Religioso católico tem redes sociais bloqueadas por engano, mas discurso de que sofreu perseguição se espalha

Na última semana, o religioso católico Frei Gilson teve perfis bloqueados em redes sociais digitais, e não conseguiu transmitir lives em que rezava o Rosário com seus seguidores. Segundo a Meta, empresa dona das redes em que Gilson foi bloqueado temporariamente, o bloqueio ocorreu por engano. Os acessos foram restabelecidos em cinco dias. Mesmo assim, discursos de perseguição religiosa ecoaram nas redes e na política. Bereia checou o caso e a propagação de possíveis conteúdos enganosos.

Imagem: reprodução Instagram

Desde 15 de agosto, o líder católico Frei Gilson, que tem 5,4 milhões de seguidores no Instagram, vem rezando o Rosário diariamente às 4h, em lives nas suas redes. Trata-se da Quaresma de São Miguel, que muitos fieis acompanham nas primeiras horas da madrugada.

Em 17 de setembro, no entanto, o religioso da Ordem das Carmelitas fez uma publicação, em seu perfil no Instagram, na qual relatava ter sido alvo de medidas restritivas por parte da rede digital. Na legenda, ele disse que, segundo o Instagram, sua conta havia transgredido uma das normas da plataforma.

Nesta mesma publicação, Gilson afirmou que, após sua equipe ter entrado em contato com o Instagram, a plataforma respondeu “dizendo que tudo havia sido um erro” e com um pedido de desculpas. Porém, mesmo com o esclarecimento, a publicação ensejou comentários que difundiam um discurso de perseguição religiosa.

Ainda hoje estão visíveis, na aba de comentários da publicação, frases como: “Já estava achando que o Alexandre de Moraes iria derrubar o Rosário”, “O inimigo querendo nos derrubar”, “Certeza de que estão tentando calar o nosso Frei”, “Só acontece com páginas de valores cristãos” e “Certeza que foi porque o senhor falou sobre aborto”.

Em uma das imagens publicadas, Frei Gilson compartilhou a mensagem recebida do Instagram, com a informação de que o bloqueio havia sido um engano e de que o conteúdo fora restaurado.

Imagem: reprodução Instagram

Discurso enganoso de perseguição a cristãos ganhou fôlego em comentários

No dia seguinte, 18 de setembro, uma segunda publicação informava: “Santo Rosário!!! Até o momento não estamos conseguindo fazer transmissão ao vivo pelo Instagram. Estamos ao vivo no YouTube!!!”. Na legenda, Frei Gilson informava: “Avisa todo mundo!!!”

Nos comentários, alegações de perseguição religiosa continuavam: “Tem católicos que votam nessa esquerda”, “Senhor, livra o Brasil desse comunismo que estão querendo implantar”, “Está começando a perseguição religiosa”, entre outras que promoviam o mesmo discurso enganoso de perseguição. 

Não havia, por parte da plataforma, nenhuma menção a restrição de conteúdo em razão de um posicionamento religioso. Também não havia – e não há, neste caso – qualquer envolvimento de entes governamentais ou do Estado brasileiro que permitam associar a queda das transmissões a perseguição religiosa ou à intenção de implantação do comunismo. 

No mesmo dia 18, mais tarde, o perfil fez uma nova publicação sobre a situação com a plataforma. Na legenda, Frei Gilson informava: “Até o momento, o ‘Instagram’ ainda não liberou a ferramenta de transmissão ao vivo. Como vocês podem ver em um dos posts, fomos informados pelo Instagram que estamos bloqueados por 29 dias. No entanto, há uma contradição, pois em outro post o Instagram afirma que temos liberação para todas as ferramentas da plataforma”.

No dia 19, o perfil novamente informou seus seguidores: “Estamos ao vivo no YouTube. O Instagram ainda não liberou a transmissão ao vivo”. O público reagiu com comentários como “Guerra espiritual!!”, “Nós avisamos em 2022” e “Não podemos deixar o inimigo nos derrotar”. Alguns usuários, no entanto, pediam que as lives do Rosário apenas continuassem em outra plataforma enquanto o problema não fosse resolvido.

Plataformas da Meta, como Instagram e WhatsApp, contam com sistema de detecção de comportamento inautêntico e de conteúdos que possam ferir as diretrizes da comunidade. O Instagram tem, por exemplo, a prerrogativa de bloquear conteúdos quando há indícios de atuação fora dos padrões. Qualquer associação com intenções persecutórias ou de viés comunista não encontra sustentação na realidade.

Imagem: reprodução Instagram

Frei Gilson adere à tese de perseguição religiosa

No último domingo, 22, o caso ganhou repercussão a partir de uma nova publicação do perfil de Frei Gilson, que dizia: “ATENÇÃO!!! Quero, por meio deste post, informar que fui bloqueado em minhas comunidades do WhatsApp, nas quais me comunicava com 50 grupos. Além disso, hoje faz 5 dias que estou impedido de fazer transmissões ao vivo no Instagram, devido a um bloqueio que recebemos sob a alegação de termos transgredido as regras da plataforma”.

Na publicação, o religioso afirma que não transgrediu regras, que atua dentro das leis e pede orações aos fiéis. Ao final do texto, a mensagem: “É importante que você entenda o que está acontecendo. Evangelizar nunca foi fácil, desde os tempos da Igreja primitiva. Mas uma coisa é certa: não vamos parar. Se uma porta se fecha, vamos abrir outras. Não vamos parar”.

A publicação seguinte feita pelo perfil de Gilson subiu o tom. O religioso publicou um vídeo com a canção “A Nossa Fé” em que, na introdução, faz uma pregação sobre perseguição a cristãos. “Em todos os tempos, em todas as épocas, a Igreja de Jesus é perseguida. Em todas as épocas os cristãos são perseguidos. Se viverem o que tiverem que viver, sofrerão perseguições”, diz Gilson no vídeo.

A série de publicações, acrescida da adesão do líder carmelita à narrativa de perseguição, fortaleceu a propagação de discursos enganosos de perseguição a cristãos no Brasil, inclusive com reprodução por parte de atores políticos. 

“Perseguição” chega ao Congresso Nacional

Naquele mesmo domingo, 22, a deputada federal católica Bia Kicis (PL-DF) publicou, em seu perfil no Instagram, um vídeo com os dizeres “Perseguição religiosa escancarada! Ódio ao Cristianismo! Basta!”. A legenda da publicação traz a seguinte mensagem: “A Meta bloqueou grupos do WhatsApp e suspendeu as lives do Frei Gilson nas quais ele reunia milhares de cristãos para rezar o terço. Ódio ao Cristianismo, mas, NÃO VÃO NOS CALAR!”.

Imagem: reprodução Instagram

No vídeo, Kicis afirma que Frei Gilson teve 50 grupos de WhatsApp bloqueados e foi censurado pelo Instagram, que o impediu de transmitir lives. A deputada sugere que as restrições à conta de Gilson ocorreram porque o Rosário estava sendo rezado e porque o religioso teria feito uma fala contrária à prática do aborto. Tais justificativas nunca foram usadas pela Meta, conforme mensagem da empresa que o próprio religioso compartilhou

A tese de que comentários sobre aborto teriam justificado o bloqueio foi repercutida pelo próprio Frei Gilson. Em uma outra postagem, publicada nos dias em que suas lives estavam bloqueadas, o carmelita contou que, há três anos, gravou três vídeos sobre o tema, e um deles não teve a mesma repercussão que os outros dois. 

Segundo Gilson, o vídeo que teve a propagação restrita recebeu um alerta do YouTube com a informação de que o tema aborto não poderia ser tratado na plataforma. O conteúdo continua disponível na plataforma e contava com quase 130 mil visualizações até a publicação da matéria. Os outros dois vídeos já chegaram a 1 milhão e 2 milhões de visualizações. O fato de, em três vídeos, dois deles terem repercutido normalmente, sem interferência do YouTube, não pesa nas considerações do religioso.

Outro político que mencionou perseguição religiosa – neste caso, no Senado Federal – foi o senador Izalci Lucas (PL-DF). Na terça-feira, 24, ele levou à Sessão Plenária do Senado a informação de que contas ligadas a Frei Gilson haviam sido bloqueadas. O senador disse que entrou em contato com a Meta e recebeu a resposta de que houve equívoco por parte da empresa, e que o acesso às lives  no Instagram e aos canais de WhatsApp vinham sendo normalizados.

Mesmo assim, ele afirmou estar preocupado com a possibilidade de perseguição religiosa: “Acontece uma coisa dessa, não é, onde o Frei Gilson simplesmente reza o Santo Rosário. A gente vê e fica preocupado que não esteja acontecendo também alguma perseguição, vamos dizer assim, religiosa, como vem acontecendo em outros países onde a ditadura reina, como as coisas estão caminhando aqui, nessa direção (…) espero que não haja nenhuma relação com a questão religiosa, mas lamentável que o Frei Gilson tenha tido mais de uma semana com o Instagram bloqueado”.

Discursos enganosos sobre perseguição a cristãos no Brasil

No mesmo domingo, 22, em que Bia Kicis fez seu protesto contra a suposta perseguição religiosa, o perfil de Frei Gilson no Instagram publicou e fixou uma postagem com a legenda: “Boas notícias!!! Quem ficou feliz???”. Em vídeo, Gilson diz que tanto seu perfil no Instagram quanto seus canais no WhatsApp haviam sido liberados. “Nossas redes voltaram, para que eu possa continuar rezando e evangelizando”, disse.

Nos comentários, fieis aliviados comemoraram o fim do bloqueio – que durou cinco dias -, mas o discurso de perseguição continuou: “A censura da extrema esquerda é uma ameaça de cada dia”, comentou um seguidor. Outro disse: “Eles tentaram nos calar, mas nossa fé é inabalável”.

A propagação do discurso de perseguição religiosa ou de “cristofobia” – um termo construído para justificar uma inexistente perseguição a cristãos no Brasil – tem tido ampla repercussão nas redes digitais e no meio político brasileiro. No recente caso que envolveu o Frei Gilson, a tese foi amplamente propagada, sem que houvesse indícios concretos de perseguição por parte da Meta, que efetuou os bloqueios e admitiu ter cometido um erro, ou de qualquer outra entidade.

Como Bereia tem alertado, os discursos sobre perseguição a cristãos têm ganhado terreno no Brasil, mas nem sempre estão em acordo com a realidade dos fatos. Muitas vezes, o discurso de perseguição ganha espaço nas redes digitais, mas também é comum encontrá-lo na política, propagado por líderes que fazem da fé suas plataformas eleitoreiras.

É comum que ocorra um apelo ao imaginário cristão e ao tema dos inimigos da fé como forma de explorar a fidelidade dos cristãos ao Evangelho, mesmo que não haja, de fato, uma perseguição em curso. O recente caso do Frei Gilson é um exemplo entre tantos.

Casos de perseguição como o que ocorre na Nicarágua são importados para a realidade brasileira como se aqui ocorressem. Decretos que dizem respeito à saúde pública são instrumentalizados para justificar suposta perseguição religiosa. Reações dos Poderes a atos ilícitos praticados por atores políticos também se encaixam à tese.

Importante também destacar que a suspensão de contas é ação frequente das plataformas que trabalham com algoritmos e práticas automatizadas, sujeitas a equívocos, como justificado ao Frei Gilson pela Meta. São periódicas as reclamações de usuários que têm suas contas suspensas tanto no Instagram quanto no Facebook. Isto reforça o questionamento sobre a falta de regulação sobre as dinâmicas das plataformas digitais, até hoje soberanas nas decisões sobre o que e como publicam, levandos em conta os altos níveis de lucro financeiro. 

*A reportagem entrou em contato com Frei Gilson, mas não obteve resposta até a publicação da matéria.

Referências

YouTube

https://www.youtube.com/watch?v=xwQJteHe3Pc&ab_channel=Biakicis Acesso em: 25 set 2024

https://www.youtube.com/watch?v=ngM9byPcZEM&ab_channel=FreiGilson%2FSomdoMonte-OFICIAL Acesso em: 25 set 2024 

https://www.youtube.com/watch?v=bckvNY1aCng&ab_channel=FreiGilson%2FSomdoMonte-OFICIAL Acesso em: 25 set 2024 

https://www.youtube.com/watch?v=m5WDJTphqK8&ab_channel=TVSenado Acesso em: 25 set 2024 

DF Mobilidade

https://www.dfmobilidade.com.br/cidades/video-senador-izalci-denuncia-possivel-perseguicao-religiosa-apos-bloqueio-do-frei-gilson/ Acesso em: 25 set 2024

Coletivo Bereia

https://coletivobereia.com.br/a-mentira-que-nao-quer-calar-sobre-perseguicao-a-cristaos-no-brasil/ Acesso em: 26 set 2024

https://coletivobereia.com.br/sites-e-lideres-religiosos-apontam-suposta-perseguicao-religiosa-em-decreto-sobre-comprovante-vacinal/ Acesso em: 26 set 2024

https://coletivobereia.com.br/apos-perda-de-mandato-de-dallagnol-politicos-religiosos-propagam-narrativa-enganosa-de-perseguicao/ Acesso em: 26 set 2024

https://coletivobereia.com.br/mensagem-em-grupos-religiosos-engana-e-cria-alarde-sobre-fechamento-de-igrejas-na-nicaragua/ Acesso em: 26 set 2024

Instagram

https://www.instagram.com/p/DABFd7RR1tf/?img_index=1 Acesso em: 24 set 2024

https://www.instagram.com/p/DAOxwNHPTRD/?img_index=1 Acesso em: 24 set 2024

https://www.instagram.com/biakicis/reel/DAOqoBYPLQf/?hl=pt-br Acesso em: 24 set 2024

Gazeta do Povo

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/apos-denuncias-redes-sociais-do-frei-gilson-sao-desbloqueadas/?ref=busca Acesso em: 23 set 2024

Folha Vitória

https://www.folhavitoria.com.br/geral/noticia/09/2024/frei-gilson-relata-bloqueio-de-suas-comunidades-no-whatsapp Acesso em: 23 set 2024

Brasil Paralelo 

https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/instagram-proibe-frei-gilson-de-realizar-live-do-rosario-de-sao-miguel Acesso em: 24 set 2024

Conteúdo falso com uso da Bíblia contra projeto de lei foi oferecido a deputados

* Matéria atualizada às 23:27 para correção de informações

Em notícia de última hora, o colunista do jornal Metrópoles, Guilherme Amado, revelou que lobistas da Câmara Brasileira da Economia Digital entregaram a deputados evangélicos um documento com a tese de que o PL 2630/20 poderia censurar versículos bíblicos.

A tese foi encampada pelo deputado evangélico Deltan Dallagnol (Podemos-PR), conforme já checado pelo Bereia.

Leia a coluna completa de Guilherme Amado neste link. A jornalista Tatiana Dias fez uma thread no Twitter sobre a Câmara Brasileira da Economia Digital.

Cristofascismo, pandemia e a história das epidemias no Brasil

Do combate à varíola no início do século XIX até as confusões atuais sobre o COVID19, as epidemias são períodos privilegiados para a análise das estratégias de comunicação entre autoridades e a população, especialmente na sua parcela mais fragilizada. Neste artigo, as mensagens de lideranças políticas e religiosas atuais são examinadas à luz de outros momentos históricos marcados pela ameaça de caos social trazida por doenças.

O termo “cristofascismo” foi cunhado pela teóloga alemã Dorothee Sölle em 1970 para descrever as relações entre as igrejas cristãs e o partido nazista, beneficiado pelo apoio de lideranças religiosas. Utilizado no Brasil por Fábio Py (entre outros), o conceito tem se consolidado como uma proveitosa chave de leitura para entender a relação do governo Bolsonaro com sua base de apoio, a qual o enxerga como o Messias que se sacrifica pelo seu povo, em defesa de uma suposta “família tradicional brasileira” cuja saúde física, moral e econômica estaria sob ameaça. A imagem abaixo, postado no Instagram da deputada estadual fluminense Alana Passos no dia 26 de abril de 2020, sintetiza a mensagem:

O post coleciona mais de 14 mil curtidas até o final de maio (e alguns comentários críticos também). Dada a sua popularidade, torna-se urgente avaliar como o discurso cristofascista é recebido dentro de seu público-alvo em tempos de pandemia e levantar hipóteses que conectem esse ideário político a uma história do controle do Estado sobre a população em termos da pauta dos costumes e de sua relação com a saúde pública.

No Brasil atual, a mensagem de que o Covid-19 é uma maldição impetrada pelo pecado pode ser compreendida à luz do discurso moral que dá sustentação política ao grupo no poder. Se o cristofascismo tenta aproxima Jair Messias de Jesus Cristo, seu corolário é que contrariar o primeiro é também chamar para si e para o país a fúria do último, e, portanto, a morte. E que, ao invés das ações recomendadas pelas autoridades sanitárias, o que pode salvar o país da doença é a obediência às lideranças religiosas, especialmente aquelas alinhadas com o discurso do Executivo federal.

Dentro desse quadro, há aspectos de continuidade e de ruptura com outros momentos da história brasileira nos quais as epidemias foram interpretadas como oportunidade de aumentar o controle sobre a população e combater as culturas de resistência ao poder instituído. Em seu livro “Cidade Febril”, Sidney Chalhoub mostra que os cem anos de políticas públicas anteriores à Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, são elucidativos. A introdução da vacina antivariólica no Rio de Janeiro em 1804 marca, à primeira vista, uma saudável preocupação em acompanhar a vanguarda mundial da política pública de saúde na época. Entretanto, ela é também o primeiro passo de uma sequência de ações que incluem o combate à epidemia de febre amarela em 1850, do cólera em 1855 e deságuam na Reforma Pereira Passos em 1906.

Estes momentos possuem em comum a retirada do direito de moradia no centro da cidade das parcelas mais pobres da população, conjugada a intervenções violentas sobre os corpos negros agravada pela falta de diálogo com as culturas estabelecidas nestas populações sobre o uso do corpo e os sentidos de doença. Os órgãos de saúde pública não demonstraram nenhuma preocupação em comunicar-se com escravos, alforriados e pobres livres a partir de suas próprias culturas. Se assim tivessem feito, descobririam outras visões para doenças como varíola, cólera ou tuberculose. Teriam de explicar, por exemplo, porque sua preocupação se circunscrevia aos bairros onde a população branca era maioria, se estas enfermidades eram mais mortíferas entre os negros. Descobririam que, por isso mesmo, tais doenças eram vistas como feitiçaria de brancos para matar os negros.

Mas nem tudo era vitória dos “feiticeiros brancos”; o fato de a febre amarela atingir, em 1850, mais brancos do que negros, foi lida como uma vingança de São Benedito ao fato de ele não ter sido levado na tradicional procissão de 4ª feira de Cinzas, no ano anterior, por não ter branco que aceitasse carregar santo preto. A aproximação do santo a Omolu, orixá do candomblé capaz de infligir a doença, conferiu mais plausibilidade a essa interpretação.

Há, porém, novidades significativas para o caso atual. Nos casos antigos, a exclusão social se justificou como uma medida científica, higiênica. As autoridades políticas e científicas atuaram de forma uníssona para comunicar uma mensagem: não era necessário ouvir os pobres para saber que eram eles os responsáveis pela doença e que não deveriam obstruir o Brasil que se civilizava.

No cenário atual, as autoridades científicas, políticas e religiosas assumem papéis radicalmente distintos. Entre os primeiros, um século de estudos em saúde pública dotaram os profissionais da saúde de maior sensibilidade com os problemas sociais. As autoridades políticas e religiosas também inovam na emissão de uma mensagem que dialoga de modo ambíguo com certos preconceitos estabelecidos na população. Ao convocar um jejum no dia 04 de abril em meio à pandemia, o presidente admite que a crise do país é de fundo sobrenatural; ao mesmo tempo, minimiza em seus discursos o efeito do morticínio e oferece saídas milagrosas, como a hidroxicloroquina. Desse modo, dialoga com visões sobre epidemias estabelecidas pela cultura popular na longa duração, mas confere novo sentido a elas dentro de sua lógica totalitária. Posiciona-se em papel messiânico, no sentido de quem traz a cura/salvação através da fé e reserva aos supostos desviantes o justo castigo da morte. A consequência é uma nova forma de eugenia: não se trata de decidir quem deve morrer na câmara de gás, mas quem deve ter acesso ao respirador para sobreviver.

Uma resposta a este procedimento pressupõe uma disputa em diversos âmbitos, inclusive teológicos, sobre como deve ser interpretada a figura de Cristo, entendido como encarnação divina, e da Providência. Exige, portanto, a retomada de uma linhagem de pensamento que enxerga no Jesus de Nazaré uma mensagem pacifista e de propagação dos direitos humanos, que a impeça de ser retomada como fiador da legitimidade de atos de violência. De modo semelhante, exige compreender que afirmar que a vontade divina pode ser a responsável pela morte de alguém implica em uma contradição com os valores historicamente assumidos pelos Evangelhos, no Cristianismo Primitivo.

Foto de Capa: Pixabay/Reprodução