Desinformação, fake news e os caminhos do demônio

*Publicado no Observatório das Eleições 2022 e no site da Carta Capital

Em um culto em Belo Horizonte para homenagear um pastor, no começo de agosto, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, ao lado do marido, disse que há no Brasil uma “guerra do bem contra o mal” e que o Palácio do Planalto já foi um lugar “consagrado aos demônios”.  

Também em agosto, o pastor bolsonarista Marco Feliciano disse que o PT é expressão do mal e que, se Lula ganhar, vai fechar templos e igrejas e calar os pastores.

O jornal Folha Universal, no ano passado, fez vários editoriais comparando o ex-presidente Lula ao demônio e ao mal.

Em janeiro deste ano, circulou pelas redes sociais um vídeo editado para simular que o ex-presidente Lula conversava com o demônio.

A ideia do demônio, como vemos, volta com força à cena nacional e ao processo eleitoral, por vários atores. Uma ideia forte que se alinha muito bem ao potente sistema de desinformação que sacode o Brasil com intensidade desde as últimas eleições, em 2018. Nesse contexto, eu quero convidar vocês a percorrerem o caminho da construção discursiva do demônio no escopo do ecossistema das fake news para entendermos por que, de fato, ele é um “personagem” importante.  

Um poderoso ecossistema

O Brasil vivencia, com as eleições de 2018, a intensificação de um processo de desinformação que se torna pouco controlável a partir de 2020, com a pandemia de Covid-19. É um processo bem estruturado, que não se restringe ao Brasil, um fenômeno mundial que solapa democracias de Norte a Sul. Nesse contexto, a desinformação precisa ser entendida como um fenômeno estruturado, intencional, que se consolida nas sociedades contemporâneas e que tem fortes impactos em vários contextos – social, político, econômico, de saúde –, o que compromete seriamente o funcionamento da esfera pública, como ressalta Carlsson (2019).

Partindo desse sistema macro, eu situo o ecossistema brasileiro de fake news, que tem características bem marcantes: aporte e sustentação do poder público e de setores do empresariado, grande financiamento, produção intencional e profissional de conteúdo falso envolvendo diversos atores (por exemplo, sites com estrutura de produção de conteúdo, influenciadores que recebem benesses, representantes do poder público, entre outros) e enorme capilaridade para disseminar o conteúdo. Esse ecossistema, que nada tem de aleatório ou casual – pois é muito bem estruturado –, encontrou no país um campo bastante fértil para se desenvolver (lembrando que a capilaridade envolve a interface com outros sistemas – portanto, não se trata somente de “espalhar conteúdo” pela internet).

É um ecossistema que, com essas características, tem conseguido causar enormes estragos ao Brasil, em vários setores. Recentemente, está contribuindo para tumultuar bastante o processo eleitoral, colocando em xeque instituições já consolidadas em sua atuação e processos exitosos, como é o caso do sistema eleitoral brasileiro, além de propagar ataques a atores institucionais, como ministros do STF e do TSE.  

O fenômeno das fake news, em seu ecossistema brasileiro, não se esgota, portanto, apenas na disseminação das notícias falsas ou falseadas – há um processo de produção profissional de conteúdo que envolve muitos atores e financiamento. Além disso, esse  ecossistema se retroalimenta e está em interface com outros sistemas, como o de informação (tradicional – mídia corporativa) e o religioso, numa capilaridade gigantesca.

E então voltamos ao demônio da primeira-dama e seu papel nas eleições. 

O demônio é o inimigo a combater

O demônio, como construção discursiva, liga-se à ideia de um inimigo poderoso e que precisa ser combatido. Nós, ao nos comunicarmos, não pronunciamos palavras somente – pronunciamos verdades ou mentiras, coisas boas ou más, certezas inquestionáveis, pois a palavra comporta valores e crenças e visões de mundo. Portanto, o demônio trazido à tona recentemente pela primeira-dama e por outros atores funciona muito bem nesse ecossistema de fake news, já que  o termo cristaliza a ideia de um inimigo a combater a partir de um apelo a valores cristãos e num cenário de disputas polarizadas.

Essa ideia se consolida e se espalha por várias instâncias, numa retroalimentação que envolve vários sistemas – o demônio como ideia não se restringe à fala de Michelle naquele momento no culto, mas se espalha pelas redes sociais, pelos sites bolsonaristas, pela pregação do pastor na igreja, pelos artigos no jornal de maior circulação no país (que é da igreja). Portanto, não é uma expressão aleatória e nem um demônio qualquer – é uma entidade capaz de provocar os eleitores religiosos ainda indecisos, ou que estavam migrando para outros candidatos que não Bolsonaro, e interpelar fortemente esse eleitor naquilo que é sua crença ou seu medo. 

As categorias religiosas não são levadas aleatoriamente para o discurso num país bastante religioso como o Brasil. Elas dialogam de perto com as crenças, os valores, os medos, as incertezas das pessoas, e por isso são tão presentes no escopo das fake news – vale lembrar que a visão de mundo dos indivíduos não é racional todo o tempo. E em tempos de incertezas, medo do futuro, precarização da vida, a ideia de um demônio a combater pode ser efetiva sim.    

E no bem estruturado ecossistema brasileiro de fake news, essas construções discursivas encontram um caminho para se consolidarem, para se dissiparem, para se reproduzirem, para alcançarem mais e mais pessoas, fortalecendo-se contra os desmentidos e provocando a manifestação apenas reativa e tardia dos atingidos.

Portanto, é imperioso entendermos o demônio de Michelle no contexto desse ecossistema brasileiro de fake news no cenário de um acachapante sistema de desinformação – estruturado e estruturante. Uma ideia de bem contra o mal, de combate ao inimigo que destrói famílias; ideia que é trazida por uma mulher jovem, que defende a família, que se posta ao lado do marido presidente, aquele que perdeu uma parte expressiva do eleitorado feminino exatamente por ser abertamente machista e misógino.

Sobretudo, o discurso que traz o demônio à cena nacional serve muito bem para consolidar a agenda ultra-conservadora da extrema-direita e para tirar o foco de temas e pautas que realmente interessam ao país e que deveriam estar sendo muito discutidas: fome, desemprego, economia estagnada, aumento acentuado da depressão na população, corte de verbas públicas para a educação e a saúde, entrega da Petrobras, privatização da Eletrobrás, entre tantos outros.  

Mas, por ora, metaforicamente ou não, o capeta está roubando a cena no Brasil de Bolsonaro.

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Foto: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil

Cultos online e as fissuras do fundamentalismo religioso no Brasil

Por Delana Corazza, Angelica Tostes e Marco Fernandes¹

Conteúdo originalmente publicado no site www.thetricontinental.org

Confira a terceira parte do estudo “Cultos online e as fissuras do fundamentalismo religioso no Brasil”. Para ler a primeira parte, basta clicar aqui. Para ler a segunda parte, basta clicar aqui.

As possíveis fissuras do discurso fundamentalista

Entre os pentecostais alguns discursos são importantes para a construção do fundamentalismo, como a lógica do triunfalismo e da cura, que envolvem a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. A primeira reforça o sentido individual da possibilidade cristã de felicidade e prosperidade terrena – e não mais somente no reino dos céus -, a partir da fé e de seu comprometimento com a igreja. Já a segunda aponta que, para a realização dessa felicidade, é necessário se inserir na batalha espiritual contra o Diabo, sendo este o responsável de todos os males da humanidade, e que os crentes devem resistir às suas tentações e pecados. Dessa forma, se algo de ruim acontece com o indivíduo, é atribuído algum pecado a essa pessoa, e entendido que o mal veio como fruto de desobediência a Deus. A partir dessa visão é gerada uma culpabilização do indivíduo frente às adversidades da vida. Ser evangélico se torna a única possibilidade de ação contra as forças demoníacas presentes na terra, a conversão é o único caminho para a salvação.

Com a pandemia do Covid-19, algumas bases teológicas fundamentalistas pentecostais parecem estremecer. O jovem batista Jackson Augusto acredita que “talvez muitas pessoas vão desacreditar de espiritualidades assim, esse discurso que promete coisas, que ninguém vai tocar em você, o discurso neopentecostal é além do financeiro. Para algumas experiências pode haver um enfraquecimento do discurso fundamentalista.”

O discurso do fundamentalismo religioso é ecoado na fala de um pastor pentecostal entrevistado: “Quem está confiante nesse momento? Quem confia em Deus, quem sabe que Deus está no controle de tudo. Nada acontece se não for a permissão de Deus. Então quer dizer, nós estamos em paz, eu estou em paz. Pessoas que não tem essa confiança em Deus, pessoas que não creem em Deus estão desesperadas, ‘e agora, o que vai ser da minha vida’, né?”. Em outras linhas, acaba minimizando as consequências da pandemia em relação à saúde pública e as maneiras que têm afetado a vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras nesse país, como se bastasse a confiança em Deus. No início da pandemia, Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), disse aos seus fiéis para não se preocuparem com o coronavírus e que isso era uma “uma tática de Satanás” – e da mídia – para causar pânico nas pessoas. A visão fundamentalista que enxerga um inimigo comum – o outro – a ser destruído por meio da fé e o papel da conversão como única forma de salvação encontram ecos na política negacionista de Bolsonaro. Para o pastor batista e professor de teologia, Kenner Terra, “não há nada mais perverso, desumano, monstruoso e anticristo do que tornar essa crise um instrumento de capitalização política. O discurso do Presidente, sempre preocupado em falar ao seu reduto eleitoral, já se mostrou desastroso e fragiliza as estratégias de combate à pandemia. Por outro lado, a relação acriticamente religiosa com o atual governo torna alguns pastores/as evangélicos/as recrutas de um projeto insano de poder.”

A visão teológica do “Deus no controle” e os líderes da Igreja como os profetas deste Deus imobiliza a ação social das igrejas ao combate às injustiças sociais e desigualdades, como relata o assembleiano Ronaldo que não teve sucesso ao implementar trabalhos sociais para além do assistencialismo na igreja: “Em relação ao coronavírus a nota é zero. A igreja não tem a filosofia de fazer esses trabalhos. Quando aparecem pessoas interessadas em fazer, como eu falei, quando vai para as esferas superiores eles não aprovam. […] As instituições religiosas têm um dono que não se chama Jesus, e sim aqueles que estão a frente desses trabalhos.”.

O poder que as lideranças das igrejas atribuem a si próprias é contraditório com as raízes do pentecostalismo que também estão ligadas à Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero. Visto que um importante ponto da Reforma é que não há mediação sacerdotal entre Deus e o ser humano, o único mediador seria Jesus. Fiéis e líderes resgataram em diversas falas a tradição protestante como forma de encontrar resistências em um momento em que pastores se colocam como a autoridade máxima da fé. Gedeon Alencar pontua que “na tradição protestante, em tese, nós anulamos todo e qualquer tipo de mediação porque a teologia de Lutero é do sacerdócio universal dos crentes, ou seja, todo crente é seu próprio sacerdote. E o culto, não tendo pastor ou tendo pastor, pode ser celebrado. O pastor Rosivaldo segue na mesma linha, ao dizer que “para nós pentecostais, desde Lutero, isso (o fechamento das igrejas) não é um problema. Porque você não precisa de sacerdote para falar com Deus, não precisa de um mediador. A Bíblia está aí, você tem ela traduzida na sua língua, então leia a Bíblia, ore a seu Deus e jejue”.

Entretanto, o uso da religião como manipulação ainda é um instrumento de controle sobre os corpos e subjetividades em alguns contextos. Por mais que os princípios da Reforma Protestante aponte caminhos para uma fé mais individualista e privada, no campo popular brasileiro a realidade é oposta. Para Ronaldo, da Assembleia de Deus Ministério Madureira, “as pessoas não foram preparadas para serem independentes. Foram preparadas para serem dependentes do ditador trazido para a igreja”. Um elemento que alguns desses líderes traziam, e ainda trazem, é a cura. Um exemplo é o vídeo publicado no Youtube em que o pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago, promete a cura do coronavírus com a compra de sementes de feijão abençoadas, pedindo o “propósito” de R$1 mil por elas. Após inúmeras críticas, a IMPD emitiu uma nota alegando que não vendiam sementes, nem prometiam a cura. No dia 11 de maio o MPF (Ministério Público Federal) solicitou que o YouTube retirasse do ar vídeos, e continua investigações em relação a “curas mágicas”.

Os esgarçamentos de tais discursos podem ser um ponto de fissura no fundamentalismo religioso. A fala de Ronaldo soa como um desabafo em relação a isso. “O coronavírus mostrou o quanto de farsa existe dentro da prática religiosa, o quanto de farsa que existe na liderança religiosa porque mostrou a hipocrisia de tudo isso. Alguns até tem programas de televisão mostrando curas, coisas impossíveis, e o coronavírus ninguém cura.” Claudio desabafa um ocorrido que aconteceu entre ele e sua companheira e o pastor da igreja:“A gente quase teve uma discussão com o pastor. Veio essa tese Bolsonarista de gripizinha, nós nos posicionamos, porque o vírus não tem partido, então você não pode ir pela cabeça de pastor, e o meu pastor não é Deus.” A jovem evangélica Alana aponta que “discursos religiosos também têm se enfraquecido. Quando eu digo que a cura vai chegar só com oração e essa cura não chega? Como dar respostas a isso? Se esses pastores têm tanto poder, por que eles não estão nas portas dos hospitais simplesmente curando as pessoas?”. Para Josélia Pereira, liderança da FLM, diz que tudo isso “mostrou que ninguém tem o poder de curar nada e nem ninguém, quem cura é Deus. ‘Nossa, fulano, ciclano, realizava tanta coisa’ e a gente tem casos dessas igrejas grandes de próprios pastores e obreiros que pegaram o vírus. Acho que as famílias, mais do que nunca, têm acordado.”

Claudio nos conta que muitos pastores estão deprimidos e traz uma importante reflexão obre como pode se fragilizar esse poder tão grande dado a essas lideranças. “Muitas vezes o pastor tem uma igreja e ali é a área de escape dele, entendeu? Ele é idolatrado, ele é o cara, ele é o pastorzão, então nesse momento que ele perde a igreja e tem que ficar com a família, ele fica meio que sem pé, né? A igreja é um escape, lá ele manda, lá ele tem um monte de gente, entre aspas, para puxar o saco, babar o ovo. Em casa, se ele não tem uma sustentação bíblica, um estudo, se não está realmente pautado na palavra, o cara se sente pior do que a gente que é membro. Ele é um Deus, né? Vaidade, se você não tiver uma base na Bíblia mesmo, aquilo que Deus fala: ‘a honra é Dele, a glória é Dele’, você se perde aí, você acha que é você. Todo mundo que foi exaltado ficou para trás. Aquele pastor que é humilde não sente muito, não”.   Encontrar as fissuras nos discursos e ações dos pastores que levantaram a bandeira fundamentalista é um desafio. Aprender a construir pontes de diálogo e de aproximação que não estão prontos, dado que muitas das afirmações do campo progressista não conseguem, ainda, dialogar com os fiéis, é uma tarefa fundamental nesse momento. Para Alana, essas novas ideias não serão agregadas dizendo “o quanto alienado vocês estão por seguirem esse pensamento”. Respeitar a fé em todas as dimensões da vida das pessoas é imprescindível para não aniquilarmos o diálogo. A ciência, a fé e a luta não são antagônica. O pastor Rosivaldo expressa sua fé dizendo que acredita em milagre. “Acredito que Jesus cura, em libertação. Agora, eu também acredito na ciência. O que Deus tinha que fazer para humanidade ele já fez, que foi enviar Jesus para salvar o mundo. Agora o problema da COVID-19 é um problema evidentemente humano, não vem meter Deus nesse negócio porque não tem nada a ver. É um problema biológico, não é uma força espiritual da maldade.”

Outra questão que devemos nos colocar como tarefa é a possibilidade de disputa da leitura da Bíblia. Avaliamos que é possível o questionamento sobre o papel do pastor e aquilo que ele tem pregado nos seus discursos dentro e fora da Igreja, e nos perguntamos: a Bíblia é o canal principal de disputa das narrativas? Com o culto online e o incentivo ao culto doméstico os fiéis tem passado mais tempo com a Bíblia. A leitura bíblica feita pelos membros das igrejas, sem a interpretação direta do pastor ou instituição, pode contribuir também para as rachaduras do discurso fundamentalista da fé. A relação dos evangélicos com a Bíblia é algo forte, fruto também da Reforma Protestante com o Sola Scriptura (Somente a Escritura), uma das cinco afirmações em latim que resumem os princípios da Reforma, sendo estas: Sola Fide (somente a fé), Sola Scriptura, Solus Christus (somemte Cristo), Sola Gratia (somente a graça) e Soli Deo Gloria (somente a Deus a glória). Entretanto, não se pode cair em um idealismo, visto que a própria Welita Caetano, liderança da FLM, pontua que “nós somos carregados de preconceitos, com essa carga preconceituosa você vai ler um versículo”. E acredita que “a Bíblia abre possibilidades para você pensar tanto de forma extremamente conservadora quanto extremamente libertária, depende muita da visão que você tem, dessa carga cultural que você tem, dos livros que você já leu, a partir disso você consegue fazer uma leitura”. Quando corpos diversos leem a Bíblia, muitas interpretações surgem. O que pode fragilizar, de certa maneira, discursos de interpretação única. Para a pastora metodista e teóloga Nancy Cardoso:

“Fundamentalismo é a interrupção da interpretação. O que o fundamentalismo pede para nós é que suspendamos a interpretação. No fundamentalismo ninguém precisa interpretar. O pastor diz, o político diz, e suspende a interpretação. No máximo você descreve, mas interpretar e, a partir da interpretação, fazer interpretação política, não. Então, o fundamentalismo pede para nós o congelamento do processo hermenêutico. Que as pessoas não pensem, que as pessoas não tenham autonomia, direito de decidir (com todos os problemas que o direito de decidir tem)”.

CARDOSO, 2015, p. 125.

Josélia, da FLM, explica sua relação com a Bíblia em tempos de pandemia: “a gente lê junto (com a família). A palavra de Deus diz em Oséias 46 que o povo sofre por falta de conhecimento. A Bíblia é um livro que cada um lê de um jeito e é isso que a gente tem procurado mostrar para os nossos irmãos, que nós somos ovelhas, a gente não é gado. A gente precisa ter o conhecimento da palavra, não dá para a gente fazer isso por que tal bispo, tal apóstolo, tal pastor falou. A gente tem que fazer por que a gente tem que ir lá, examinar a escritura e ver se é aquilo. Então quando a gente faz isso junto, por mais que tem interpretação diferente, a gente consegue entender ali na Bíblia, o que a palavra quer dizer. A gente tem procurado fazer juntos ou quando tem uma dúvida a gente procura estudar o que significa aquilo, o que a Bíblia quer falar em relação àquilo. Por que a Bíblia se renova todo dia, se você ler um salmo hoje, amanhã, quando passar alguns dias que você for ler, mediando o que você está passando, você vai interpretar ele de outra forma”. A trabalhadora doméstica da Zona Norte de São Paulo, Cleonice, que como apontamos não tem tido muita paciência para esse novo formato de culto, tem se conectado com Deus lendo a Bíblia diariamente para seus quatro filhos. Ela diz que sempre leu a Bíblia, mas agora colocou a leitura com as crianças como parte de sua rotina espiritual.

Pós-pandemia

Diante deste cenário, ainda é impossível prever o que será da igreja pós-pandemia. Talvez haja essa pulverização das figuras de autoridades e discursos únicos, ou uma reinvenção do fundamentalismo para abraçar ainda mais as comunidades que sofreram pela pandemia. Talvez a fé seja questionada por conta da falta de respostas para tanto sofrimento ou, ao contrário, com o aprofundamento da crise e com a saúde mental abalada, pode haver um aumento do número de pessoas procurando nas igrejas evangélicas as respostas para suas dores. O futuro é incerto.

As apostas sobre essa nova igreja estão sendo feitas, muitos fiéis acreditam que a vontade do encontro e do abraço fará com que a igreja seja fortalecida e que valorizem mais ainda este espaço tão importante no cotidiano dos fiéis. Para Edgar Aires, membro da IBAB, “perceber a necessidade de comunhão hoje, talvez provoque mais comunhão para frente”. Também há uma crença de que novos fiéis poderão adentrar o universo das igrejas porque, de alguma forma, foram tocados pelos cultos online assistidos por alguém da família convertido. Josélia acredita que haverá uma queda brusca na participação dos fiéis das grandes igrejas, pois muitos encontram o acolhimento e cuidado em outras pessoas. Para os que voltarem, ela acredita que estarão mais conscientes.

A forma que este retorno vai se consolidar é ainda um campo em disputa. O pesquisador Gedeon Alencar aposta em uma mudança radical do papel da fé na vida das pessoas: “quem sabe a nossa sonhada e desejada secularização tome algum fôlego. Primeiro porque esse grupo da discussão da fé, do milagre, do Deus que intervém, perdeu o discurso. (…) o problema não é só o dízimo, o problema é que essas pessoas perderam o discurso, perderam a razão de ser. Quem pregava um evangelho de solidariedade, continua pregando agora e, depois que passar a pandemia, vai continuar falando de solidariedade. Mas quem falava só de milagre e cura, vai falar o que agora?”. Welita, da FLM, também aposta em uma mudança radical do papel e poder da Igreja. “Eu acho que não vai existir mais igreja, assim como todas as estruturas estão falindo, a igreja também é esse instrumento que vai falir. Eu acredito que esse evangelho é tão vivo, tão vivo, que pastor nenhum pode aprisioná-lo. Igreja nenhuma pode dizer ‘esse é o meu evangelho’, o evangelho é do mundo e evangelho para mim, de Cristo, é qualquer pessoa que estenda a mão aos necessitados. Essas igrejas como são, irão ruir”.

Contra-narrativas: o mundo plural dos evangélicos

Nesse cenário, será preciso redirecionar os olhares do movimento social para a classe trabalhadora cristã, criando pontes e diálogos, disputando e cultivando juntos a solidariedade. “Quando somos atingidos nas nossas dimensões mais vulneráveis e que colocam em cheque aquilo que vinha sedimentando o nosso pensamento, somos obrigados a pensar sobre isso e repensar nossas práticas, por isso, considero que a pandemia pode ser um campo fértil de possibilidades para que a gente se reinvente como igreja, como comunidade, no cuidado uns com os outros”, reforça a cientista social Alana Barros. Para Welita, este é um momento de ruptura com essa religião, segundo ela, tão conectada ao sistema capitalista. Ela acredita que há uma brecha para que os cristãos percebam a religião como uma ligação com o divino e com as outras pessoas. “Eu sempre digo para eles (moradores das ocupações) que isso aqui (a ocupação) é religião de verdade, isso aqui é o cristianismo de verdade, de você estender a sua mão para outro em sua necessidade real”.

Essa ruptura e nova percepção da realidade não se constrói de um dia para outro. As lideranças de diversos movimentos populares que estão na linha de frente das ações têm construído – a partir da formação política com a sua base – olhares resistentes frente à realidade e, não raramente, tendo que lidar com concepções enraizadas no fundamentalismo religioso. No entanto, as possibilidades de transformações sempre estiveram em curso, como elabora Welita. “A base com que eu trabalho é evangélica, nas ocupações são todos evangélicos. Vai se construindo uma consciência política, dialogando com a fé a partir da educação popular, a partir das dificuldades do dia a dia que eles enfrentam, mais do que outros lugares, as ocupações são construídas com base na solidariedade. Eu vejo o discurso do Bolsonaro muito forte nas ruas, mas aqui dentro a gente tem um contra-discurso que funcionou sempre”.

Com a presença de uma pluralidade maior de cultos em meio digitais, o movimento progressista evangélico, embora sempre tenha feito uso dessas ferramentas, tem ganhado mais força. Na contramão dos discursos fundamentalistas, os movimentos religiosos progressistas, incluindo comunidades locais, têm mantido um esforço comum na disseminação de informações sobre prevenção da Covid-19. Diversas campanhas nas redes sociais têm sido feitas para que as pessoas não quebrem o isolamento e exercitem a fé dentro de suas casas. Uma das hashtags de destaque foi a #FéNãoImuniza, inspirada na fala do pastor batista Ed René Kivitz durante o culto transmitido pela Igreja Batista da Água Branca. Essa campanha foi impulsionada nas redes sociais pelas feministas evangélicas Camila Mantovani e Rachel Daniel, e trazia informações importantes para conciliar a fé e a prevenção.

O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs também lançou notas e informes às igrejas na campanha de prevenção à Covid-19. Outra campanha importante ocorreu no dia 5 de abril, contrapondo o jejum convocado por Bolsonaro com o apoio de pastores pentecostais e protestantes históricos. Essa campanha foi criada pelo Usina de Valores e o Instituto Vladimir Herzog, que propunha que cristãos e cristãs progressistas dissessem o significado do jejum, retomando assim a temática que pertence à fé cristã. A hashtag #OJejumQueEscolhi, que faz referência ao texto de Isaías 58, incentivou cristãos e cristãs de diversas denominações a manifestarem sua fé e luta baseadas na justiça e igualdade. Outra iniciativa muito importante nessa conjuntura foi a do coletivo Bereia. Formado por jornalistas evangélicos, o coletivo tem apurado todas as notícias de conteúdo duvidoso relacionadas ao governo federal e às lideranças cristãs com mandato político.

Provocados pelas ações desastrosas do governo Bolsonaro frente à pandemia, 35 organizações e movimentos evangélicos e centenas de fiéis de diversas denominações cobram respostas do governo federal frente à tragédia que está em curso, por meio do Manifesto com um nome bastante incisivo: “O governante sem discernimento aumenta as opressões – Um clamor de fé pelo Brasil”. O manifesto também traz a necessidade das igrejas garantirem o isolamento, mantendo os cultos presenciais suspensos e que a igreja só abra suas portas para as ações de solidariedade. “Nosso compromisso cotidiano em ações solidárias de apoio ao atendimento de necessidades específicas de pessoas e famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade nesse contexto de grave crise. A fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta”.

Ações de solidariedade: Igrejas e Movimentos Populares

As ações de solidariedade que já estavam em curso foram fortalecidas e aprofundadas nesse período de pandemia – apesar de toda a dificuldade de manutenção de um trabalho de base em tempos de necessário isolamento social – e têm se tornado também espaços possíveis de formação e de reflexão junto à classe trabalhadora. O exemplo que Alana nos traz referente ao trabalho realizado na periferia de Maceió, é muito ilustrativo das potencialidades que a solidariedade encontra de reversão de narrativas, tão enraizadas em nossa sociedade. “Temos tido mutirões de distribuição de alimentos, e no dia 17 de abril, a gente recebeu uma doação de 5 toneladas de alimentos do MST (…) atendemos em torno de 800 famílias e foi um processo muito interessante, porque a gente contou com ajuda das pessoas da própria comunidade para organizar esse mutirão (…), queríamos aproveitar essa ação de solidariedade também como processo formativo, então, uma alternativa nossa foi convidar as pessoas da vizinhança que já nos conhecem para ajudar nesse processo de organização e distribuição de doações, coisa que muita gente não tinha experienciado nessa dimensão. Tinha várias visões distorcidas sobre o MST, aí chega o MST levando alimentos para a população que precisa demais. Descobrimos um potencial político e organizativo muito grande nessas pessoas da comunidade que lideraram o processo e nos ajudaram. Terminamos esse dia com um saldo muito positivo, não só porque muitas pessoas foram alimentadas, mas porque no processo eles passaram a enxergar ‘esse pessoal do MST’, como eles dizem, de uma maneira diferente”.

Parte significativa das pessoas da comunidade que participaram desse processo organizativo do mutirão e também das que receberam os alimentos é frequentadora das igrejas evangélicas da região. Se podemos afirmar que a fé não imuniza contra o vírus, também não imuniza contra o olhar crítico sobre a realidade. Josélia trabalha há anos nas bases dos movimentos sociais de luta por moradia e tem buscado dialogar principalmente com as mulheres evangélicas nos seus espaços de formação e possibilitado a reflexão política a partir da fé. Em tempos de pandemia, para além das campanhas de solidariedade e doações de alimentos, Josélia tem tentado acalmar as famílias que estão inseguras e muitas vezes se sentindo abandonadas, levando as palavras de Deus, “mas não a palavra de Deus alienada, mas a que faz a gente entender que precisamos nos cuidar (…). A fé e a inteligência andam juntas”.

As forças progressistas estão em marcha por meio da solidariedade e da batalha das ideias, presencialmente ou não. As fissuras nos discursos fundamentalistas religiosos, evidenciados nas ações contra a pandemia, criaram possibilidades para rupturas de uma espiritualidade conservadora. Nesse contexto, tornam-se cada vez mais férteis as disputas, no campo religioso, a partir dessas fissuras com os diversos setores de nossa classe. Os evangélicos, principalmente os neopentecostais, compõem parte significativa dos moradores das periferias das cidades, alvo principal do vírus em nosso país. É necessário reforçarmos que sem o diálogo com esse setor da sociedade não avançaremos de fato para uma transformação da realidade que vivemos. Que possamos mais do que nunca nos inspirarmos:

(…)Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.

É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.

Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

Para os que virão – Thiago de Melo

Referências  

CARDOSO, Nancy; TOSTES, Angelica. “Ideologia de Gênero” ou do Medo das Pequenas Diferenças & algum homoerotismo, 2018. Disponível em <https://www.academia.edu/42454842/_Ideologia_de_G%C3%AAnero_ou_do_Medo_das_Pequenas_Diferen%C3%A7as_and_algum_homoerotismo> Acesso em < 01 de jun de 2020 >

CARDOSO, Nancy. Teologia da mulher. Revista Encontros Teológicos, v. 30, n. 1, 2015. Cunha, Magali, et al. “Discurso religioso, hegemonia pentecostal e mídia no Brasil: a presença televisiva do Pastor RR Soares – um estudo de caso.” R e v i s t a C a m i n h a n d o v. 13, n . 21, p . 87 – 96, j a n – m a i 2 0 0 8 ____________. Três coisas que é preciso saber para se falar dos evangélicos no Brasil, 2020. Carta Capital: Diálogos da Fé. Disponível em < https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/tres-coisas-que-e-preciso-saber-para-se-falar-dos-evangelicos-no-brasil/ > Acesso em <29 de mai de 2020 > ________. Religião e Política: Uma visão protestante. In TOSTES, Angelica; RIBEIRO, Claudio. Religiões e Intervenção Política: Múltiplos Olhares. São Paulo: Ed. Recriar, 2020.

FERNANDES, Marco. Psicoterapia Popular do Espírito Santo: hipóteses sobre o sucesso pentecostal na periferia de metrópolis periféricas. Margem à Esquerda 29. Boitempo Editorial, 2017.

JUNG, Mo Sung. Sacrifícios e certezas num mundo de incertezas: neoliberalismo e milenarismo. In CRUZ, Eduardo R.; DA COSTA BRITO, Ênio José; TENÓRIO, Waldecy. Milenarismos e messianismos ontem e hoje. Edições Loyola, 2001.

KIFER, Camila. Jornalistas evangélicos criam site para checagem de notícias sobre lideranças cristãs, 2020, Itatiaia.Disponível em https://www.itatiaia.com.br/noticia/jornalista-evangelicos-criam-site-para-checag1

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VILHENA, Valéria Cristina. Uma igreja sem voz: análise de gênero da violência doméstica entre mulheres evangélicas. Fonte Editorial Ltda., 2011.