mas nada grave”, relata.
Ele conta que, durante o discurso, ficou apreensivo com o tempo que durou sem interrupções. “Eu só pensava: ‘Não é possível que ninguém vá me interromper. Quero sair daqui logo’”, disse ao Bereia. Para ele, a reação inicial dos bolsonaristas foi de surpresa, inclusive de Flávio Bolsonaro. “A única reação dele (Flávio) é para tentar impedir que me agredissem. Então eu vou ser justo. Vou agradecê-lo, porque acho que, se não fosse a intervenção dele, provavelmente, eu teria sido bem mais machucado. Eles (os partidários do bolsonarismo) acreditam numa totalidade de evangélicos à direita. Não é verdade”. Ismael Lopes também comentou o medo que sentiu. “Eles trabalham com a dinâmica do medo. E, de fato, eu fiquei com medo. Mas medo a gente tem, só não usa.”
Evangélico desde a infância, o Irmão Ismael afirma que se sentiu provocado pela fala de uma pessoa que o precedeu na vigília, que, segundo ele, distorcia a mensagem bíblica para fins políticos. “Fui porque acredito que a instrumentalização da fé precisa ser confrontada”, afirmou em conversa com jornalistas logo após ser escoltado.
“Acredito que os evangélicos precisam, sim, se manifestar politicamente, porque têm raça, têm classe, têm gênero, têm categoria profissional. Então, os evangélicos têm que participar, se organizar em sindicatos, em partidos, em movimento popular se quiserem, claro. O que sou contra é transformar o culto em ato político partidário”, explica Lopes.
Lopes criticou ainda a suposta perseguição religiosa ao ex-presidente – ideia que circulou nas redes logo que foi noticiada a prisão em regime fechado. Ele disse que sua presença na vigília não se tratou do ato de um cristão “sofrendo perseguição”, mas de uma tentativa de denunciar a instrumentalização da fé cristã. “Eu vim para cá, para acabar com essa instrumentalização da fé cristã que eles fazem.”
Para o evangélico, o discurso de vitimização religiosa desvia a atenção de aspectos concretos do caso, como a violação da tornozeleira eletrônica por Bolsonaro, e transforma críticas legítimas em uma suposta ofensa à fé.
A Frente de Evangélicos se pronuncia
Como Ismael Lopes foi identificado no vídeo viralizado como integrante da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito (FEED), a organização publicou nota nas mídias sociais, em 23 de novembro, pela qual afirma que a ação dele teve “caráter individual e pessoal” e que o ato não havia sido coordenado por ela. O texto é concluído com um registro apoio ao Irmão Ismael e lamento pelas agressões praticadas contra ele.

A nota da FEED, porém, gerou ruídos de comunicação e provocou reações negativas de uma parcela do público. Mesmo com o registro de apoio e lamento pelas agressões sofridas, a ênfase do texto no caráter individual da ação levou a comentários críticos entre seguidores da página no Instagram. Essas pessoas interpretaram que a organização teria “rifado” e “largado a mão” de Lopes.
Diante dessas repercussões, o próprio Irmão Ismael comentou a publicação, em colaboração com a FEED, para superar os ruídos: “Estou de acordo com a nota. A ação não foi coordenada pelo movimento e estou recebendo todo apoio da Frente.”
Para o Bereia, Lopes reforçou o apoio que tem recebido do movimento e acrescentou ter participado da elaboração da nota. “O movimento está me dando todo o suporte necessário, todo o apoio, não só agora, sempre me deu muito suporte, sempre me impulsionou em ações. Foi uma nota sensata e necessária, para marcar um lugar. Eu fiz parte do processo (de elaboração do texto) e acho que era importante destacar que foi uma ação não coordenada do movimento e sim uma ação minha, da pessoa Ismael”, ressalta o carioca que é de tradição batista e, em Brasília, onde mora, frequenta uma igreja independente, mas é membro da Nossa Igreja Brasileira, no Rio de Janeiro.
Ligação com movimentos sociais e o governo federal
Autodenominado “comunista” e “radical de esquerda”, Ismael Lopes integra o Conselho de Participação Social da Presidência, criado pelo governo Lula. Seu nome foi indicado pela FEED, movimento fundado em 2016, durante o impeachment de Dilma Rousseff, que reúne cristãos comprometidos com a defesa da democracia.
A FEED tem mantido interlocução frequente com a primeira-dama Janja Lula da Silva, especialmente em agendas de diálogo com mulheres evangélicas. Antes disso, Ismael Lopes ocupou, de agosto de 2023 a janeiro de 2024, o cargo de coordenador nacional do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, no Ministério dos Direitos Humanos do governo Lula.